#LINGUAGEM E ESTÉTICA NOS ROMANCES DE VIRGÍLIO FERREIRA# - Manoel Ferreira Neto: ENSAIO VIII PARTE.........
Quando Zoe descreveu a transformação, que tanto a perturbou, de seu
antigo companheiro de folguedos, injuriou-o comparando-o a um arqueoptérix, o
monstro alado antediluviano que pertence à arqueologia da zoologia. Desse modo
ela encontrou uma única expressão concreta da identidade das duas figuras. Sua
queixa aplica-se, com a mesma palavra, tanto ao homem que ela amava quanto a
seu pai. O arqueoptérix é, podemos dizer, uma idéia conciliatória ou
intermediária, na qual seu pensamento sobre a insensatez do homem amado
coincidiu com o pensamento análogo sobre seu pai.
Já com o rapaz, as coisas tomaram um rumo diferente. Absorto na
arqueologia, só se interessava por mulheres de bronze e de mármore. Nele, a
amizade de infância, em vez de intensificar-se transformando-se em paixão,
dissolveu-se, caindo um tão profundo esquecimento que, ao encontrar socialmente
a antiga companheira de brinquedos, não a reconheceu. É verdade que, se
examinarmos os fatos com mais cuidado, iremos perguntar-nos se “esquecimento”
será a descrição psicológica correta do destino dessas lembranças em nosso
jovem arqueólogo. Existe um gênero de esquecimento que se caracteriza pela
dificuldade que a convocação externa mais forte tem em despertar a memória,
como se alguma resistência interna lutasse contra seu surgimento. (...) É
precisamente o que foi escolhido como instrumento da repressão – como o ‘furca’
do provérbio latino ‘Naturam expelles furca, tamem usque recurret’ ( “Podes
expulsar a Natureza com um forcado, mas ela sempre retornará”. Trata-se na
verdade, de um trecho de Horácio (Epístolas) – que vai constituir o veículo do
retorno: oculto na força repressora, o que é reprimido revelar-se-á por fim
vencedor. Esse fato, pouco tido em conta e que merece um exame atento, é
ilustrado – de forma mais impressionante do que o seria por muitos outros
exemplos - por uma conhecida água-forte de Félicien Rops; e é ilustrado com o
caso típico de repressão na vida dos santos e penitentes. Um monge ascético,
fugindo certamente das tentações do mundo, volta-se para a imagem do Salvador
na cruz, mas esta vai submergindo nas sombras, e em seu lugar ergue-se,
radiante, a imagem de um voluptuosa mulher nua, também crucificada. Outros
artistas, com menor compreensão interna (insight) psicológica, mostram, em
alegorias da tentação semelhantes a essa, o Pecado erguendo-se, insolente e
triunfante, em diversas atitudes junto à cruz do Salvador. Só Rops, porém,
fê-lo ocupar o lugar do Salvador na Cruz. Ele parece Ter sabido que, quando o
que foi reprimido retorna, emerge da própria força repressora.
Quanto ao subjetivismo. A consideração psicanalítica consagra uma
perspectiva oblíqua, uma intentio obliqua, para usar a expressão escolástica
retomada por Fritz Blaettner para explicar o surto renascentista da biografia:
a partir da Renascença a visualização da arte começa a depender do biografado,
a passar por ele, e a transformar a arte num epifenômeno caudatário dessa
realidade anterior que seria o artista.
Uma importante confissão a respeito de seu método romanesco encontra-se
à pág. 89 de S. Bernardo, de Graciliano Ramos: “Essa conversa, é claro, não
saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve suspensões, repetições,
mal-entendidos, incongruências, naturais quando a gente fala sem pensar que
aquilo vai ser lido. Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas
passagens, modifiquei outras... É o processo que adoto: extraio dos
acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço”. É a profissào de fé do
romance psicológico: eliminar tudo o que não servir para dar do personagem uma
idéia essencial. Há uma ironia interessante a respeito de Graciliano Ramos: que
a sua faca só vivia cega de tanto cortar, referindo-se obviamente ao seu
trabalho artesanal com a palavra. A ironia ainda acompanha o romancista, mas em
dose extraordinariamente reduzida. Deixou de ser a atitude do romancista com
relação a todos os personagens, para se restringir a um único personagem,
justamente aquele que representa o avesso de Paulo Honório: “seu” Ribeiro tinha
sido tudo na vida, com dinheiro, lar e consideração social, e lentamente fora
sendo despojado, até terminar como um martirizado guarda-livros em S. Bernardo.
Também o estilo, em Graciliano Ramos, direto e brutal, feito de
movimentos bruscos, serve ao tipo de enredo que se desenvolve e à
caracterizaçào dos personagens: “(...) estraio dos acontecimentos algumas
parcelas; o resto é bagaço”, a firma a certa altura Paulo Honório.
Paulo Honório escreve seu livro e busca o sentido de sua vida. Através
da escritura faz emergir um mundo reificado e cruel, repleto de corujas que
piam agourentas, de rios cheios, atoleiros e “uma figura de lobisomem”. O que
surge é afinal o seu retrato: penetrando dentro de si mesmo arranca um mundo de
pesadelos terríveis, de signos da deformaçào e da monstruosidade. Um mundo
objetivamente real acaba revelando-se, através da subjetividade. Mas é, por
outro lado, um mundo aolheio a Paulo Honório, um universo que anda indiferente
à sua vontade. O tempo histórico continua a decorrer, à sua revelia? “O que não
percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador
assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndul,
ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo
mexer-me”
A objetividade da representação é atingida pela subjetividade do
narrador, mas anbas acabam interpenetrando-se, compondo uma unidade dialética.
“O sujeito poético, que se emancipa das convenções da representaçào objetiva,
confessa ao mesmo tempo a própria impotência, a prepotência do mundo reificado
que volta a apresentar-se no meio do monólogo”. (T.W. Adorno, “La posición del
narrador em la novela contemporânea”).
A posição do narrador em S. Bernardo parece-me conferir ao livro uma
dimensào nova, que o torna diferente do romance realista cuja estrutura Lukács
descrevem em suas análises de Balzc, Stendhal e Mann. A subjetividade do ponto
de vista provoca certas modificações essenciais na estrutura, das quais o
monólogo interior é apenas uma. A “narrativa problemática” parece esboçar-se
aqui, nos instantes em que Paulo Honório alude à sua dificuldade de contar a
história e elementos de metalinguagem se intrometem. A utilização de categorias
diferentes das de Lukács poderia lançar uma outra luz sobre o livro.
Com o nosso texto “Uma Taça às Águas da Fonte”, temos a intenção de
estabelecer um fundamento da estética, da consciência-estética-ética, de
deixar-me-germinar o sentido que a obra de Vergílio Ferreira sempre despertou
em mim. Aliás, se é algo que, sem dúvida, influenciou-me foi o fato de Vergílio
Ferreira haver escrito: “O título é o primeiro que se escreve e o último que se
assume”. O que me surgiu primeiro foi uma taça. Daí, necessitei trabalhar a
imagem para que houvesse uma síntese com o texto anterior, publicado também na
Folha de Curvelo, “Na Fonte Originária do Rio de Águas Límpidas”, uma homenagem
ao escritor-amigo-compadre Paulo César Carneiro Lopes. O título não me veio de
uma vez por todas.
Em “Rápida, a Sombra”, Vergílio assim diz sobre o Ato de Escrever:
“Um livro ainda, reiventar a necessidade de estar vivo. Mundo da
pacificação e do encantamento – visitá-lo ainda – mundo do êxtase deslumbrado.
Da minha comoção sutil e íntima, vidrada de ternura até às lágrimas. Da pálida
alegria oculta como uma doença. Do frêmito misterioso da transcendência
visível. Da fímbria de névoa como auréola que diviniza o real. Do reencontro
com o impossível de mim. Da quietude submersa. Do silêncio. Um livro ainda – um
livro” Frêmito do êxtase, a ternura sutil, fímbria, limite, pálida alegria –
quão longe tudo já, ó espaço da maravilha”.
“Assim como os pingos de chuva caem nos canteiros de flores, no
ladrilhado do jardim, fazendo uma enxurrada que se dirige a abertura feita de
por baixo da amurada, com este propósito mesmo, e a brasa do cigarro vai
queimando o fumo e, vez por outra, trago e expilo a fumaça, neste instante em
que me encontro sentado numa cadeira-de-balanço, no alpendre, fecho os olhos e
a terra dura sobre que me deito embaixo de uma árvore frondosa, assim como o
fato concreto e o espírito devem estar em face do outro – pingos de chuva e a
brasa do cigarro, - sem que agente algum, exterior, interevenha entre eles.
Busco sentir o que sonho, procuro pensar o que sinto, desejo dizer o que penso,
a enxurrada não é enxurrada, as poças dágua não são poças dágua” (Uma Taça às
Águas da Fonte, Folha de Curvelo, 24/12/1999, Manoel Ferreira).
Neste sentido, a experiência estética, para mim, Manoel Ferreira, dá-se
no instante-limite, na síntese de todas as dimensões, o sonho, o pensamento, o
desejo, a intuição, quando deixo-me-ser, “o estar em harmonia com estes pingos
de chuva que caem na vidraça do quarto, que, ora, se encontra com a cortina
aberta, um refrescante vento libera o espírito de todos os pensamentos fúteis e
que encanto tem para mim cada manifestação da natureza”.
Creio ser muito importante que este artigo esteja sendo interpretado no
sentido de “ir buscando no cotidiano mutações no interior de mim, do largo
caminho do re-nascer humano, do homem em verdade real”
Ocorre que muitas vezes o leitor desavisado pensa logo que a obra só
reflete este aspecto, o próprio autor o disse, e a crítica especializada começa
a reduzir o pensamento, dizendo que a influência maior foi de Vergílio
Ferreira, Clarice Lispector, Thich Nhat Hanh. Há sim esta influência. Há sim
estas influências, mas é necessário ir além delas para se conseguir estabelecer
a consciência estética que se busca:
“Semente da eternidade. O vento, o silêncio, o sol, as flores que se
desabrocham, uma flor sempre desabrocha, todo dia... A força do ser para viver o
ser e o ser destas águas límpidas, deste sonho de sua fonte originária, e
distante dela, sinto-a presente, não preciso ir e ver, a sua vida mostra-se na
liberdade que caracteriza o ser criador de cada instante dessas águas que irão
desembocar nalgum sítio. Con-templar a fonte originária destas águas límpidas é
viver a plenitude da vida na sabedoria da experiência, é dizer sem explicar, é
ultrapassar o absoluto provisório dessa vida. Vamos nós, os três, atingindo a
sabedoria da vida e das coisas, atingindo o Dom do Silêncio, a graça de
transmitir uma dose de Fé logo ao despertar do Dia e o Sabor da Paz...” (Na
Fonte Originária do Rio de Águas Límpidas.
A experiência estética, com efeito, “põe em jogo os a priori
pressupostos pela apreensão do real como mundo (que) são disso a condição,
constituindo ao mesmo tempo o sujeito como sujeito que faz a experiência do
“real”. Ela identifica-se com a ‘luz que preenche o espaço aberto pelo “recuo”
de que falamos, pela néantisation da “intencionalidade”, é a ‘verdade dada
antes do real, o mundo como significação dada antes do objeto” (digamos nós:
com o objeto), ela “aprofunda” a realidade “para descobrir pelo sentimento” um
outro mundo.
“Na fonte a água jorra espontânea, a multiplicidade de uma única água em
muitas águas. Alguns pingos sendo espalhados e caindo no corpo que, sensível,
estremecesse num movimento livre. Inicia-se o seu itinerário, abrindo veredas
para a sua continuidade, a limpidez no seu abrir-se de um outro instante, o
sonho do momento seguinte – e nosso único-maior escritor curvelano, Joaquim
Lúcio Cardoso, ensinou-nos a perguntar: “Meu Deus, o que é isto – a
eternidade?, - do momento seguinte – e o nosso também amado Guimarães Rosa
ensina-nos que? “...o rio – que não tem pressa e não tem margem -, “ da
possibilidade outra da serenidade engolfando-se numa pedra, em seu fundo, uma
mudança singela na superfíçie, siga o seu itinerário, outra água, a fonte
jamais pára de jorrar; passará por este mesmo obstáculo, outra mudança, e
seguem águas e águas de um rio... Da serenidade de seu engolfamento a novidade
da singeleza de seu fluxo, - de fundo, os braços mergulham aberturas, sim é o
seu destino entre si e a missão que seu ser tem dela – o êxtase de um encontro
com outros seres que a cada jorrar da água na fonte originária é um ser
delineado por outra água, o espírito se re-velando e se ocultando, criação de
dentro de uma criação, de dentro de outra criação, e o rio segue a sua
trajetória”.(Na Fonte Originária do Rio de Águas Límpidas, Folha de Curvelo, 15/ll/99,
Manoel Ferreira).
(**RIO DE JANEIRO**, 23 DE ABRIL DE 2018)
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