#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO XII PARTE.....................
O ceifeiro rebelde – representante autorizado do narrador e do autor –
como um herói intelectual iluminista, tem o saber libertador e quer,
‘generosamente’, doá-lo ao povo que vive na ignorância, vítima da ideologia
imposta pela classe dominante. Nunca passa pela cabeça deles que este povo
também tem o seu saber, que ele também tem o que ensinar, que na sua cultura
também existem germes libertários.
Podemos ver isto claramente no modo como o narrador trata a linguagem –
parte essencial e principal forma de expressão de uma cultura – dos seus
personagens. Pensemos, primeiramente, na linguagem do próprio narrador.
Trata-se de uma linguagem direta, objetiva. Busca-se descrever a realidade
exterior de uma forma fiel. Este modo de ler/descrever a realidade mostra-nos a
realidade opressiva em que vivem os pobres. Por trás da linguagem aparentemente
objetiva do narrador podemos, entretanto, sentir seu olhar comovido. Isto,
evidentemente, não é negativo, não compromete de forma alguma a obra. Ele
simpatiza com as personagens de quem está falando e tem todo o direito,
inclusive esteticamente falando, de gritar o seu protesto. O problema se dá na
hora de passar a palavra para eles. – e esta idéia chega a ser externalizada
pelo ceifeiro rebelde – não sabem o que falar. Este é o preconceito de fundo que
compromete não só ideológica mas também formalmente o romance. Na prática do
texto, fica implícito que els nào sabem não apenas o quë, mas nem ao menos
sabem falar. Algumas das palavras dos pobres que entram na narrativa, ou
algumas reproduçòes de sintaxe ou fonética, não chegam a articular a
suamlinguagem. Não revelam a sua cultura. Têm quase um caráter exótico.
Revelariam, no máximo, a sua não-cultura, sua pobreza também neste nível.
Mas será esta a verdade? Será a cultura do pobre também uma cultura
pobre?
Herdeiro ou continuador da escola realista, o Neo-realismo tem em si
algo que o poderia ligar também a um certo Naturalismo. Aliás, em Portugal,
Realismo e Naturalismo de certo modo se confundiram numa fusão de tendências.
Evidentemente que não é pelo espírito ou pelo aprendizado científico
positivista exageradamente presente na obra literária que se dá a semelhança
entre Neo-Realismo e Naturalismo, visto que naquele o que predomina é a
observação do social, basicamente em seus aspectos políticos e econômicos. O
que de certo modo sugere alguma semelhança entre as duas tendências literárias,
além da filosofia materialista comum a ambas, é a inclinaçào que, cada uma a
seu modo, têm para o patológico. O Naturalismo preocupou-se com a patologia
humana e suas conseqüências na sociedade através dos fatores históricos,
ambientais ou genéticos e nào se pode negar que muitas vezes foram exagerados
os resultados ou conclusões da aplicaçào das teorias científicas à literatura.
O Neo-Realismo volta-se para um outro tipo de estado patológico? Preocupa-se
objetivamente com a patologia social, com um estado mórbido da sociedade
originado por uma estrutura sócio-político-econômica defeituosa e injusta que
permite o progresso – mesmo ilícito – das classes dominadoras à custa da
degradação e do sacrifício das camadas inferiores. Não se podem negar exageros
cometidos em nome do movimento. Como defendesse uma literatura de objetivos
sociais e mesmo intervencionistas (falou-se muito de uma intervenção
neo-realista), a pretexto de literatura social, principalmente durante a
primeira fase do Neo-Realismo surgiram – para felizmente logo desaparecerem –
inúmeros escritos muito mais próximos do panfleto propagandístico do que do
trabalho literário.
Em ‘Apelo da Noite’, o protagonista nega a crença religiosa mas aceita a
idéia de santidade:
“Há santos ou pode havê-los em todas as religiões, em todos os partidos.
São os que assumem...”
Linearmente traçada a fábula de Apelo da Noite, observa-se que o romance
se constrói a partir de uma açào subjetiva que da consciência de sua principal
figura, Adriano Mendonça, é transposta para o plano objetivo de uma efetiva
ação – armada, inclusive – com finalidades políticas de que é protagonista o
próprio Adriano. Como Carlos Bruno, o herói de Mudança , Adriano Mendonça vem
de Coimbra, onde cursou engenharia e paralelamente cultivou uma herança do pai:
o gosto pela literatura e o questionar ideológico. A conclusão do seu curso
coincide com o término da guerra, e o regresso a Évora, à terra natal, com a
repentina morte da irmã, Lídia.
“Visitava-o a morte agora pela primeira vez, o seu absurdo, a sua
violência como um estampido”
Este desenvolvimento inicial do romance em tudo se assemelha ao de
Mudança, salvo no que se refere às certezas dos seus protagonistas, visto que
Bruno regressa de Coimbra acreditando ainda em todos os valores materiais que
sempre lhe sustentaram a existência, enquanto que Adriano, ao invés dessa crença,
já traz instauradas na consciência indagações e dúvidas marcadas por certo
amargor de angústia. Os seus valores, já postos em questào, sucumbem totalmente
ante o absurdo da morte, a extrema fragilidade da vida, representada pelo
imprevisto falecimento da irmã, que patenteia a falência da ciência humana. A
partir desse primeiro encontro com a morte, registro do desmoronamento de
frágeis valores existenciais, tal com a Carlos Bruno impõe-se a Adriano
Mendonça encontrar novas razões que justifiquem a vida, mas, ao invés do
protagonista de Mudança que mergulha longamente numa extrema lassidão e
inapetência, Adriano, após breve período de depressão, tem um lampejo de
revolta contra o desespero que a morte infunde e encontra na atividade política
uma razão para continuar vivo?
“Levanta-te, morto antecipado, a hora volta, a esperança volta – brusco
de coragem e remorso, desatou a fazer projetos, de novo a vibração política o
transformou, abalou o país! Eleições livres! Ele as dá de novo, as teve de
dar!”
“E em outubro confirmou-se o boato das “eleições livres”. Por influência
da América, por influência da Inglaterra, por imposição da História. Longos
anos de sangue e de ruína, as emissoras estrangeiras prometiam a liberdade e a
paz, campos de concentraçào, horrorosos crimes da noite – vinha aí a luz da
manhã, eles falavam já no “desmanchar a feira”. Adriano ergueu-se ao clamor e
durante um mês, em Portalegre, Coimbra, Évora, outra vez em Portalegre e em
Faro e em Beja, conferências, organização de listas, passava as madrugadas
redigindo manifestos, Gabriel pedia artigos para jornais clandestinos, Torres
mandava rifas, exigia novas traduções”.
Na ação de objetivos políticos imediatos, colocou Adriano,
equivocadamente, um valor absoluto que ansiava por alcançar. Equivocadamente
porque os resultados dessa ação, quando alcançados, depressa se esgotam ou se
ultrapassam, caindo portanto no relativo ou no contingencial da dinâmica
histórica. Para Adriano, tanto quanto para Aires, era válido e possível resumir
a vida numa ação decisiva Por isso, em busca desse absoluto, ele parte para
Lisboa, juntar-se à clandestinidade de um grupo de intelectuais
revolucionários, alguns já conhecidos dos seus tempos de Coimbra. Do
relacionamento de Adriano com seus perplexos e inquietos companheiros, vai
surgir, como contraponto da ação política investida de absoluto, o valor da
idéia como fator capaz de superar os resultados da açào. Forma-se assim a
tensão essencial do romance, que é o conflito pensamento/ação, e, como quase todos
os componentes do grupo clandestino são escritores (alguns são intelectuais
voltados para outras áreas: médicos, professores, jornalistas), as discussões
são conduzidas para o campo da literatura, questionando-se a função social da
obra literária. Este direcionamento do romance permite a Vergílio Ferreira
praticar um autêntico ensaísmo dentro da ficção, um ensaísmo por vezes
essencialmente literário, como o que subjaz nos trechos em que se questiona o
Neo-Realismo e suas finalidades sociais imediatas veiculadas através da
literatura. A certa altura há memso uma referência à ortodoxia neo-realista , à
qual se opunha o romance de Adriano Mendonça, Viagem sem Regresso. Há também a
declaração de Gabriel, diretor de uma revista literária em decadência que o grupo
clandestino pretende fazer ressurgir e para a qual planejam traçar um programa
de açào, de que a sua intençào não é senão ajudar e esclarecer o homem,
ajudá-lo a reencontrar a sua dignidade. E há ainda a ironizaçào de intençòes
tão imediatistas quanto a denúncia da miséria e a crença na esperança de a
superar pela literatura, ironia sutilmente alcançada por Vergílio Ferreira
através da fala de Tibério:
“Vocês vão ver o Ribeiro. Vocês vão ver o que é um romance ao pé dessa
merda para aí. Vocês vão ver o Canuto. E o João Palha. Não são porcariazinhas
de gabinete. São romances modernos, romancezinhos vividos, de coirãozinho ali
batido na experiência. Canuto foi caixeiro a sério, varredor a serío, moço de
fretes a alombar com carregos. O Ribeiro foimoço de mandados numa casa de
mulheres de quinze paus. O Palha foi molleiro na terra do avô e proqueiro na
terra da mãe. Esses senhores delambidos a armarem para aí que foram
carroceiros, guitarristas do fado, para impingirem o seu romance. Tomaram
sempre chá das cinco com senhoras. Varredor, o Canuto. Moleiro, o Palha.
Romance vivido, fossadinho ali na realidade. Cambada!”
Num esquema de aproximação entre Vergílio Ferreira, Sartre Camus, em
relação a André Maulraux pode-se afirmar que Apelo da Noite é o mais maulrausiano
dos romances do autor de Mudança. Efetivamente, se alguns traços da obra do
escritor francês podem ser encontrados no conjunto romanesco de Vergílio
Ferreira, Apelo da Noite é um romance claramente relacionado com a
característica mais ampla da obra ficcional de Malraux, o fascinio das
personagens pela aventura, pela açào política perigosa, pela revolução armada,
em que a morte é encarada com naturalidade, sem temor, porque a justificação da
existência está na própria execuçào da açào (que pode, evidentemente, ser
interrompida) assumida como um valor absoluto e elevada a uma dimensão
metafísica.
No romance não há realidade externa que faça contrapeso ao cunho
inacabado da reportagem. Transformadas em princípio construtivo de ficção, e
deslocadas de seu contexto prático, estas técnicas provisórias tornam-se juízo
absoluto sobre a condição humana. O romance habitual, que fala ordenadamente da
desordem de uma revolução, busca representar um momento histórico, real ou
fictício; um romance que incorpora a precariedade jornalística à sua estrutura,
transforma-se em juízo, afirmação absoluta, já que a desordem não é mais
questão de conteúdo, mas escolha técnica feita de antemão, anterior ao começo e
à matéria do romance e independente deles. Á volta desta problemática emergem
as questões centrais de A Condição Humana, e explicam-se os seus êxitos e suas
falhas.
O romance de Malraux oscila, pois, entre o relato histórico
interessante, mas jornalístico, e a descrição de experiências de impotência
humana, que tendem, no limite, a tornar-se mera exemplificação metafísica; as
duas fraquezas são complementares. De entremeio aparece a luta pelo sentido, a
experiência concreta que nào se desfaz em esquemas nem sofre do linguajar
cansado da reportagem, no qual não se retém a marca do acontecimento, logo
perdida na generalidade do vocabulário convencional.
Por não Ter profundidade no tempo, o romance não tem também, variedade
histórica; falta-lhe, daí, um pano de fundo concreto sobre o qual os
acontecimentos possam desenhar a sua singularidade. As ações precisam de termos
abstratos e teóricos para caracterizar o seu desenvolvimento, termos pomposos,
que reduzem o evento concreto à exemplificação de uma estrutura abstrata. A
mimese evapora em juízo teórico. Exemplo: “As palavras eram ocas, absurdas,
fracas demais para exprimir o que Tchen queria delas”. O problema artístico, de
fazer sensível esta experiência e de representar a sua prática, é eludido pela
mera denominação. O que são palavras ocas e fracas? É preciso apelar para a
nossa experiência pessoal, se quisermos dar conteúdo a estas expressões. O
livro não impõe a sua substância concreta. Resulta que o leitor não chega a uma
nova compreensão delas, propiciada pela pesquisa e sensibilidade do escritor,
mas basta-se com repetir a si mesmo o que já sabia, - a síntese é exterior ao
texto. Voltamos à característica de jornal, que expusemos inicialmente. Os
exemplos desta fraqueza são inúmeros no livro.
Na estrutura das personagens, o padrão conceitual aparece com toda a
evidência. Na primeira cena do livro, a experiência de Tchen leva a uma
formulação extrema da condição humana, cujo único problema significativo seria
o enraizamento da consciência no mundo contingente.
André Maurois diz que os heróis de Malraux se interessam mais pelos atos
que pelas doutrinas, e, se observarmos o grupo de intelectuais clandestinos de
Apelo da Noite, poderemos constatar que todos anseiam por uma açào modificadora
da realidade histórico-social em que estão situados, embora se mostrem, até ao
final do livro, política e ideologicamente indefinidos, o que é especialmente
verdade em relação a Adriano Mendonça, entre todos, o menos interessado em
doutrinas políticas. Adriano tem um problema fundamentalmente idêntico ao do
seu companheiro Gabriel: ser artista dentro da ação.
Não é de biografias que o ensaio trata, mas isto bem poderia Ter sido um
lema de vida de André Malraux, em quem sempre coexistiram o homem de ação e o
artista e em quem a arte acabou por suplantar a aventura. É assim que André
Maurois se lhe refere: ele enxerga uma outra oportunidade de salvação aliada à
história, que é a cultura; outro método para se aproximar do mundo, que é a
arte, recriação do mundo. Adriano Mendonça oscila também entre a arte e a ação,
e, se ao final escolhe a ação como forma de salvação existencial, o ato de
pensar e a realizaçào artística nunca estiveram ausentes da sua existência. A
grande dor de hoje é a do pensamento – O grande pecado de hoje: o pensar. Estas
afirmações da consciência de Adriano são praticamente um eco da narração do
final de Mudança: Esse era o crime de que o acusavam: - pensar. E é evidente
que estas três afirmativas e o que elas sugerem de comportamento vivenciado,
seja por Carlos Bruno ou Adriano Mendonça, têm sua raiz no raciocínio absurdo
de Camus: começar a pensar é começar a ser consumido.
Pensando em toda uma interpretação que foi elaborada em termos de Albert
Camus, com insistência frisando a questão do absurdo, com uma conotação
tendenciosa: a de encerrar o pensamento deste escritor, dramaturgo, numa
leitura negativa. Este ser que se assume: elabora a sua visão-de-mundo, a sua
espiritualidade. Há uma leitura da espiritualidade na obra de Camus que
pretendemos elaborar neste trabalho, buscando a síntese com Vergílio Ferreira;
este, sem dúvida, assume a sua influência do escritor/dramaturgo francês.
Reconhecendo-se na intencionalidade da sua consciência, a existência
humana emerge na cisão. Consciência de si e consciência do mundo são dois
enfoques do mesmo fenômeno. A realidade humana exprime-se na sua dimensão de
ser no mundo.
Ser no mundo significa existir para si e para o mundo, não apenas o
mundo da natureza, configurados em termos humanos, mas também, é claro, o mundo
social em que o ser-com-os-outros assegura a realidade no modo da
co-existência.
Quando neste trabalho se inicia a abordagem de Vagão “J”, principiou-se
por destacar certas inovações lançadas por Vergílio Ferreira dentro do contexto
da ortodoxia neo-realista. Pontos de exceção inseridos num universo de
uniformidades. Terminada a leitura do romance, uma coisa se torna bem clara: o
cenário, as personagens, os objetivos do livro, são comuns a toda a ficção
social desenvolvida no momento histórico em que ele apareceu, mas certos
detalhes do estilo e da técnica narrativa do escritor nesta obra já não se
situam dentro desse contexto literário.
Ao longo do romance aparecem diversos trechos narrativos de escrita
muito ágil e nervosa, revelando certo descosimento quase caótico que lembra a
chamada “escrita automática” utilizada por alguns romancistas de vanguarda
ingleses e americanos e conhecida também dos escritores surrealistas. Além
disso, Vergílio Ferreira utiliza na narração de Vagão “J” diversos focos
narrativos, mudando freqüentemente de ponto de vista, passando alternadamente
da visão do narrador de terceira pessoa para a perspectiva da personagem que
revela o seu pensamento em primeira. Transcreve-se um texto para exemplificar:
“Mas quando Antônio voltou mais uma vez a férias, desiludiu o tio que
esperava dele muita conversa e até talvez um pouco de latim, só para ver como
era aquilo lá na missa, nunca soubera o que o padre rosnava no jissal. Joaquina
tinha-o prevido de que Antônio era outro, não fazia recados a uma pessoa, tinha
até vergonha da família. Joaquina já nem ia esperá-lo à camioneta, porque D.
Estefaânia e a criada esmpalmavam-no logo, levavam-no a reboque para casa, e
que pena eu tenho de nem lhe poder falar, sempre sou mãe, mas julgam que lhe
faço emal e levam-no. Uma vez ainda me pus de lado a ver se ele me olhava, e
ele olhou e correu para mim e deu-me um beijo. Mas foi só uma vez”.
(**RIO DE JANEIRO**, 30 DE ABRIL DE 2018)
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