#GENUINO POMO DA SABEDORIA - PARTE VIII# - GRAÇA FONTIS: ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE: ESPÍRITO DO SUBTERRÂNEO
2.0
GENUÍNO POMO DA SABEDORIA
A arte é para o homem uma necessidade fundamental, como beber e comer. A
beleza, assim como o gênio criador que a encarna, são uma só e mesma
necessidade para o homem sem a qual talvez não consentisse mais viver neste
mundo.
Fyodor Mikhailovitch Dostoiévski
2.1.1 - MUNDO DE POBREZA E SOFRIMENTO
Miséria e sofrimento foram as primeiras impressões de Dostoïévski ao
abrir os olhos para o mundo exterior. Colheu-as ao contemplar os velhos e os
enfermos nos pátios do asilo e do Hospital Marinsky, e mais tarde, na mocidade,
havia de completá-las com o espetáculo dos mendigos e dos bêbados nas vielas e
tascas de São Petersburgo.
Capítulo III, Dos pecados alheios, Os possessos, I Parte, VIII, diz
Kirilov a Chatov:
A vida é dôr, temor, sofrimento: o homem, um desgraçado. Agora não se vê
mais do que a dôr, o sofrimento por toda a parte, porque o homem ama a vida, a
dôr mesma. O homem não é ainda o que deveria ser. Creio no advento de um homem
novo, um homem feliz, orgulhoso, que tanto se importará de viver, como de não
viver. O homem novo, vencedor do medo e da dór, será um deus. E o outro, o Deus
das lendas, deixará de existir .
Olhando a fala de Kirilov, quando diz “porque o homem ama a vida a dôr
mesma”, referimo-nos à textualidade, o que está escrito, se Dostoievski
houvesse colocado vírgula após vida, estaria dizendo a vida é a dor mesma,
explicaria o que é a vida, identificá-la-ia, mas não há a vírgula. Por isto,
então, dir-se-ia que a vida não está sendo identificada com a dor “mesma”; não
olhando mais a frase em si, mas o sentido que ela en-vela e re-revela, enfim a
natureza ama revelar-se e ocultar-se, mas a sua transcendência, a Vida “mesma”
é a busca da espiritualização a partir da dor e sofrimento; em nossa
perspectiva de pensamento e reflexão, de interpretação e análise é a tese de
toda a vida e obra de Dostoievski.
Sim, a vida é sofrimento e dor, mas a redenção e ressurreição nascem
deles, e só alcançamos a plenitude, eternidade, imortalidade, quando nossa vida
é entregue ao “outro”, buscando trilhas nos caminhos do campo para modificar,
mudar, transcender, somos eternos a partir do que construímos com o nosso
pensamento e ação para encontrar a nossa felicidade. Esta é a grande tese de
Dostoievski, em toda a sua obra complexa, em verdade; sabemos, nós os seus
admiradores e, com convicção, seguimos a sua trilha nos caminhos de encontro da
eternidade, imortalidade, sublimidade.
O que é a vontade de poder entendida como grande jogo universal?
Nietzsche escrevera em 1885 uma tentativa de dizer em poucas frases amplas o
que era esta Vontade de Poder.
E sabeis o que significa para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo no meu
espelho? Este mundo: um monstro de força, sem começo, sem fim, uma firme e
férrea grandeza de forças que não aumenta nem diminui, que não se consome, mas
apenas se transforma, imutavelmente grande como um todo, uma economia sem
gastos nem perdas, mas também um acréscimo sem ganhos, rodeada pelo “Nada” como
suas fronteiras, não transbordando nem esbanjando, nada infinitamente
expandido, mas embutido como força determinada num espaço determinado, não em
um espaço que fosse “vazio” de alguma forma, mas como força onipresente, como
jogo de forças e ondas de força, sendo ao mesmo tempo Um e “Muitos”, aqui
acumulado e simultaneamente ali reduzido, um mar de forças que se alteiam e
escorrem em si mesmas, eternamente em transformação, eternamente retornado em
inauditos anos de retorno, com uma enchente e vazante de suas forças, saindo
das mais simples para as mais variadas, do mais quieto, hirto, frio para o mais
ardente, selvagem, sempre se contradizendo, e depois novamente voltando daquela
plenitude para o simples, retornando do jogo de contradições para o prazer do
uníssono, afirmando a si mesmo ainda naquela igualdade de seus limites e anos,
abençoando a si mesmo como aquilo que tem de retornar eternamente, como um
devir que não conhece saciedade nem enfado nem cansaço: esse meu mundo
dionisíaco do eterno criar-se, do eterno destruir, esse misterioso mundo de
prazeres duplos, esse meu Além feito de bem e mal, sem objetivo se não houver
um objetivo na felicidade de circular, sem vontade se um anel não tiver boa
vontade comigo mesmo – quereis um nome para esse mundo? Uma solução para todos
os seus enigmas? Uma luz também para vós, ó ocultos, fortes, destemidos seres
da meia noite? – Esse mundo é a Vontade de poder – e nada além disso! E vós
mesmos sois essa Vontade de poder – e nada além disso! .
Não seria aconselhável meditar e refletir, quando Nietzsche se refere
acerca do duplo, na Síntese Geral a que Dostoiévski se refere, um acontecimento
que parece considerar no final dos tempos:
“Mas o ser vivo que não morreu antes da consecução final e que se
refletiu no ideal final, deve voltar à vida na vida eterna, final,
sintetizada”, referência à natureza sintética de Cristo, Deus e homem, Verbo e
Carne. E, afinal de contas, a natureza de deus, o que significa que Cristo é “o
reflexo de deus na terra”.
Dostoievski não dá a entender que a Síntese compreenderá uma separação
entre as ovelhas e as cabras, entre os bem-aventurados e os condenados; todos
participarão, até onde se pode julgar, da felicidade da eterna beatitude.
Aqui, Dostoievski não está aderindo rigidamente às doutrinas da
Ortodoxia oriental. Orígenes, no século XIII a.D., desenvolveu uma teoria da
salvação universal que teria incluído Satã e os anjos caídos; mas foi
desautorizada oficialmente. Os ensinamentos da verdadeira filosofia – é a
destruição da estagnação, isto é, pensamento, isto é, o centro da Síntese do
universo e sua forma externa – matéria, isto é, deus, isto é vida eterna.
Quando o homem deixa de cumprir a lei que manda esforçar-se por alcançar um ideal,
isto é, quando não sacrificou através do amor o seu Ego ao povo ou a outra
pessoa (Macha e ele mesmo!), ele sofre e chama de pecado essa condição. O homem
deve experimentar, incessantemente, o sofrimento, que é compensado pela alegria
celestial de cumprir a lei, isto é, pelo sacrifício. Eis o equilíbrio
terrestre. De outro modo a terra não teria sentido.
Pensando ainda o “duplo”, vida e morte, sofrimento e eternidade, o
desejo de ter a memória preservada in aeternum por um serviço funerário é também
uma expressão significativa da vontade de continuar a existir depois da morte.
A memória dos grandes benfeitores da humanidade, bem como dos grandes
malfeitores, vive para seus sucessores, e “a maior alegria da humanidade é
parecer com eles.”
Desde a época do Iluminismo, desenvolveu-se uma opinião a respeito da
natureza da religião que, embora seja uma concepção errada, tipicamente
racionalista, merece ser mencionada devido à sua grande difusão. Conforme este
ponto de vista, todas as religiões constituem uma espécie de sistemas
filosóficos, forjados pela cabeça dos homens. Um dia alguém inventou um deus e
outros dogmas e passou a zombar da humanidade com esta fantasia “própria para
satisfazer desejos”. Esta opinião é contraditada pelo fato psicológico de que a
cabeça é um órgão inteiramente inadequado quando se trata de conceber símbolos
religiosos. Estes não provêm da cabeça, mas de algum outro lugar, talvez do
coração; certamente, de alguma camada profunda da psique, pouco semelhante à
consciência que é sempre apenas uma camada superficial. É por isso que os
símbolos religiosos têm um pronunciado “caráter de revelação” e, em geral, são
produtos espontâneos da atividade inconsciente da psique.
Sofrimento, dor são as “sementes da redenção, ressurreição”.
O poder não é algo substancial, mas relacional. Só existe em relações, e
isso significa: é preciso livrar-se de representações puramente materiais,
mecânicas. Faz parte do poder ser considerado poderoso. O poder de um se
fortalece na imaginação do outro. O poderoso só é poderoso à medida que parece
valioso, essencial, imprescindível, invencível e coisas semelhantes, para
outro.
Quem será capaz de suportar o pensamento “O caráter global do mundo é o
caos pela eternidade a fora” . O “super-homem”. Como observa Heidegger, não se
deve imaginar essa figura como um ser prodigioso que desenvolveu
espetacularmente as faculdades do homem comum, mas como alguém que “supera” o
homem tradicional à medida que põe de lado as atitudes, as crenças e os valores
desse último e tem a capacidade de criar novos valores. A transvaloração de
todos os valores é o movimento que se opõe ao niilismo e o supera. Ele cria o
“super-homem” como alguém que exprime a concentração máxima de vontade de poder
e aceita o eterno retorno das coisas.
(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)
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