FLÂNEUR: A PROPOSITO DE “O HOMEM DA MULTIDÃO”, DE EDGAR ALLAN POE - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
Na Inglaterra, berço da Revolução Industrial,
aconteceram profundas transformações na vida econômica, social e política a
partir da segunda metade do século XVIII, que, ao lado de inegáveis benefícios
(principalmente para a burguesia ascendente), trouxeram problemas sociais
gravíssimos, aos quais os escritores desse período não ficarão indiferentes.
Numa época em que a filosofia, letras e artes se guiavam pela Razão –
sublinhe-se e ressalte-se - alguns pensadores viam as mazelas dessa nova ordem
como resultados de uma visão de mundo cerebral da vida e do próprio ser humano.
Isto é muito visível em Blake quando condena a incipiente indústria do século
XVIII como “dark satanic mills”, tingindo as cidades inglesas com o cinza de
sua fuligem.
A Londres vista por Blake, com suas ruas
comoditizadas pela presença do primeiro avanço do capitalismo, onde perambulam,
cobertos de cinzas e famintos, os limpadores de chaminé, é um esboço daquela
Londres metrópole, super-povoada e injusta, descrita, com certa repugnância,
por Friederich Engels, devido à condição de seus habitantes. “Uma cidade como
Londres, onde se pode caminhar horas a fio sem se chegar sequer ao início de um
fim” impunha aos seus 2,5 milhões de habitantes, segundo ele, para erigir-se em
principal capital comercial e industrial, o sacrifício da “melhor parte de sua
humanidade” (Engels 1985: 68).
Em The condition of the working class in England,
Engels ressalta a indiferença entre todos. A única convenção entre as pessoas
na cidade era o acordo tácito segundo o qual cada um mantinha a sua direita na
calçada, a fim de que as duas correntes de multidão que se cruzavam não se
empatassem mutuamente. Em Londres, dizia ele, ninguém atentava para o outro.
Transitando pelas ruas, os habitantes da capital mostravam uma “indiferença
brutal” para com o que se passava ao seu arredor, cultivando apenas os
interesses pessoais voltados para um desavergonhado “egoísmo mesquinho”,
lembrando a descrição da sociedade feita há muito tempo por Hobbes – a de que a
sociedade nada mais era do que o produto de uma guerra social, “a guerra de
todos contra todos” (Engels 1985: 36). E acrescentava que o que valia para
Londres, valia para todas as grandes cidades da Europa.
Em nosso ensaio anterior, analisamos a obra As
flores do mal, de Baudelaire, vista à luz do pensamento benjaminiano,
pautando-nos no “flâneur” e “flâneurie”. Vimos o panorama da França no século
XIX. Continuaremos nesse ensaio sobre O homem da multidão, de Edgar Allan Poe,
servindo-nos do pensamento de Walter Benjamin. Veremos o panorama da Inglaterra
na segunda metade do século XIX.
Em seus ensaios sobre a obra do poeta francês
Charles Baudelaire, Benjamin chama a atenção para a figura do flâneur que, com
um prazer quase voyeurístico, comprazia-se em observar refletidamente os
moradores da cidade em suas atividades diárias. Dessa paixão do flâneur pela
cidade e a multidão, decorre a flâneurie como ato de apreensão e representação
do panorama urbano.
A expansão sem precedência da economia industrial e
a conseqüente explosão demográfica das cidades, em especial Londres e Paris,
acarretaram no surgimento do ambiente urbano moderno, possibilitando novas
formas de experimentar e perceber. Isso, por sua vez, requeria novo modo de
olhar para o mundo e novas propostas estéticas.
Benjamin procura explicitar essas transformações,
ao investigar como tais mudanças foram registradas na literatura daquela época.
Baudelaire torna-se a figura central em suas investigações. Para ele, os textos
de Baudelaire constituem os fragrantes mais precisos e intensos da vida social
parisiense do século XIX, revelando as mais finas e sutis articulações do
indivíduo moderno com o cenário urbano.
Benjamim afirma que “a cidade é o autêntico chão
sagrado da flânerie” (1994: 191), e que o “fenômeno da banalização do espaço”
constitui-se em experiência fundamental para o flâneur (1994: 188). Baudelaire
achava a cidade sedutora, principalmente em seus “mauvais lieux”, por onde se
deixava levar em suas andanças erráticas. As ruas labirínticas da cidade
constituem, para o “perfeito divagador”, “observador apaixonado”, o fascínio da
multiplicidade e do efêmero, o gosto pelo movimento ondulante da multidão.
Segundo o poeta francês, o flâneur é inebriado, extasiado pelo prazer de se
achar em uma multidão, o que, para Benjamin, seria “uma expressão misteriosa do
gozo pela multiplicação do número” (1994: 54).
Para Baudelaire, há a beleza duradoura nos
fenômenos, que permanecem através de diferentes épocas, e há a beleza do
acidental, do instantâneo. Essa última beleza, a da modernidade, para ser digna
de se tornar antiguidade, deve ser extraída pelo artista com todo o mistério
“que a vida humana coloca nela involuntariamente” (Baudelaire 2001: 110). Esse
trabalho, o de dar forma estética ao moderno, cabe aos artistas como Constantin
Guys.
Um desses é, sem dúvida, Edgar Allan Poe, que,
antes de Baudelaire, seu primeiro tradutor para o francês, já havia explorado,
em seu conto “O Homem da Multidão”, o tema da paisagem e da massa urbana. Nesse
conto, Poe “revela alguns traços notáveis, e basta apenas segui-los para
encontrar instâncias sociais tão poderosas, tão ocultas, que poderiam ser
incluídas entre as únicas capazes de exercer, por meios inúmeros, uma
influência tão profunda quanto sutil sobre a criação artística” (Baudelaire
2001: 119).
A cidade é o templo do flâneur, o espaço sagrado de
suas perambulações. Nela, ele se depara com sua contradição: unidade na
multiplicidade, tensão na indiferença, sentir-se sozinho em meio a seus
semelhantes. Ao errar entre as galerias e bulevares, ao passear pelos mercados,
o flâneur é o ser que vê o mundo de uma maneira particular, sem a pretensão de
explicar, mas com a intenção de mostrar, levando a vida para cada lugar que vê.
Sua paixão é a interioridade, na rua encontra o seu refúgio, desvincula-se da
esfera privada, buscando sua identificação com a sociedade na qual convive.
Ocorre, porém, que essa identificação resulta em grande parte complicada pela
natureza complexa da sociedade moderna. Nas ruas das metrópoles, o flâneur
constata que o homem moderno é vitimado pelas agressões das mercadorias e
anulado pela multidão, estando condenado a vagar pela cidade como um embriagado
em estado de abandono. É essa angústia que o flâneur representou no século XIX.
O flâneur aparece como a figura de um burguês que
tem tempo à disposição e que pode dar-se ao luxo de desperdiçá-lo, para horror
da sociedade capitalista de sua época. É um burguês que leva uma vida sem
objetivos definidos a não ser buscar no complexo urbano rusgas, vãos, becos por
onde entrar em busca de algum espetáculo para os seus olhos sobre pernas. Olhos
e pernas são a essência do flâneur e da flâneurie. Para isso, há que existir um
ambiente propício ao seu flanar. Esse ambiente é Paris, uma cidade feita para ser
vista “pelo caminhante solitário, pois somente a um passo ocioso pode-se
apreender toda a riqueza de seus ricos (mesmo velados) detalhes” (White 1992:
43). Louis Sebastien Mercier, após escrever o Tableau de Paris, escreveu: “Eu
andei tanto para escrever o Tableau de Paris que posso dizer que o fiz com
minhas pernas, aprendendo a ser ágil, ávido e vivaz no palmilhar o chão da
capital. Esse é o segredo para conseguir ver tudo” (White 1992: 44)
Outra característica do flâneur, que o distingue de
um filósofo ou de um sociólogo, é que ele procura por experiência e não por
conhecimento. Para estes, grande parte da experiência acaba sendo interpretada
como – e transformada em – conhecimento. Já para aquele, a experiência
permanece em certa medida pura, inútil, em estado bruto, fruto do olhar
ingênuo, como o de uma criança, do tipo que Baudelaire atribui a Constantin
Guys. Assim, forma-se um retrato dessa figura que, ao que parece, foi uma
pessoa de carne e osso, como mostra esta descrição de Paris, feita por volta de
1808, retirada e resumida de um artigo de Elizabeth Wilson: o flâneur é um
gentleman que passa a maior parte de seu dia a vagar pelas ruas, observando o
espetáculo urbano – as modas, as lojas, as construções, as novidades e as
atrações. Seus meios de vida são invisíveis, ficando a sugestão de uma riqueza
particular, porém sem a presença da responsabilidade familiar ou gerencial
dessa riqueza. Seus interesses são primordialmente estéticos e freqüentam cafés
e restaurantes onde atores, escritores e artistas se encontram. Entretanto,
parte do espetáculo urbano lhe é oferecido pelo comportamento das classes
baixas (vendedores, soldados, gente da rua). Ele é uma figura marginal e tende
a ser descrito como alguém isolado daqueles a quem observa (Wilson 1992:
94-95).
O flâneur, portanto, é o leitor da cidade, bem como
de seus habitantes, através de cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida
urbana. De fato, através de suas andanças, ele transforma a cidade em um espaço
para ser lido, um objeto de investigação, uma floresta de signos a serem
decodificados – em suma, um texto. Ao semiotizar a cidade, o flâneur, esse
“botânico do asfalto” (Benjamin 1994: 34), cria uma distinção entre o
observador e o observado. Mas, ao contrário de criar, desse modo, uma posição
privilegiada, estabelece com o seu objeto uma relação bastante problemática,
uma vez que ele não apenas observa a multidão a partir de um “standing point”,
mas se imiscui nela. Assim, sua leitura da cidade ocorre através de olhares
fragmentários e momentâneos, não lhe sendo permitido o olhar contemplativo e
eqüidistante, capaz de lhe oferecer a totalidade de seu objeto.
O flâneur, protótipo do sujeito moderno, por estar
no meio do que tenta descrever e não ter neutralidade e distanciamento na sua
observação (se é que isso alguma vez foi possível), limita-se a apontar as
transformações do cenário urbano e a re-velar sua historicidade. Além disso, o
olhar do flâneur se caracteriza por uma peculiaridade: trata-se de um olhar
distraído. Ao passar, o flâneur captura a paisagem em um estado de distração,
caracterizado por sucessivos e cambiantes pontos de vista. Nessa distração, ou
melhor, nessa “embriaguez anamnéstica” em que vagueia, não importam apenas os
fenômenos que, sensorialmente lhe atingem o olhar. Nesse estado, ele também se
apossa do “simples saber”, cuja transmissão se dá, sobretudo, por notícias
orais, que, para Benjamim, se compõe de dados mortos, como de algo
experimentado e vivido. (1994: 186).
O narrador de Poe pode ser considerado uma versão
londrina do flâneur parisiense de Baudelaire. Londres e Paris eram duas grandes
capitais, mas Londres, já por volta de 1844, quando o conto é escrito,
encontra-se mais marcada pela industrialização e por todas as conseqüências da
revolução taylorista nas formas de produção do capital. Nesse ambiente, é de se
esperar que o flâneur não existisse ou já nascesse fadado a desaparecer. Como
diz Benjamin, citando Georges Friedmann, “A obsessão de Taylor, de seus
colaboradores e sucessores, é a guerra à flâneurie” (Friedmann 1936: 76)
Em comparação, a Paris de Baudelaire ainda guardava
traços dos velhos bons tempos. Na Paris de Baudelaire, a situação era
diferente, “ainda se apreciavam as galerias, onde o flâneur se subtraía da
vista dos veículos... Havia o transeunte, que se enfia na multidão... Mas havia
também o flâneur, que precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade.”
Ao contrário do homem da multidão, do conto de Poe, o flâneur é um “ocioso”, a
caminhar como uma “personalidade” que rejeita a divisão de trabalho e a
industriosidade da sociedade de então. Benjamim diz que “era de bom-tom levar
tartarugas para passear pelas galerias”, como uma forma de protestar contra o
ritmo imposto pelo capital (1994: 50-51). Poe descreve Londres como possuindo
algo de bárbaro que a disciplina mal consegue sujeitar. A industrialização e
suas “benesses” isolam os seus beneficiários e os aproxima da mecanização.
Segundo Benjamin, “O texto de Poe torna inteligível a verdadeira relação entre
selvageria e disciplina. Seus transeuntes se comportam como se, adaptados à
automatização, só conseguissem se expressar de forma automática. Seu comportamento
é uma reação a choques” (1994: 126). É a visão desses autômatos em suas marés
humanas no anoitecer que enche o narrador de Poe com “uma emoção demasiadamente
nova” e o faz desinteressar-se pelo que passava no salão do Café onde se
encontra, para se absorver na “contemplação da cena lá de fora” (1990: 164) Há
no observador de Poe aquela mesma atenção que encontramos na descrição de
Constantin Guys feita por Baudelaire, aquela sensação de estar “sempre,
espiritualmente, no estado de convalescença” (2001: 196). Depreendemos,
contudo, segundo o próprio narrador do conto, que esse estado não lhe ocorria
“sempre”; antes, entendemos tratar-se de um estado raro, incomum. Assim ele
descreve seu estado naquela tarde:
Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono,
eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários
meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a
volta da saúde, sentiame num daqueles felizes estados de espírito que são
exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no
qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa
sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz
ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. (Poe 1990: 164)
É nesse estado de percepção aguçada, com o
intelecto “eletrificado”, que o narrador de Poe, esse flâneur em meio a um
turbilhão de choques, vai encontrar na multidão o mistério do anonimato e o
milagre da “multiplicação do número”. É esse espírito que ele aplica às coisas,
descreve-as. Com sensação de prazer no simples ato de respirar, capaz inclusive
de extrair inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição e
com um calmo, mas inquisitivo, interesse por tudo. Assim que o anônimo narrador
de O homem da multidão começa a descrever sua experiência pessoal em um café de
Londres, ele mostra total confiança em sua habilidade de ler a multidão com
base em sinais exteriores. É interessante notar que Poe, ao alternar as ações
de seu narrador entre ler o jornal e contemplar a multidão, estabelece um
paralelo entre as duas atividades e sugere suas similaridades: “Com o charuto
entre os lábios e o jornal sobre os joelhos, divertira-me durante grande parte
da tarde, ora a meditar os anúncios, ora observando a companhia promíscua
reunidas na sala, ou ainda a espreitar a rua através das vidraças enfumaçadas”
(Poe 1990: 164)
É nesse estado de percepção aguçada, com o
intelecto “eletrificado”, que o narrador de Poe, esse flâneur em meio a um
turbilhão de choques, vai encontrar na multidão o mistério do anonimato e o
milagre da “multiplicação do número”. É esse espírito que ele aplica às coisas.
Com sensação de prazer no simples ato de respirar, capaz inclusive de extrair
inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição e com um
calmo, mas inquisitivo, interesse por tudo. Assim que o anônimo narrador de O
Homem da Multidão começa a descrever sua experiência pessoal em um café de
Londres, ele mostra total confiança em sua habilidade de ler a multidão com
base em sinais exteriores. É interessante notar que Poe, ao alternar as ações
de seu narrador entre ler o jornal e contemplar a multidão, estabelece um
paralelo entre as duas atividades e sugere suas similaridades: “Com o charuto
entre os lábios e o jornal sobre os joelhos, divertira-me durante grande parte
da tarde, ora a meditar os anúncios, ora observando a companhia promíscua
reunidas na sala, ou ainda a espreitar a rua através das vidraças enfumaçadas”
(Poe 1990: 164)
Conforme essa passagem, há um deslocamento
oscilante entre os anúncios do jornal, a sala e a rua, que fica explicitado
pelas conjunções “ora” e “ou”. Trata-se de um flanar entre diferentes espaços,
desde o mais privado e recolhido da leitura do jornal até o espaço público da
rua. Essa dialética espacial entre o privado e o público, encontrada na base da
flâneurie, revela um aspecto interessante em relação à atitude do flâneur: o
reconhecimento de que o coletivo, como diz Benjamim, é um ser irrequieto e
agitado que, nos espaços do labirinto urbano, “reconhece e inventa tanto quanto
o indivíduo trancafiado em seu quarto. E a rua é a morada do coletivo. ” (1994:
194).
Nessa época, com efeito, a população das grandes
cidades estava se tornando alfabetizada e os sinais urbanos começavam invadir
as ruas, tanto os verbais como os não-verbais. O narrador de Poe deixa-nos ver
que, ao observar as ruas tanto literalmente como figurativamente, a cidade
estava-se tornando um texto e, para expressá-la, a linguagem escrita deveria
assumir as qualidades da imagem. Para tanto o observador deveria ter uma
sensibilidade excitada, apta a captar os fragrantes de um mundo em rápida
mutação. Como o pintor da vida moderna, o narrador de Poe busca flagrar na vida
trivial das ruas aquele “movimento rápido que impõe ao artista uma igual
velocidade de execução” (Baudelaire 2001: 105).
Se cada século tem sua feição, sua graça pessoal,
impressa pela passagem do tempo, o mesmo se aplica a traços menores da
história; aliás, podemos pensar que quanto mais particular é o evento, mais a
marca do tempo deixará nele o seu carimbo, como a moda, campo sobre o qual
refletiu Baudelaire. Ainda, segundo ele, essa mesma observação se aplica às
profissões, porque “cada uma extrai sua beleza interior das leis morais a que
está submetida. Em algumas essa beleza será marcada pela energia; em outras
carregará os sinais visíveis da ociosidade. É como o emblema do caráter, é a
estampilha da fatalidade” (Baudelaire 2001: 114).
É inegável que, no conto de Poe, apesar das
diferenças existentes entre esses dois pólos, podemos dizer que tanto o
narrador, como o misterioso personagem, compartilham características do
flâneur. O velho demônio encarna, num extremo, a erraticidade, a voracidade
voyeurística, a solidão urbana. Vemos, porém, tratar-se de uma personalidade
amortecida pela recepção de choque, um embasbacado, uma marionete agitada pelo
ritmo da produção capitalista e pelo frenesi do consumo. Parodiando Baudelaire,
assemelha-se a um “caleidoscópio desprovido de consciência”. Já o narrador tem
a fome da experiência, somada à perplexidade e ao assombro. Sua perambulação
acompanha os fluxos da cidade e os passos do homem da multidão, buscando,
entretanto, fixar, como fantasmagoria, suas impressões. Essa intenção do
registro é aguçada pela consciência do mistério que envolve os fenômenos
urbanos, mesmo os mais triviais. Esse senso do mistério é aquele de estar o
tempo todo no equívoco, nos aspectos duplos, ambíguos, múltiplos, na suspeição
do aspecto (imagens dentro de imagens), formas do devir que “serão”, segundo o
espírito do observador.
Se Deus imprimiu “o destino de cada homem na sua
fisionomia”, como disse Balzac (Benjamin 1994: 212), basta, então, observá-lo
cuidadosamente, para ler, em seus sinais exteriores, a sua profissão, vícios e
tudo o mais que marca cada dobra de sua pele. Ou então, basta escutar uma
palavra de alguém que passa para, através do tom de sua voz, ligar o nome de um
pecado a ele. A índole detetivesca do narrador de Poe limita com o espírito
curioso do flâneur, à medida que ambos buscam estudar a aparência fisionômica
das pessoas, para ler-lhes a nacionalidade e a posição, caráter e destino,
através de sinais aparentes, tais como seu modo de andar, sua constituição
corporal, sua mímica facial, como podemos notar nos excertos abaixo:
A subdivisão dos funcionários categorizados de
firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e
calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas,
pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas.
Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao
hábito de ali prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para
pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas correntes de ouro
maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que
existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável. (Poe 1990: 168-169)
É inegável que, no conto de Poe, apesar das diferenças
existentes entre esses dois pólos, podemos dizer que tanto o narrador, como o
misterioso personagem, compartilham características do flanêur. O velho demônio
encarna, num extremo, a erraticidade, a voracidade voyeurística, a solidão
urbana. Vemos, porém, tratar-se de uma personalidade amortecida pela recepção
de choque, um embasbacado, uma marionete agitada pelo ritmo da produção
capitalista e pelo frenesi do consumo. Parodiando Baudelaire, assemelha-se a um
“caleidoscópio desprovido de consciência”. Já o narrador tem a fome da
experiência, somada à perplexidade e ao assombro. Sua perambulação acompanha os
fluxos da cidade e os passos do homem da multidão, buscando, entretanto, fixar,
como fantasmagoria, suas impressões. Essa intenção do registro é aguçada pela
consciência do mistério que envolve os fenômenos urbanos, mesmo os mais
triviais. Esse senso do mistério é aquele de estar o tempo todo no equívoco,
nos aspectos duplos, múltiplos, na suspeição do aspecto (imagens dentro de
imagens), formas do devir que “serão”, segundo o espírito do observador.
O surpreendente e magnífico no conto de Poe é o
jogo de adivinhação: o narrador, ao se concentrar na figura enigmática do
velho, com quem se depara a certa altura no labirinto londrino, não chega a uma
solução. Assim é descrito o encontro com a estranha figura que captura sua
imaginação:
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte
ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de
um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de
imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de
sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe.
Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o
conhecido Retzsch, e não haveria de querer outro modelo para as suas
encarnações pictóricas do Demônio.... Senti-me singularmente exaltado,
surpreso, fascinado. “Que extraordinária história”, disse a mim mesmo, “não
estará escrita naquele peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o
homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o
sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por
entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a
essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades,
consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com
cautela, de modo a não lhe atrair a atenção. (Poe 1990: 177-178)
Essa perseguição ocupará quase o conto todo. A
in-vestigação, com o fim de ler a “extraordinária história” que o narrador
imaginou estar “escrita naquele peito”, encerrar- se-á ao cabo de um dia
inteiro de andança errática. Nas palavras do narrador-personagem, ao cabo de um
dia completo, exausto diante da infindável caminhada em ziguezague,
sobreveio-lhe um aborrecimento mortal. Nesse momento pára em frente do velho,
olha-o fixamente no rosto, como se a mirada frontal lhe pudesse revelar o que
de maneira obliqua não conseguira. O velho simplesmente o ignora, como se fosse
um autômato, e prossegue em sua promenade folle et sans fin, como um “lobisomem
irrequieto a vagar na selva social” (Benjamin 1994: 187):
Quando se aproximaram as trevas da segunda noite,
aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe
fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto
eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. “Este
velho”, disse comigo, por fim, “é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se
a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a
seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro
mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que ‘
es lässt sich nich lesn’ “.( Poe, 1990, p.189-190)
Assim, o conto se fecha, com a frase em alemão que,
no primeiro parágrafo do conto, é utilizada para introduzir a tese de que há
coisas que não se deixam ler. Em outras palavras, há segredos que não podem ser
ditos porque não se deixam ler. Assim, o conto se fecha dentro de uma estrutura
circular, conferindo-lhe certo hermetismo que lhe acentua a atmosfera de
mistério. O hermetismo identifica o mistério. A estrutura circular nos diz ser
necessário a releitura para encontrá-lo, mas ele nunca se revela. Não obstante
essa atmosfera de mistério que deixa no ar ao final, o conto se relaciona
claramente com a crítica de Benjamin à tese convencional, mas insensata, que
racionaliza a conduta do flâneur e que é a base inconteste de muita literatura
a seu respeito. Muito mais do que ler na fisionomia dos transeuntes o seu
caráter ou a sua profissão, o flâneur busca perder-se (ou encontrar-se?) na
anonimia da vida na grande cidade. A City é “a realização do antigo sonho do
labirinto” e, segundo Benjamin, o flâneur, sem o saber, persegue essa
realidade. Busca inútil, essa do narrador de Poe? O saber que o flâneur procura
seria “vizinho à ciência oculta da conjuntura”? (Benjamin 1994: 199). Talvez...
afinal, essa irresolução pode ser entendida como o resultado do desenvolvimento
de um processo que nasce da euforia e de uma grande apetência no início da
narrativa (daquele estado de convalescença) e termina no aborrecimento mortal
da dúvida. Assim, da mesma maneira que “a espera parece ser o estado próprio do
observador impassível” (Benjamin 1994: 197), a dúvida seria a condição final do
processo investigativo do flâneur.
O que podemos observar é que o conto de Poe
antecipa uma questão básica que está na essência da Modernité. Seu narrador
representa o protótipo do escritor moderno, ocupado em capturar a beleza do
efêmero e do transitório, e, para consegui-lo, ele deve emergir na experiência
de sua condição enquanto elemento integrante dessa nova sociedade. Na
“flâneurie”, isto é, “no deambular desprovido de propósitos”, o flâneur nos
oferece a imagem movente, resultado da apreensão de uma fugidia profusão de
imagens instantâneas, cuja essência reside nas fantasmagorias de um cotidiano
vivido nos subsolos do consciente. Na psicologia do flâneur opera a memória
ressurreicionista, que faz com que “as cenas impagáveis que todos nós podemos
rever fechando os olhos”, não sejam aquelas que “contemplamos com um guia nas
mãos”, ou seja, aquelas para as quais dirigimos nossa atenção segundo
propósitos ou interesses despertos; antes, são “aquelas a que não prestamos
atenção, que atravessamos pensando noutra coisa, num pecado, num namorico ou
num dissabor pueril” (Benjamin 1994: 213-214).
Essa é a psicologia do flâneur, que encontra seu
correspondente, hoje, em uma forma de percepção representada pela experiência
pós-moderna do indivíduo que, seja no shopping, seja encapsulado em seu carro,
ou defronte a uma tela de TV ou computador, depara-se com a velocidade e a
fragmentação dos fenômenos num nível de semi-ficção, semelhante à “experiência
da multidão”, que o flâneur urbano vivenciava nas ruas, avenidas, nas
passagens, nos palácios de cristal de fins do séc. XIX e início do séc. XX.
(**RIO DE JANEIRO**, 15 DE ABRIL DE 2018)
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