2.0 - BARIONA OU LE JEU DE LA DOULER ET DE L´ESPOIR¨ - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE
I PARTE
Em A náusea , via-se, de fato, um “personagem
ridículo” que o narrador chamava de “o Autodidata” e que, não satisfeito em
“reclamar para si o humanismo”, confiava ser “na quente promiscuidade de um
campo de prisioneiros, em 14-18, que descobriu o valor indizível do eterno
humano”.
Sartre não disse que havia mudado de opinião,
talvez tivesse se tornado melhor, mais indulgente – mas, afinal, não achava o
Autodidata tão ruim assim.
Não se contentou em se converter à comunidade, ao
amor pelo gênero humano, ao humanismo, ficando o resto, todo o restante, os
outros grandes conceitos, categorias, de sua filosofia, por assim dizer,
intatos.
A conversão muda tudo.
Insinua-se em tudo, carrega tudo.
Como toda verdadeira conversão, apodera-se do ser
inteiro, do sistema filosófico em seu conjunto, e o abala até as profundezas.
Prova disso é Bariona, o famoso conto de Natal
escrito para o Stalag e cuja representação ele disse que coincidiu com a
descoberta marcante. Prova disso é o itinerário da alma sartreana, tal como
aparece na releitura minuciosa, passo a passo, desse texto estranho, ao qual
nem sempre se deu o devido valor, aliás muitíssimo pouco conhecido.
Essa peça corresponde às grandes pontuações da
incerteza sartreana, de sua irresolução e, finalmente, no texto e pelo texto,
entre o primeiro e o segundo Sartre...
Bariona ou Le Jeu de la douleur et de l´espoir... é
o título do conto de Natal, escrito, e encenado, ainda no Stalag , por ocasião
das festas de fim de ano de 1940, por um Sartre decididamente fiel, como em
Paris, na casa dos Leiris, ao seu papel de animador.
Bariona conta a história de um vilarejo da Judéia
sob a ocupação romana. Conta como, tendo os romanos decidido um aumento dos
impostos, o chefe local, Bariona, membro da resistência da Judéia contra o
ocupante, exorta seus concidadãos a responderem, não gerando mais filhos.
Sara, sua mulher, anuncia-lhe, justamente ela,
estar grávida – e também chega, no mesmo dia, do vilarejo vizinho de Belém, a
notícia do nascimento de uma outra criança, “cingida e acalentada em uma
manjedoura”, que os magos e feiticeiros da região anunciam como sendo o
Messias.
O que faz Bariona? Irá – é a sua primeira intenção
– matar esse recém-nascido, de quem o feiticeiro predisse o futuro inteiro,
inclusive crucificação e ressurreição? Irá, pelo contrário, converter-se e
protegê-lo da violência dos romanos, quem, alarmados com a agitação que reina
na região, decidiram, por sua vez também suprimi-lo?
Após refletir, Bariona resolve proteger a criança.
Sacrificando a sua vida, e a de todo o seu vilarejo, pela sobrevivência do
pequeno Messias, retém os romanos o tempo necessário para que Maria, José e o
recém-nascido consigam fugir. E a Sara, despedindo-se, ele diz, em uma última
cena comovente, que, quanto a eles também, ele mudou de idéia: que ela dê a luz
à criança e diga-lhe, um dia, que o seu pai morreu em júbilo!
Que o leitor, familiarizado com os textos de
Sartre, possa surpreender-se com essa história, em que o tema “genofóbico”
parece, de repente, suspenso e, diferentemente do que se passa, por exemplo, em
Os caminhos da liberdade, aparece como uma narrativa feliz, é de se esperar.
Que Sartre possa e deva amarrar a cara, ao ouvir o
personagem de Bariona colocar o destino do mundo nas mãos de um menino-rei, que
nasceu “para todas as crianças do mundo” e ao qual o autor de A náusea não
teria jamais prestado tal homenagem, não é nada inusitado, estranho.
Foi nessa experiência do Stalag, e da escrita, no
Stalag, dessa peça, que nasceu um segundo Sartre, de fato messiânico, otimista,
engajado em um novo sentido e que vira as costas à bela metafísica pessimista,
que era como que um salvo-conduto, uma vacina, contra os extravios políticos.
Bariona é, em versão negra e em versão encantada, a
ilustração da tese sartreana sobre o heroísmo sempre possível, a invencível
liberdade dos homens e o poder que eles têm, em todas as circunstâncias, caso o
escolham, de desafiar os opressores, de polemizar as mazelas e achaques de
sistemas sociais e políticos arbitrários e gratuitos.
Acrescentamos, enfim, visto tratar-se de um
“Mistério”, que a questão-chave, nesse Mistério, é a das “relações entre os
judeus e os cristãos” (grifo nosso). Ora, para essa outra questão, cuja
importância política, na conjuntura da época, nem precisa ser sublinhada, o
texto da peça traz resposta decisiva.
O judeu Bariona, como “crucificado”... Caifás, o
judeu, como quase-apóstolo, anunciando o nascimento, em Belém, de um
“salvador”, que é o Cristo”... O povo da Judéia, tanto os humildes quanto os
grandes, em socorro à divina criança...
A tese, ainda aí, pode, evidentemente, ser
discutida. Pode-se, tanto de um ponto de vista judaico, como de um ponto de
vista cristão, achá-la absurda, redutora, teologicamente maluca ou totalmente
sincretista. Mas não lhe faltam originalidade nem, sobretudo, considerando-se o
local, audácia e eficácia políticas. Pois dessa vez pega, em cheio, a
imagística do povo deicida. Confirma, ilustra, põe em cena a raiz judaica do
cristianismo. E, frente a um público composto, essencialmente, de cristãos,
fica evidente que visa, assim, ao âmago do preconceito anti-semita.
A fim de podermos fundamentar as idéias, faz-se
mister considerar a peça Bariona em sete movimentos.
Primeiro Movimento. Discurso de Bariona. Diante de
Lelius, o general comandante das tropas de ocupação romanas, como diante do
coro dos Anciãos em Betsur, o vilarejo da Judéia de que é o chefe, Bariona
desenvolve uma visão de mundo negra, terrivelmente desesperada, que é, grosso
modo, a de A náusea.
Bariona, cátaro prematuro, como aqueles Perfeitos
que, após terem recebido o Consolamentum, praticavam o endura, um jejum levado
até a morte, ou a abstinência sexual levada também ao extremo, até a extinção
da espécie, defende seu ponto “genófobo”: não quero, diz ele, “renovar com
novos homens a interminável agonia do mundo ; quero os romanos condenados a
reinarem apenas sobre “cidades desertas”.
Segundo Movimento. Discurso dos pastores. Estamos
na montanha, acima de Betsur, onde Paulo, Pedro, Simão e Caifás recebem a
visita do Passante e depois a do Anjo, que vem anunciar-lhes um nascimento
misterioso em Belém. Estamos, em seguida, na praça de Betsur, ao alvorecer,
onde os mesmos emocionados, quase trêmulos, vêm informar aos aldeões o que, na
montanha, lhes foi anunciado pelo Anjo.
Hino á Natureza:
[...] estalos, trauteios, murmúrios por toda parte
(...) parecia que brotos desabrochavam em árvores invisíveis, parecia que a
natureza tinha escolhido aqueles planaltos desertos e gelados para dar a si
mesma, numa noite de inverno, a festa magnífica da primavera .
Hino à Esperança, a pura e bela esperança,
suscitada pela Anunciação:
[...] há noites como esta, diz Paulo; parece que
vão parir alguma coisa, de tanto que pesam e depois, afinal, tudo o que sai é
um pouco de vento, pela aurora .
Hino, canto de amor à Infância – a infância em si
e, depois, a Infância dessa criança, o menino Jesus, que acaba de nascer:
[...] pronto! Diz o Anjo, ele nasceu! Seu espírito
infinito e sagrado está preso em um corpo lambuzado de criança e se espanta de
sofrer e ignorar; aí está, nosso mestre não é nada mais que uma criança... .
Terceiro Movimento. Bariona, de novo. E um Bariona
que, sem reação ao que chama de “balelas” de pastores, vai desenvolver o seu
ponto de vista, dando-lhe toda amplidão e retomando para si a vantagem. Bariona
ateu, definitivamente ateu, desafio ao Céu, bravata, síndrome de Don Juan:
[...] mesmo que o eterno me mostrasse a sua face
entre as nuvens, recusaria ouvi-lo, pois sou livre; pode reduzir-me a pó ou
inflamar-me como a um facho, pode fazer-me torcer em sofrimentos como um
graveto no fogo, mas nada pode contra esse pilar de bronze, contra essa coluna
inflexível: a liberdade do homem .
Bariona judeu, definitivamente judeu,
definitivamente pessimista então,
[...] o Messias não veio e, se querem que eu lhes
diga, não virá nunca; esse mundo é uma interminável queda; O Messias seria
alguém que pararia essa queda, que reverteria de súbito o curso das coisas e faria
quicar o mundo no ar como uma bola.
(**RIO DE JANEIRO**, 17 DE ABRIL DE 2018)
Comentários
Postar um comentário