À LUZ DE IAWEH E CRISTO - ENSAIO DE EXPERIÊNCIA MÍSTICA NAS PALAVRAS DE SARTRE - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE
1.0 - LITERATURA, FILOSOFIA E ENGAJAMENTO - II PARTE
O abandono efetivo de uma classe só acontece se o individuo for capaz de
vivenciar internamente a pertinência a outra classe. O escritor do século XVIII
de algum modo havia conseguido essa vivência interna da burguesia e da nobreza,
mas o escritor do século XIX vive a sua marginalidade fora desse espaço entre
classes. Por este motivo é que ele escreve como quem não tem para quem
escrever. A solidão cultivada e ostensiva é a estratégia de dissimulação
subjetiva da sua condição contraditória, e a eleição do absoluto como
destinatário é a face objetiva dessa mesma dissimulação.
A aristocracia do espírito deve ter os seus direitos e, tal como no caso
do nobre de nascença, eles são herdados diretamente de Deus. A improdutividade,
a relação perdulária com os bens, o parasitismo, a gratuidade da vida, todas
essas atitudes antiburguesas são cultivadas pelo escritor sem que por isso ele
se oponha efetivamente à burguesia, reconhecendo-a como classe opressora.
Para Flaubert, o burguês é vil, mas os revolucionários da Comuna são
cães raivosos. Essa superioridade gratuita que o escritor ostenta é para ele o
sinal do heroísmo do gênio; para a burguesia trata-se de algo engraçado e
inofensivo. Dessa maneira, a burguesia apropria-se até da gratuidade, que
parecia ser o último refúgio da literatura autônoma. É como se o instinto
burguês de utilidade encontrasse até mesmo um modo de utilizar a inutilidade da
literatura. Isso acontece à medida que a obra inútil serve ao repouso do
espírito utilitarista.
O desencantamento do escritor do século XIX provém do seu falso
encantamento com a universalidade abstrata. A compreensão da essência da
literatura deveria levar a entender que é possível escrever para todos os
homens se a literatura puder atingir a totalidade histórica dos homens, isto é,
a universalidade concreta, socialmente configurada. Essa situação só existiria
na sociedade sem classes, portanto não se trata de esperar da literatura
existente que chegue a esse tipo de interação com a totalidade. Trata-se de
redefinir, numa sociedade de classes, qual é o público com o qual a literatura
se deveria comprometer historicamente no século XX.
A posição de Sartre seria mais adequadamente descrita dizendo-se que não
se pode abordar consistentemente o fato histórico na sua relatividade senão
assumindo uma postura resolutamente metafísica; e não se consegue equacionar
verdadeiramente os problemas metafísicos a não ser incorporando-lhes a condição
humana em sua totalidade.
Poderíamos dizer que o núcleo organizador dessa confluência é a
liberdade: o homem se define metafisicamente pela liberdade ao mesmo tempo em
que a exerce historicamente. De modo que tratar a liberdade na história sem
pressupô-la metafisicamente é renunciar a compreender-lhe o sentido; e entender
a liberdade metafisicamente sem considerá-la na história é cultivar uma
abstração. Sendo assim, a literatura, ofício e apelo humanos, não se realizaria
plenamente em sua humanidade se deixasse de compreender-se na sua historicidade
e em seu caráter metafísico, inseparavelmente. De fato, as grandes questões que
a literatrua deve responder se inscrevem numa tarefa:
Essa tarefa consite em criar uma literatura capaz de reunir e
reconciliar o absoluto metafísico e a relatividade do fato histórico, e que
designarei, à falta de outro nome, como literatura das grandes circunstâncias .
O projeto sartreano foi uma variante do projeto platônico: mas
diversamente de Platão, Sartre acredita que a fusão da política e da filosofia
exige este terceiro termo que Platão escorraçava da cidade: o poeta, o
literato. Alguns se surpreenderam com as páginas que Sartre consagrou a
Mallarmé. E por quê? A literatura para os homens do fim do século XIX e do
começo do século XX foi um substituto para a piedade, maneira civilizada e
derivada de se reconstituir uma fé ingênua, um mundo de crença bruta. Foi
também um meio de ver-se diferentemente do que se é e mesmo de fazer outra
coisa que aquilo que se faz.
Os revolucionários de 1789 acreditavam realmente que eram antigos
romanos; a coisa não fez senão crescer e ficar mais bela, e agora que nossos
contemporâneos, excluídos da história que não querem fazer porque ela
liquidaria os privilégios, não têm verdadeiramente mais nada a dizer, suas
consciências “ingênuas” e “espontâneas” são jogos de carta literários. Cada um
se define pelo par, pela trinca ou pela seguida que lhe escondem sua própria
realidade.
Na nossa sociedade, a literatura é um alucinógeno. Esta unidade da
literatura e da filosofia que Sartre manteve com brilho, para nós deve ser
destruída. De um lado a filosofia, abandonando seu flerte com os romancistas e
os poetas, encontrará sua intenção teórica pura, e de outro o “engagement”
político dependerá mais da arte do verbo, porque a sociedade na qual vivemos
está condenada a se recusar cada vez mais selvagemente a ouvir a razão,
conduzindo-nos assim lentamente, mas firmemente, para a necessidade da
violência pura, porque nada a não ser o terror fará agora a burguesia recuar.
Violência política sem dúvida, mas também violência intelectual, pois o
ideal da teoria filosófica pura, não nos enganemos quanto a isso, não é um amor
humanista e delicado, mas a vontade de saber, a vontade de compreender, a
vontade de opor ao nada dos poetas o rigor inflexível do verdadeiro, que é, ele
também, como Platão bem tinha enxergado, uma forma de violência.
Sartre entende a literatura – a narrativa – a partir da situação: “sem
narradores internos nem testemunhas oniscientes”, mas com “consciências
semilúcidas e semi-obscuras”, sem “ponto de vista privilegiado”, “criaturas
cuja realidade seria o tecido confuso e contraditório” das apreciações
relativas. Seria isso exacerbar a historicidade? Não, já que nada pode impedir
que os atos vividos na irredutibilidade da subjetividade apareçam com a
densidade do absoluto, com o fervor que se ampara na própria incerteza e no
próprio risco, numa relatividade inexorável.
Para compreender efetivamente a história, é preciso saber que a certeza
e a explicação pertencem ao historiador, não à história. O momento histórico é
aquele em que cada um, livre e desamparado, se salva ou se perde, pois tem que
reagir ao inesperado, ao surpreendente, ao incompreensível, ao irreversível.
Nenhum ato está em continuidade com o Bem ou com o Mal, enquanto referências
prévias e universais; em cada ato, O Bem e o Mal estão absolutamente em jogo a
partir de entendimentos e vontades finitas e relativas. É esse lado
inexplicável da história que dá à experiência da liberdade histórica o “gosto
amargo”, que consiste em “empreender na incerteza e perseverar sem esperança” .
O autêntico realismo deve dispensar as mediações entre o leitor e a
consciência da personagem; deve fazê-lo coincidir com o evento e com o tempo
dessa consciência. Ao mesmo tempo, como um evento ultrapassa aquela consciência
e todas as consciências, porque se revela de formas diversas a cada uma delas,
seria preciso fazer o leitor entrar em todas as consciências, coincidindo com a
temporalidade de cada uma e ao mesmo tempo superando a todas. Tarefa
tecnicamente difícil se se renunciou ao ponto de vista da testemunha
onisciente. Mas é a única maneira de restituir à literatura a sua historicidade
e dar-lhe como destinatário o universal concreto, a partir de um compromisso
com todos os homens historicamente engajados na mesma adversidade. Veja-se que
problemas técnicos de narrativa não são neutros.
As mudanças de procedimentos a que a narrativa contemporânea foi
conduzida representam um esforço para tornar mais efetivo o apelo à liberdade
do outro, para fazer que a experiência de leitura não contradiga a experiência
histórica.
Chegamos ao núcleo ético do que se denominou a tarefa da literatura.
Aqui se entende talvez melhor a razão da insistência de Sartre em que a leitura
é ato constitutivo da narrativa e não apenas uma simples apropriação. Noutras
palavras, é trabalho, mais do que contemplação ou fruição. Justamente, essas
duas categorias foram são enfatizadas no século XIX para que ficasse nítida a
relação de exterioridade entre o leitor burguês e a obra que lhe contestava em
imagem, para que ele pudesse sempre concluir: “é apenas literatura”. Isto é,
consumo gratuito da hora de lazer. Algo que poderia ter, a partir do seu ser,
mas que em nada interferiria no modo como ele produz do seu ser. Tudo que o
burguês incorpora, tudo que ele vem a ter, se dá pelo modo da apropriação, e a
literatura não seria exceção.
No entanto, depois que o pensamento mostrou, com Marx, o valor
constitutivo do trabalho, é impossível não considerar que a articulação entre
ser, ter e fazer é essencial para a compreensão da realidade humana. O fazer parece
estar fora dessa articulação porque na sociedade atual o trabalho é alienado, e
o homem não se reconhece na sua atividade produtiva. Dessa forma, fica definida
a função da literatura. Ao devolver a imagem da sociedade a si própria, ela
negará o trabalho alienado e ao mesmo tempo afirmará a ação criadora do ser
humano. Com isso, ela estará realizando o trabalho de negação, próprio da
literatura, mas que não se esgotará em si mesmo, pois se apresentará ao mesmo
tempo como meio de superação daquilo que é negado.
Apresentar o homem como produtor não é resignar-se à imagem capitalista
do ser humano, desde que a produção e o trabalho sejam mostrados como
integrados à capacidade criadora do homem e não como algo com que ele se
relacionaria alienadamente. A alienação é superada quando se mostram ao
indivíduo “os princípios, os objetivos e a constituição interior da sua
atividade produtiva”, isto é, quando se esclarece para ele o significado “dos
seus trabalhos e dos seus dias” .
Somos aquilo que fazemos? O que fazemos a nós mesmos? E ocorre isso na
sociedade atual, em que o trabalho é alienado? Que fazer, que finalidade
escolher, hoje? E como fazer, por quais meios? Quais são as relações entre o
fim e os meios numa sociedade baseada na violência?
Todas essas questões se resumem no questionamento da alienação e indicam
que o trabalho da literatura deve ser a superação da alienação. Historicamente,
isto é, em termos de uma “finalidade” a “escolher, hoje”, a relação entre ética
e literatura se realiza por via da opção por uma literatura da práxis, qual
seja, uma literatura que leve o sujeito a ver-se como produtor da história
(qualquer fazer é antes de tudo fazer história) e assim a reencontrar-se na
relação entre o fazer e o ser, já que o “fazer é revelador do ser”. A
literatura da práxis responde à solicitação histórica da nossa época. Não
descreve o mundo; revela-o nos empreendimentos humanos.
O escritor tem uma responsabilidade moral, assumida politicamente
perante a história. A autonomia da literatura não supera a sua historicidade:
“Não se trata de escolher a sua época, mas de se escolher nela”. O que
significa que, vivendo nessa época, em que a dimensão metafísica da totalidade
humana se apresenta na forma da alienação, o escritor tem que trilhar “esses
caminhos austeros”, os quais, a bem dizer, “não afirmo que tenhamos escolhido”.
Então, fora disso, somente a má-fé e a inautenticidade, o ser-escritor como
autofetichização?
Adorno, após descrever o engajamento como “decisão, como condição de
existir, frente à neutralidade espectadora”, acrescenta:
A categoria de decisão, originariamente de Kierkegaard, acresce-se em
Sartre da herança cristã do: quem não está comigo está contra mim, porém sem o
conteúdo concreto teológico .
Ora, “a decisão, como condição de existir” é algo que se pode
generalizar para todos os aspectos da vida, de forma que para tudo valeria o
engagement tal como Sartre o concebe. Por sua vez, o escritor tem que dar à sua
“decisão” a expressão literária, e ele deve fazê-lo de forma significativa,
isto é, sem desvincular completamente a palavra daquilo que ela já é no
discurso comunicativo não literário.
Adorno observa que, se é bem verdade que a palavra, transposta
literariamente, conserva algo de sua origem funcional, também é certo que a
significação não permanece inalterada. A simples recontextualização a altera.
Há que se considerar também que as significações externas, se e quando
conservadas na obra, são o não-artístico da arte e podem vir a constituir a
mensagem no sentido de propaganda. Nesse sentido, é importante distinguir a
arte engajada da arte tendenciosa.
(**RIO DE JANEIRO**, 13 DE ABRIL DE 2018)
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