#3.0 - DESEJO DE REDENÇÃO E VONTADE DE PODER - PARTE VII# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE
A vaidade do homem do subterrâneo convence-o de sua própria
superioridade e ele despreza a todos; mas, como quer que essa superioridade
seja reconhecida pelos outros, odeia o mundo por causa de sua indiferença e
descamba para uma aversão contra si próprio por causa de sua humilhante
dependência. Não é a essa idéia que Dostoievski chama de “iniciar no ideal de
Sodoma e terminar no de Gomorra”? É essa a dialética psicológica de um egoísmo
consciente que procura conquistar o reconhecimento do mundo e, em compensação,
apenas suscita desprazer e hostilidade. Essa dialética da vaidade se compara à
dialética do determinismo na primeira parte e tem o mesmo efeito de emparedar o
ego num mundo alienado de todo contato humano. Assim como o determinismo
dissolve a possibilidade de reação humana na primeira parte, do mesmo modo, na
segunda, a vaidade bloqueia toda fraternidade social.
O segundo Evangelho inicia com traço que é peculiar a Marcos: “Princípio
do Evangelho de Jesus Cristo” (Mc 1,1). Esse cabeçalho do livro de Marcos não é
um título nem uma definição de sua obra, mas antes uma espécie de lema.
Utilizando a palavra Arché, ele tem em mente uma história: a da manifestação do
Cristo que se revela a si mesmo revelando aquilo que Deus realiza por meio dele
no mundo. Arché afasta imediatamente a idéia de um Reino repentinamente
estabelecido, em sua totalidade e perfeição. O Reino, pelo contrário, inicia de
modo humilde e desconcertante e passa por um desenvolvimento, a existência
terrestre de Jesus, para alcançar o desabrochamento em sua ressurreição e
glorificação. Por outro lado, esse princípio é novidade absoluta, evocando o
“princípio” do Gênesis: desta vez trata-se da nova criação, do nome tempo da
salvação em Jesus Cristo e de novo estatuto para o homem e para a humanidade.
A humanidade, na terra, após a Queda, está sujeita às tentações do
egoísmo, não se podendo contestar o poder dessas tentações.
Uma vez convencido, para sua satisfação, de que deve existir uma vida no
além-tumulo, Dostoievski chega a imaginar que forma essa vida podia talvez
assumir: “O que é, onde é, em que planeta, em que centro, isto é, no seio da
síntese universal, isto é, Deus? – não sabemos. Segundo Dostoievski, um único
aspecto dessa vida futura foi revelado à humanidade pelo próprio Cristo, “o
ideal sublime e final do desenvolvimento de toda a humanidade”. A chave está
contida numa citação de São Mateus: “As pessoas não casarão, nem se darão em
casamento, mas serão como os anjos no Céu”.
Dostoievski enfatiza a importância da família como precondição
necessária para a existência da vida humana em si em sua luta para realizar o
ideal cristão. Ainda assim, considera a família oposta inelutavelmente, tendo
em vista sua exclusividade egoísta, à própria essência desse ideal tal como está
corporificado na lei do amor. Os desejos humanos comuns, mesmo os mais
legítimos, devem entrar em inevitável conflito com os imperativos da lei cristã
do amor, e não se pode deixar de pensar na famosa declaração de Dimitri
Karamazov: “Deus e o demônio estão em luta [...] e o campo de batalha é o
coração do homem”. No Diário de um escritor, Família e coisas sagradas, assim
nos diz: “A santidade de uma família verdadeiramente santa tem qualquer coisa
de tão resistente, que não ser abalada por tão pouco, mas se tornaria, pelo
contrário, mais sagrada”
O demônio não é apenas a tentação de infringir o código moral da
sociedade e entregar-se ao ideal de Sodoma, mas é também o dever, através do
casamento e da família, de cumprir as mais sacrossantas obrigações da
sociedade.
Por que o cristianismo não reina na terra se é verdadeiro?, perguntam.
Por que os homens sofrem até hoje e não se tornaram irmãos? Foi essa a pergunta
a que Strákov tentou responder em sua controvérsia com Antônovitch, e agora
Dostoievski responde-a em termos que, se tivessem sido revelados aos leitores
de sua revista, certamente teriam provocado algum espanto.
Está muito claro por quê – começa Dostoievski -, porque esse é o ideal
do futuro, da vida final do homem, e na terra o homem encontra-se num estado de
transição. Acontecerá, mas somente depois de atingir a meta, quando o homem
renascer no final, de acordo com as leis da natureza, em outra forma que não
casa nem se dá em casamento .
Em seguida, Dostoievski indica que
[...] o próprio Cristo profetizou seus ensinamentos apenas como um
ideal, previu que a luta e o desenvolvimento continuarão até o fim do mundo (o
ensinamento sobre a espada)... .
Após essa referência a São Marcos, que assevera ter Cristo dito “Não
trago a paz mas a espada”, Dostoievski compara a vida na terra condenada a uma
luta interminável, com sua contraparte celeste realmente diferente.
Mas lá – uma existência inteiramente sintética, eternamente prazerosa e
realizada, para a qual, portanto, “não haverá mais tempo´”. A frase citada,
extraída do Apocalipse de São João, alude talvez, indiretamente, à própria
apreensão ocasional desse estado de ser por parte de Dostoievski.
Prosseguindo em sua disputa com os “anticristos” e em palavras que muito
provavelmente se referem ao ideal do Palácio de Cristal que atacara em Memórias
do subterrâneo, Dostoievski observa que
[...] os ateus que negam deus e a vida futura estão muito inclinados a
imaginar tudo isso numa forma humana, e nisso pecam. A natureza de deus é
exatamente o oposto da natureza do homem. O homem, de acordo com as grandes
descobertas da ciência, vai da multiplicidade à Síntese (grifo nosso) , dos
fatos à sua generalização e compreensão. Mas a natureza de deus é diferente. É
a síntese total de todo ser que se examina em multiplicidade, em Análise .
Por “ciência” Dostoievski entende a filosofia no sentido acolhido pelo
pensamento russo a partir do alemão e parece estar reafirmando a distinção
kantiana entre o entendimento analítico e o sintético. O primeiro depende de
dados fornecidos pelos sentidos; o segundo é idêntico ao intellectus
archetypus, “o intelecto infinito, divino que”, como escreveu Ernst Cassirer,
“não absolve algo de fora de si mesmo mas cria os objetos de seu
conhecimento."
A concepção de Dostoievski de Deus, a julgar pelas observações que
mostramos aqui, é nitidamente abstrata e filosófica, derivada, nesse estágio de
sua vida, mais do idealismo alemão do que da ideologia mística da Igreja
oriental. Pode ser que ao responder aos “anticristos”, Dostoievski se restrinja
deliberadamente aos argumentos que não apelam para a experiência religiosa; ou
talvez ainda não esteja familiarizado com a teologia tal como alguns
comentadores admitiram.
Conforme Przybylski, Dostoievski adotou de fato semelhantes opiniões
cristológicas “para opor ao antropomorfismo de Feuerbach ao socialismo do
século XIX.
Para Bultmann, fica evidente que o Novo Testamento é um universo mítico,
povoado de personagens divinos ou demoníacos, pelo qual transitam forças
misteriosas, dividido em setores espaçais e temporais. Ele descreve o Cristo
como ser preexistente, como o Filho de Deus, encarnado no seio da Virgem Maria.
Quando o Novo Testamento fala dos milagres de Jesus, da transfiguração, da
ressurreição, de Pentecostes, recorre à linguagem mítica.
(**RIO DE JANEIRO**, 16 DE ABRIL DE 2018)
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