#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO II PARTE
No budismo, por exemplo, vemos o príncipe Siddharta mergulhar
radicalmente na sua cultura religiosa, para, no final dessa etapa do processo,
com sua iluminação (que é outro nome para o que aqui estou chamando de
revelação) ter de negar esta cultura para de fato ser fiel a ela. Dentro da
cultura da Índia, a religião, em grande parte, tinha se tornado um discurso
legitimador de uma sociedade extremamente injusta, congelada num terrível
sistema de castas. Os princípios mais radicais do próprio hinduísmo se opõe a
isto, pois partem de uma igualdade radical de todos os seres . Entretanto, na
prática, os donos do poder estavam usando estes princípios para justificar a
injustiça reinante. Assim Siddharta teve de se opor a esta sociedade e à
religião que a justificava, para ser fiel à sua iluminação . Por causa disso
ele foi perseguido pelos lideres religiosos de seu país - sendo mesmo acusado
de ateu - e se não chegou a ser assassinado, como aconteceu com Jesus e outros
profetas - inclusive Gandhi - que tiveram prática semelhante, foi porque no
contexto da Índia, naquele momento, a violência não se expressava de forma tão
explícita como em outros lugares, como na Judéia sob o domínio do Império
Romano, do tempo de Jesus, por exemplo.
Acompanhando com atenção a vida de Siddharta podemos observar que a
iluminação ( revelação) que olhada de fora pode parecer algo súbito,
inesperado, realmente não se dá desta forma. É fruto de um longo processo.
Inicialmente, ele estava plenamente integrado no seu mundo. A lenda nos conta
que o seu pai criara um forte esquema para que ele nunca visse o negativo que
existia no mundo, um dia porém ele teria escapado da vigilante proteção do pai
e descobriu a dor. Isto se deu através do seu encontro com um homem pobre e
doente, um velho e um morto, pessoas que não se encaixavam na totalidade do seu
mundo. A partir desse dia a inquietação entrou em seu coração. E apesar do amor
que sentia pelo seu mundo - pelos seus pais, sua esposa, seu filho - teve de
romper com ele. Passou por diversos grupos de ascetas, treinando com diversos
mestres. Por fim resolveu refugiar-se numa floresta com um grupo de amigos com
quem levou os exercícios ascéticos ao seu máximo. Quase morreu. Foi salvo
graças à uma jovem camponesa que lhe deu leite quando o encontrou desfalecido e
que, a partir de então, passou a levar-lhe diariamente leite e arroz.
Convivendo apenas com ela e com um jovem guardador de búfalos continuou sua
prática, agora através do que passou a chamar o caminho do meio, procurando
nunca se entregar ao domínio das paixões mas também respeitando os limites e
necessidades do seu corpo. Continuou sua meditação contínua, sentado sob a
árvore Bodhi ou andando pela floresta. Até que um dia, aconteceu. A meditação
foi como um pássaro de sonho que chocou os ovos da sabedoria . Iluminação.
Revelação.
Através deste exemplo podemos ver com clareza que a iluminação
(revelação) não é resultado de uma intervenção arbitrária de um ser ou uma
força extra-histórica e sim conseqüência de uma consciência que pára e olha
profundamente a história com a qual se defronta . Atenta, de modo muito
especial, para a voz do Outro que, de alguma forma, fica fora do conhecido, do
dominante, do mundo estabelecido.
A solidão de Luís da Silva, em Angústia, de Graciliano Ramos, cola-se à
vida de um pequeno funcionário, de veleidades literárias, mas condenado a
esqueirar-se na mornidão poenta das pensõezinhas de província e a repetir até à
náusea os contatos com um meio onde o que não é recalque é safadeza. Tudo nesse
romance sufocante lembra o adjetivo “degradado” que se apõe ao universo do
herói problemático. A existência de Luís da silva arrasta-se na recusa e na
análise impotente da miséria moral do seu mundo e, não tendo outra saída,
resolve-se pelo crime e pela autodestruição. O livro avança com a rapidez do
objeto que cai: sempre mais velozmente e mais pesadamente rumo à morte e ao
nada. Estamos no limite entre o romance de tensão crítica e o romance
intimista. De um lado, a brutalidade da linguagem que degrada os objetos do cotidiano,
avilta o rosto contemplado e cria uma atmosfera de mau-humor e de pesadelo. De
outro, a auto-análise, a “parada” que significa o esforço de compreender e de
dizer a própria consciência. E tudo parece preparar o longo monólogo final que
abraça um sem-número de imagens de um mundo hostil e as aquece com a febre que
a recusa absoluta produziu na alma do narrador. Romance existencialista avant
la lettre, Angústia foi a experiência mais moderna, e até certo ponto marginal,
de Graciliano. Mas a sua descendência na prosa brasileira está viva até hoje.
No livro de memórias, Infância, uma interpretação existencial acharia
numerosas pistas, mas creio que subsistiria sempre como categoria unificante a
idéia de rejeição que marca o conjunto dos romances e aqui aparece em toda
parte, desde o desenho admirável que Graciliano faz dos pais, primeiros mestres
na escola do medo e do arbítrio:
“Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério,
de testa larga, uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo
rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a
mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos
maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses
dois entes dificeis ajustavam-se. Na harmonia conjugal a voz dele perdia a
violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se
amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no
cocoruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém,
ranger de dobradiça ou choro de criança, olhe restituía o azedume e a
inquietação”.
Publicando em 1934 o seu segundo e seu maior romance, não se distanciou
Graciliano Ramos do interesse psicológico. O que houve a mais de Caetés foi o
corajoso aprofundamento de seu tema, foi o arrojo de mexer no que o homem tem
de mais íntimo e de mais misterioso. Isso proporciona a S. Bernardo uma
universalidade epopéica a que poucos romances brasileiros poderão aspirar. O
drama econômico da vida social na região e os fenômenos típicos da propriedade
só comparecem no livro porque são eles, justamente, que porão a funcionar o
complexo Paulo Honório. O objeto do romancista é o personagem e não o ambiente,
nem a sociedade. Ao contrário do “Ciclo da Cana-de-açucar”, esse sim eminente
“social”, isto é, visando antes documentar um período ou vários períodos de
transição econômica, S. Bernardo não depende das transformações exteriores nem
do sistema de vida na sociedade circundante para ser o que é. Talvez me digam
que se fosse outra a sociedade Paulo Honório deixaria simplesmente de existir,
porque seria outro homem: concordo, porém reafirmo que a preocupação essencial
do romancista não foi a de marcar literariamente os caracteres de uma sociedade,
mas ao caráter de um personagem. É um romance psicológico no mais amplo sentido
da palavra, e - assumindo a minha posição de crítico - que se iguala em
genialidade a um Dostoiévski, Goethe, Gustav Flaubert...
Em Graciliano Ranos, o “ eu de superfície” e o “eu profundo” estabelecem
a síntese, e dessa síntese advém toda a problemática de uma consciência que
busca a união do pensamento e da ação, um drama de conflitos. Uma conseqüência
resultante da objetividade dos caracteres épicos é que as figuras principais
devem oferecer um conjunto de feições que os torne homens completos, homens nos
quais o modo de pensar, de sentir e de agir seja comum ao do povo, mas atinja o
máximo grau de desenvolvimento. A este respeito chamei já a atenção para as
figuras dos heróis de Homero, sobretudo para a variedade das propriedades
puramente humanas e nacionais do carácter de Aquiles, como para o herói da
Odisséia. Verifica-se a mesma diversidade de traços e de situações no caso do
Cid, como filho, amante, marido, chefe de família, pai, nas suas relações com o
rei, com seus amigos e inimigos. Outras epopéias da Idade Média são bem mais
simples e abstratas, sobretudo quando os seus heróis, limitando-se a defender
os interesses da cavalaria, se afastam da esfera da vida social e nacional.
Para a síntese resultante da dialética entre o coletivo e o individual,
indicada por Carlos Reis – que é essencial não só para o neo-realismo português
como também para o regionalismo brasileiro pós-modernista – Graciliano, numa
consonância sem influência com uma tradição marxista representada
principalmente por Adorno, fica no negativo, frisa-o, aprofunda-o.
Rosa, em consonância com a moderna antropologia, sabedor, saboreador da
cultura e linguagem populares, procura revelá-las e desenvolvê-las. Há simpatia
do narrador de Redol e de Graciliano pela cultura popular. No de Rosa há mais,
há empatia, sua gramática básica é a do povo do sertão mineiro. Toda a cultura
erudita de Rosa se põe a serviço da cultura popular. Ele desenvolve todas as potencialidades
desta cultura. Se a sua língua não é propriamente a da cultura popular, é a
atualização de todas as suas possibilidades.
A compreensão do indivíduo passa, na verdade, pela compreensào da
cultura à qual ele pertence, e pela compreensão de sua linguagem, que, como já
disse antes, é expressào e parte integrante daquela.
Num longo processo de aproximação, que em Sagarana e Corpo de Baile,
transforma o narrador numa espécie de narrador-antropólogo, permeável, que
permite que a voz do outro fale através de si, até Grande Sertão: Veredas,
quando o narador em primeira pessoa é o próprio personagem que, ainda que nào
sendo pobre já o foi e é, portanto, de qualquer maneira, legítimo representante
da cultura popular, Guimarães Rosa consegue compreender, captar em profundidade
a cultura do povo, a cultura dos pobres.
Em linguagem complexa, reveladora de uma visão de mundo, de um
pensamento complexo, o narrador rosiano mostra-nos o mundo visto pelos pobres.
E não apenas visto; sentido, pensado, sonhado, transformado – transformando-se.
Sentimos suas dores, seus medos, suas esperanças. Enfim, conseguimos realmente,
na dimensão estética, entrar no seu mundo mesmo e comungar com suas esperanças
e lutas.
Parece evidente que a modernidade de Graciliano Ramos tem pouco a ver
com o Modernismo e nada a ver com as modas literárias para as quais o escritor
pode apresentar um quê de inatual. Ela vem da sua opção pelo maior grau
possível de despojamento, pela sua recusa sistemática de intrusões pitorescas,
chulas ou piegas, situando-se no pólo oposto do “populismo”- tanto o vulgar
quanto o sofisticado – que tem manchado tantas vezes a atitude dos fruidores da
‘vitalidade’ do homem simples. Vitalidade que acaba servindo de pretexto para
projetar fixações regressivas do próprio escritor, como é o caso da maior parte
dos romances de Jorge Amado.
Lúcio Cardoso, escritor curvelano, não é um memorialista, mas um
inventor de totalidades existenciais. Não faz elencos de atitudes ilhadas:
postula estados globais, religiosos, de graça e de pecado. Em nota à Professora
Hilda, ele escreveu a respeito das personagens:
“... que nelas me interessa, o que quis mostrar nos seus destinos
atormentados foi a força selvagem com que foram arrastados para longe da vida
comum, sem apoio na esperança, sem fé numa outra vida, cegos e obstinados
contra a presença do Mistério”.
Pois o mistério é a única realidade deste mundo. E, se dele temos tão
grande necessidade, é para não morrer do conhecimento dos nossos próprios
limites, como as criaturas loucas e martirizadas a que tentei dar vida”.
Obra pela qual perpassa um sopro de romantismo radical, algo digno de
Emily Brontë, cujos poemas Lúcio Cardoso traduziu em versos musicais, a Crônica
da Casa Assassinada fixa as angústias de um amor que se crê incestuoso. O
romancista supera, nessa obra-prima, a indefinição que às vezes debilitava a
estrutura das suas primeiras experiências, e lança-se à reconstrução admirável
do clima de morbidez que envolve os ambientes (quem esquecerá o fundo
esverdinhado da velha chácara onde há môfo e sangue?) e os seres (indelével, a
figura de Nina, atraída pela vertigem da dissolução no próprio eros).
Refina-se na Crônica o processo de caracterização. Em vez de referências
diretas, são as cartas, os diários e as confissões das pessoas que conheceram a
protagonista (e ela própria) que vão entrar como partes estruturais do livro. A
tragédia de um ser passa a refletir-se no coro das testemunhas; e estas
percorrem a vária gama de reações, que vai da febre amorosa ao ódio, deste à
indiferença ou ao juízo convencional. O “caso” psicanalítico sai, portanto, do
beco da auto-análíse e assume dimensões familiares e grupais.
Lúcio Cardoso se encaminhava, nesta fase madura da sua carreira de
artista, para uma forma complexa de romance que o introspectivo, o atmosférico
e o sensorial não se justapusessem mas se combinassem no nível de uma escritura
cerrada, capaz de converter o descritivo em onírico e adensar o psicológico no
existencial:
“Que é o para sempre senão o existir contínuo e líqüido de tudo aquilo
que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar
em praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre ali se
achava diante dos meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto – e também este
escorregaria longe do meu esforço para captá-lo, enquanto eu mesmo, também para
sempre, escorreria e passaria – e comigo, como uma carga de detritos sem
sentidos e sem chama, também escoaria para sempre meu amor, meu tormento e até
mesmo minha própria fidelidade. Sim, que é para sempre senão a última imagem
deste mundo – não exlusivamente deste, mas de qualquer mundo que se enovele
numa arquitetura de sonho e de permanência – a figuração de nossos jogos e
prazeres, de nossos achaques e medos, de nossos amores e de nossas traições – a
força enfim que modela não esse que somos diariamente, mas o possível, o
constantemente inatingido, que perseguimos como se acompanha o rastro de um
amor que não se consegue, e que afinal é apenas a lembrança de um bem perdido –
quando? – num lugar que ignoramos, mas cuja perda nos punge, e nos arrebata,
totais, a esse nada ou a esse tudo inflamado, injusto ou justo, onde para
sempre nos confundimos ao geral, ao absoluto, ao perfeito de que tanto
carecemos”
(Diário de André – Crônica da Casa Assassinada”
(**RIO DE JANEIRO**, 16 DE ABRIL DE 2018)
Comentários
Postar um comentário