#3.0 - DESEJO DE REDENÇÃO E VONTADE DE PODER - PARTE V# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE
Segundo Dostoiévski, o verdadeiro sentido cristão, a pedra angular do
cristianismo, de Cristo, é aquele que reintroduz – pois que fora se perdendo
nos caminhos do não, nas doutrinas que professam a ilimitação da liberdade
humana, dentre elas o “niilismo”, nos sistemas autoritários que reduzem a
liberdade humana, que aniquila vidas, nos dogmas – no devir tudo o que fora
perdido, o amor, a compaixão, a solidariedade, a fé e a esperança. O verdadeiro
espírito subterrâneo será sempre o verdadeiro “espírito de Cristo”, perdão e
amor, compreensão e solidariedade.
Se as ditas “virtudes”, obediência, piedade, justiça, podem ser
benéficas, e o são, o vizinho as elogia, já que elas são artífices da salvação,
da ressurreição. Na verdade, Dostoiévski quer dizer que as virtudes de um homem
são boas pelos resultados que elas podem ter para os outros, para os homens,
para a sociedade, para a humanidade.
A verdade, a verdade indiscutível é que Dostoiévski só vê o mundo
através do prisma do cristianismo. Os ensinamentos doutrinários do Homem de
Nazaré banham a sua alma e a sua vida com uma luz clara e intensa. Ele, porém,
não os apregoa e proclama aos brados em seus romances, como o fez Leon Bloy.
Ele não exerce nenhum apostolado; procura unicamente vivê-lo e demonstrar, pelo
fascínio da sua visão, que somente em Cristo o homem encontrará os caminhos da
ressurreição e da vida.
À primeira vista, Dostoievski parece adepto de um cristianismo de modos
primitivos, e essa impressão se explica facilmente; não só por ser ele um fiel
da ortodoxia russa, como também pelo fato de seus sentimentos religiosos serem
cheios de respeito pela liberdade de consciência, malgrado certa eiva de
sectarismo em relação ao catolicismo – o que, antes de tudo, é uma máscara para
protegê-lo da censura czarista. Dostoiévski sabe que a fé, como o amor,
transfigura a realidade interior do homem, fá-lo nascer de novo, abre-lhe
horizontes inesperados, iluminando-o com uma luz sobrenatural e muito viva. Por
isso, estabelece a situação, coloca o homem dentro dela e espera que o milagre
se realize.
Se a vida é vontade de potência, segundo a análise genealógica, mesmo
ela se manifestando como uma reação, ou mais precisamente, munida de fraqueza,
negação, isto é, quando exprime uma vontade de nada, um niilismo, mesmo assim,
é vontade de potência. Assim fala a Genealogia da moral.
Ao longo desse ensaio, desde os seus primórdios, buscamos de-monstrar a
importância do pensamento e vida de Dostoievski, e em todos os caminhos
perpassados, a dimensão mais que explícita: o “desejo de ressurreição, de
redenção” que permeia toda a obra dostiévskiana. O desejo, a vontade ou um
pensamento divinamente criador são demasiadamente plenos de si mesmos.
Ao mesmo tempo, como um movente crítico, um outro pensamento, ambos se
distanciam, em inúmeros aspectos, mas há algo que os aproxima, e este “algo”,
em nossa concepção, o que re-colhemos e a-colhemos da leitura e da meditação da
obra dostoiévskiana, é um “paralelo” entre Nietzsche e Dostoievski, uma relação
no tangente às posturas e condutas, da ética e da estética, da consciência e
espiritualidade, sobremodo, ressalte-se e memorize-se, acerca destes
“conceitos”, “desejo de redenção” e “vontade de poder”, à luz do cristianismo,
a “morte” de Deus, a “ressurreição” a partir de Deus, de Sua Palavra.
Em termos da obra dostoievskiana, encontramos várias dialéticas:
dialética do Eu/Consciência e o Outro/Consciência, dialética da loucura e do
real, dialética do ser e dialética da participação, dialética da unidade e do
determinismo, todas elas se movem em direção à espiritualidade, nascida no
subterrâneo, da vida mesma em relação com as experiências e vivências, no
quotidiano das coisas e dos homens, no mais profundo da alma humana, na leitura
e na vivência da Bíblia, no desejo de redenção, de ressurreição.
Anotamos em nosso exemplar uma passagem: “Utilizar-me dessa passagem.
Não imagino ainda o porquê dela”. Ela só se revelaria no tempo – a idéia que
ela se nos apresentava se mostrava muito distante. Só agora é-nos possível avaliar
a sua profundidade. Re-colhemos e a-colhemos em Bérgson: com ela poderemos
contemplar às dialéticas-moventes.
[...] entre estas duas formas do pensamento solitário, subsiste o
pensamento comum, que foi originariamente todo o pensamento humano. É este que
a linguagem continua a exprimir .
A idéia da vida de além-túmulo sempre emocionou Dostoievski até o
sofrimento, até o espanto e o pavor... Tudo isso provém a princípio do medo,
inspirado pelos fenômenos grandiosos da natureza.
[...] morrerei e não haverá nada e sòmente “a relva brotará sobre o
túmulo”, como se exprime um escritor. É horrível! Como recuperar a fé? .
A fé, a religião da compaixão, remete ao culto do bem-estar. Isso
significa nada mais nada menos que a vida humana possa ser por princípio não
conflituosa, que se possa exorcizar dela todo e qualquer sofrimento. Ele mesmo
dissera que a literatura, as artes, o exorcizava de seus fantasmas, dúvidas, a
ela se entregava de corpo e alma. Se a vida não for mais conflituosa, se a fé
realiza a vida além-túmulo, se enfim as “contradições” forem todas superadas,
livre curso poderá ser dado às fantasias sobre o futuro. Neste sentido, é que
Lisa em Os irmãos Karamázovi indaga como recuperar a fé.
Como não iríamos nós não haver de estar sôfregos pela eternidade,
ansiosos pelo nupcial anel dos anéis, pelo anel do retorno das coisas?
Digam-nos: como podia ser que, precisamente nas horas (sim, precisamente nessas
horas) em que com maior clareza concebia todas as delicadezas “do Belo e do
Grande” – como se dizia outrora – nos acontecesse, não só projetar, mas
realizar ações tão vis, que...?
Só o que cria o fim dos homens e o que dá sentido e o futuro à terra, só
esse cria o bem e o mal de todas as coisas. Quanto mais nos aprofundamos no Bem
e “no Belo e no Grande”, mais nos atolamos no lodo e mais tentados ficamos de
afogar-nos aí, por completo. Mas o ponto capital é que, no caso, nada há de
aparentemente anormal: parece-nos que tudo é natural.
Para o homem, a preservação de seu livre-arbítrio é benefício que pode
ou não ser exercido em harmonia com a razão, mas que, de qualquer modo, sempre
quer preservar o direito de escolher, e esse “benefício” primacial não pode ser
incluído nos sistemas dos amantes da humanidade porque torna impossível para
sempre o seu sonho de mudar a natureza humana para desejar apenas o racional.
O que, especificamente, podia ser o “eidos” da realização humana para
desejar a espiritualidade, a redenção e a ressurreição? O que habita esse
desejo? Se olhamos a história da humanidade, em termos de Deus, de Jesus
Cristo, o cristianismo, evangelização e espiritualização – o cristianismo para
Dostoievski, representado em toda a sua obra, é evangelização, é
espiritualização, Cristo é a “semente”, a “origem” – é o espírito, a busca de
amor, compaixão, solidariedade, a “verdadeira fé” e esperança. Eis a pedra
angular da obra dostoievskiana: fé e esperança, à luz do Evangelho. Assim, o
que habita o desejo de espiritualidade é a Palavra de Deus.
A nossa fé cristã entende como Deus aquela realidade absolutamente
transcendente e infinita para a qual tende, insaciavelmente, o ser humano.
Quanto mais ele comungar com o Infinito, quanto mais se abrir ao Absoluto e se
entregar ao Amor de Deus, mais pessoa humana se torna. A sede infinita do ser
humano trai a presença do Mistério de Deus dentro do coração. O nosso grito de
plenitude é o eco da voz de Deus dentro da realidade humana. A nossa pobreza
infinita é a forma que Deus toma para fazer-se presente no ser humano. É o
divino "do" ser humano e não apenas o divino "no" ser
humano.
O amor é um tesouro tão inestimável que em troca podes adquirir o mundo
inteiro e redimir não só teus pecados, mas os dos outros. Vai e não temas nada.
.
(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE ABRIL DE 2018)
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