#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
X
PARTE...............
A
busca angustiada e incessante de Carlos Bruno pela razão da existência,
resolve-se assim na redescoberta ou reencontro da inocência e da pureza
originais, perdidas no sorvedouro da vida e representadas pelos elementos
naturais, revestidos, no romance, de sugestiva carga simbólica. A paz interior,
certa alegria ou mesmo a perspectiva de felicidade obtida pelo homem em
contacto com a natureza, característica freqüente na obra de Vergílio Ferreira,
constitui outro pilar na ponte de semelhanças que ligam o romancista a certa
literatura existencial francesa, ainda, muito especialmente Albert Camus.
É
evidente que o sujeito vergiliano não é mais o ego cartesiano nem o Um
sintético de Hegel. Na verdade, a crise do sujeito tal como ela se manifesta em
Vergílio já se prenunciava em Kant. Para Kant, o sujeito não pode ser objeto de
conhecimento; não é substância (como antes em Descartes) nem um devir (como
depois em Hegel). Hegel, de certa forma, devolveu ao sujeito uma segurança
ameaçada no kantismo. A síntese da dialética hegeliana (paga com o evitamento
da questão da negatividade) restituiu ao
sujeito a possibilidade de se pensar como uno.
Um
homem a quem só resta sentir e pensar. Mas pensar era ainda enfrentar um
conflito, porque era acusar-se ou decidir-se a um rumo. Era, afinal, pelo ato
de pensar, que Bruno se impunha ou que os outros lhe impunham a solidão para
onde a sua vida deslizara, porque ele sabia demais, indagava demais, discutia
demais e a sua consciência crescera desmesuradamente e já não sabia naquele
exíguo universo humano. Esse era o crime de que o acusavam: - pensar. Por isso,
já não era entre os homens que Bruno mais se reconhecia e encontrava, mas entre
os próprios elementos da natureza bravia, fosse nas massas pedregosas da
montanha ou nos cerrados das matas seculares. O percurso vivencial de Carlos
Bruno, narrado em Mudança, é o percurso da sua própria aprendizagem do
existir-no-mundo, o percurso da formação de uma consciência, de um pensamento,
depois sempre irremediavelmente impulsionado para a frente, o que o leva a
dizer ao final do romance:
“Mas
como queres agora que eu pare e ande ao mesmo tempo? Que saiba e não saiba que
sei? Do alto da minha lucidez, estou só”.
Nítido
Nulo, de Vergílio Ferreira é um livro de palavras obsessivas. Diante do mar, um
prisioneiro rememora com desconcertantes e vertiginosas mudanças de pensamento
todo o seu passado. Paradoxalmente, a variabilidade do seu pensamento instaura
no leitor uma tautologia que obriga a repensar o lugar da repetição. Entre as
malhas deste relacionamento ergue-se a história do prisioneiro. Observemos um
pequeno exemplo. Quando o protagonista (o “prisioneiro” relembra os banhos que
tomava na praia, quando pequeno, descreve-se deste modo:
“(...) com o meu fato às riscas de presidiário”.
Mircea
Eliade observa que é freqüentemente o tema do homem, primordial, perto da
perfeição, que decai, tornando-se mortal, frágil, ameaçado. O anseio de
transformar o mundo justifica-se, então, pelo desejo de retomada do poder
perdido. Isso leva o homem a enfrentar o ciúme dos deuses.
A
estruturação cíclica do tempo mítico assegura a manutenção do processo de
transformação, rechaçando o silêncio e a imobilidade do incriado, “Viver é
conquistar o caos”, diz Van Der Leewuv. É um processo penoso, cheio de perigos
e conflitos.
Toda
criação requer uma destruição. Não é apenas aniquilar as forças que se opõem ao
processo, como é lógico. Mas também destruir aquilo que de melhor se propõe no
mundo.
A
arte concebida como ‘substituto da vida’, a arte concebida como o meio de
colocar o homem em estado de equilíbrio com o meio circundante – trata-se de
uma idéia que contém o re-conhecimento parcial da natureza da arte e da sua
necessidade. Desde que um permanente equilíbrio entre o homem e o mundo que o
circunda não pode ser previsto nem para a mais desenvolvida das sociedades,
trata-se de uma idéia que sugere, também
que a arte não só é necessária, mas igualmente que a arte continuará sendo
sempre necessária.
“Ensine-me,
seja, o próprio ser que só é na medida em que for com o Senhor, conviver com o
Absoluto, deixar-me conduzir pelo eterno. Ensine-me o sentido de sua distância
quando celebro o seu jorro, sobretudo ser vida, ser participação na plenitude
de sua vida, a partir da verdade eterna da vida sem fim – fácil amar,
suficiente res-peitar e com-preender – creio esta ser a mensagem que re-colho,
com-(templ)-ando-a: a gente percebe que a voz de seu silêncio vai se tornando
conhecível nas es-tâncias do cotidiano, nas ins-tâncias de nossa continua
correria” (NA Fonte Originária do Rio de Águas Límpidas`, Folha de Curvelo,
15/11/99).
“Sem
pensar em nada”, diz Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O Zen busca
exatamente esse não-pensar que corresponde a pensar com “a cabeça de trás” ou
“Inconsciente cósmico”, segundo Suzuki. Para o Zen, a razão só nos logra e, se
a privilegiamos, erramos fatalmente. O racionalismo é uma doença da qual
precisamos curar-nos pelo esvaziamento, pelo “desaprender”.
Se
fosse da natureza do homem o não ser ele mais do que um indivíduo, tal desejo
seria absurdo e incompreensível, porque então como indivíduo ele já seria um
todo pleno, já seria tudo o que era capaz de ser. O desejo do homem de se
desenvolver e completar indica que ele é mais do que um indivíduo. Sente que só
pode atingir a plenitude se se apoderar das experiências alheias que
potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um homem sente
como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um todo, é
capaz. A arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo com o todo.
Reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de
experiências e idéias.
Essa
definição da arte como o meio de tornar-se um com o todo da realidade, como o
caminho do indivíduo para a plenitude, para o
mundo em geral, como a expressão do
desejo do indivíduo no sentido de se identificar com aquilo que ele não
é, essa definição não será talvez demasiado romântica? Não será temerário
concluir, com base no nosso próprio senso de identificação quase-histérico com
o herói de um filme ou de um romance, que seja esta a função universal e
original da arte? Não conterá a arte, também, o contrário dessa perda
“dionisíaca” de si mesmo? Não conterá a arte igualmente o elemento ‘apolíneo’
de divertimento e satisfação que consiste precisamente no fato de que o
observador não se identifica com o que está sendo representado e até se
distancia do que está sendo representado, escapa ao poder direto com que a
realidade o subjuga, através da representação do real, e liberta-se na arte do
esmagamento em que se acha sob o cotidiano? A mesma dualidade – de um lado, a
absorção na realidade e, de outro, a excitação de controlá-la – não se
evidencia no próprio modo de trabalhar do artista? Não nos devemos enganar
quanto a isso: o trabalho, para um artista,
é um processo altamente consciente e racional, um processo ao fim do
qual resulta a obra de arte como realidade dominada, e não – de modo algum – um
estado de inspiração embriagante.
Diz-nos
Vergílio Ferreira, em o Mito e a sua Mitificação:
“Mas
entre o gesto e a obra, a unidade quebrou-se – restabeleceu-se. Sabemos agora
que as linhas dessa obra são a condenação do nosso gesto. Sabemos agora que as
linhas da esperança que alienamos, do medo que desce sobre nós, passam no exato
limite em que passou a nossa mão. Sabemos que para lá de nós estamos nós ainda.
E porque o sabemos, o mito se nos desterrou para o ídolo que recusamos. Da obra
que modelamos e era mais do que nós, sabemos que é apenas o mais que somos”.
Entre
estes dois polos, o do “realismo” e o do Mito, inscreve-se “Mudança”.
“Mudança”
é em si próprio um romance limite na medida em que representa uma síntese não
só da evolução da obra ficcional de Vergílio Ferreira, mas do próprio gênero
romântico, sendo isto possível de verificar tanto em nível técnico-temático
quanto no plano das funções das personagens. Se, por um lado, a problemática
social – um mundo em mudança – satisfaz à pressão epocal, por outro, o
desajuste dos dois protagonistas estruturadores da ação – indica temperatura no
do termômetro das reações humanas, temperatura que seria, mais tarde, também
uma conseqüência do tempo histórico.
O
problema da modificação da personagem dentro das inovações da estética
romanesca faria lembrar ainda Dostoiévski, porque é com ele que essa
metamorfose se inicia, com as suas personagens, que, mais do que a fotografias,
se assemelham a retratos expressionistas em que a indefinição dos contornos e a
fragilidade da luz quase absorvida pela sombra, sugerem – e com muita
eloqüência e significação – muito mais do que dizem. Foi certamente isso ou
algo parecido que Bakhtin encontrou na sua leitura crítica do romancista russo,
o que o levou a dizer que o herói interessa a Dostoiévski, não enquanto
fenômeno na realidade, possuindo traços caracterológicos e sociológicos
nitidamente definidos, nem enquanto imagem determinada, composta de elementos
objetivos com significação única, e sim, como ponto de vista particular sobre o
mundo e sobre ele próprio, como a posição do homem que busca a sua razão de ser
e o valor da realidade circundante e da sua própria pessoa. É evidente que esta é uma posição existencial do herói romanesco em que está
implícita a própria concepção fenomênica do mundo, os próprios questionamentos
interiores do romancista.
A
nova concepção do mundo, comum a Vergílio Ferreira e ao protagonista de
“Mudança”, não é, finalmente, mais do que o despertar para uma problemática
muito mais séria, muito mais profunda, do que a do jogo de interesses do Ter ou
não Ter e que se refere à própria descoberta ou conscientização do ser no
mundo, à circunstância da passagem do homem por um universo de contingências.
Estudando
a evolução do romance num painel analítico que parte de Flaubert e dos
herdeiros do seu realismo e a que comparecem, entre outros, Dostoiévski,
Proust, Virgínia Woolf, André Gide e James Joyce, Erich Auerbach observa que na
transição do romance realista para as manifestações contemporâneas de tal
gênero literário, o escritor, como
narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente; quase
tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência das personagens do
romance. Na medida das transformações que lhe são impostas pelas novas
experiências literárias, a narrativa de ficção vai-se transportando do plano
objetivo para o nível da consciência, verificando-se a diluição da ação
romanesca e a quebra cronológica da matéria narrada. O tempo adquire uma nova
dimensão de importância, passando a ser considerado e utilizado como valioso
elemento ficcional, e adquirindo, além da sua concepção meramente física, um
grau de subjetividade que o vincula à problemática existencial largamente tratada
pelo romance moderno.
Toda
a nossa vida, desde o primeiro despertar de nossa consciência, é qualquer coisa
como este discurso indefinidamente prolongado. Sua duração é substancial,
indivisível enquanto duração pura. A análise psicológica mostra-nos na memória
planos de consciência sucessivos, desde o “plano do sonho”, o mais distendido
de todos, no qual se esparrama, como sobre a base de uma pirâmide, todo o
passado da pessoa, até o ponto, comparável ao topo, em que a memória não é mais
do que a percepção do atual com as
ações nascentes que a prolongam.
No
romance “Mudança”, esta ‘descoberta’ é vista através do amadurecimento da consciência de Carlos
Bruno, consciência que, paulatinamente, cresce de tal modo dentro das dimensões
da obra, que praticamente, a partir de certa altura, passa a ocupar todo o
espaço do romance. O despertar da consciência das personagens para as questões
da sua própria existência e seu relacionamento com o mundo.
Para
o senso comum, o objeto existe para um espírito, como o queria Berkeley... Mas,
por outro lado, surpreenderíamos da mesma maneira este interlocutor dizendo-lhe
que o objeto é totalmente diferente do que ele percebe... Logo, para o senso
comum, o objeto existe em si mesmo e,
por outro lado, o objeto é, nele mesmo, pitoresco como o percebemos: é uma
imagem, mas uma imagem que existe em si. Como uma doutrina que se punha assim
no ponto de vista do senso comum pode parecer tão estranha? Explica-se isso
facilmente quando seguimos o desenvolvimento da filosofia moderna e quando
vemos como ela se orientou desde o início para o idealismo, cedendo a um
impulso que era o mesmo da ciência nascida de pouco. O realismo se colocou da
mesma maneira; ele se definiu por oposição ao idealismo utilizando os mesmos
termos que este; de modo que se criaram
entre os filósofos certos hábitos de espírito em virtude dos quais o “objetivo”
e o “subjetivo” eram divididos quase da mesma maneira para todos, qualquer que
fosse a relação estabelecida entre os dois termos e a escola filosófica a que
se estivesse ligado.
Uma
literatura classista, denunciante, reivindicatória e recortada sobre uma
estética realista, surgida entre os anos 20 e 40, do século XX, com as
resistências que se organizam contra os regimes de força instaurados em diversas
partes do mundo, fatalmente adotaria uma perspectiva marxista, tanto no plano
político quanto no artístico. No ensaio O Estatuto Ambíguo do “Neo-Realismo”
Português, Eduardo Prado Coelho, para demonstrar a convergência do Neo-Realismo
para um posicionamento marxista, utiliza, do Livro III de O Capital, de Marx,
os conceitos de reino de necessidade e de reino de liberdade, colocando assim o
seu pensamento:
‘Para
uma teorização realista, toda a arte se situa no limite oscilante entre o reino
da necessidade (da escassez, da privação, da incompletude, da subordinação dos
meios ao fim) e ao reino da liberdade (
da plenitude, da lucidez, da harmonia, da reconciliação, da soberania dos meios
tornados fins multiplicando-se num jogo infinito). Enquanto no reino da
necessidade o homem se transforma em instrumento dos outros ou de si mesmo,
alienando-se em nome de exigências de rendimento e de produtividade, no reino
da liberdade, o homem inventa a face solar, autonomiza-se na sua dimensão mais
profunda, abrindo-se ao universo do jogo, do consumo inútil e do prazer”.
(**RIO
DE JANEIRO**, 27 DE ABRIL DE 2018)
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