À LUZ DE IAWEH E CRISTO - ENSAIO DE EXPERIÊNCIA MÍSTICA NAS PALAVRAS DE SARTRE - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE
1.0 - LITERATURA, FILOSOFIA E ENGAJAMENTO - VII PARTE......
A norma ético-estética do sacrifício do artista à obra nasce da ruptura
com o público e da condenação romântica do burguês: é necessário compensar a
decepção política – depois de 1848 – pela esclerotização do humano reduzido a
um sistema de exterioridade. Com a ajuda de técnicas literárias os escritores
pretendem reviver os grandes românticos, mas pressentem, ao mesmo tempo, que
estão condenados de antemão, ao fracasso. Este projeto não pode sustentar-se
senão através “da consistência da neurose”.
Sartre trata de tornar prático seu projeto antropológico, totalizar em
função de uma obra – Madame Bovary – enquanto universalidade singularizada, a
vida de seu autor, as contradições da sociedade burguesa como estrutura
sincrônica durante o século XIX. O Idiota da Família constituir-se-á na prova
de que esta totalização é possível.
A primeira dificuldade metodológica se encontra no terceiro tomo da obra
quando Sartre elabora o conceito de neurose objetiva. Este conceito está
repleto de conseqüências; a análise da neurose de Flaubert não pode cumprir-se
precedida da estrutura social (família, classe); por outra parte, a relação
obra-público remete ao campo das ciências sociais.
De acordo com o que conhecemos, Freud não afirma precisamente a
psicanálise explicar a arte. A regra freudiana é explicar o processo de
criação. Em Gradiva, Freud se propõe, com modéstia, alcançar “uma pequena visão
da natureza da produção (Produktion) poética”, e termina o escrito comparando o
caminho do poeta com o do médico, mostrando suas diferenças e coincidência.
Num adendo a esse ensaio, redigido alguns anos mais tarde, Freud propõe
como objeto da investigação a origem das “impressões e lembranças utilizadas
pelo artista e o modo como ele as transfere para a poesia”. A questão se
concentra, portanto, na proto-história subjetiva da arte, e mesmo aqui ele não
hesita em reconhecer os limites de seu tipo de pesquisa: referindo-se à
patografia, por exemplo, assevera no ensaio sobre Leonardo que ela “sequer se
propõe tornar compreensível a produção (Leistung) do grande homem”.
Freud quer saber de onde essa “personalidade notável”, o poeta, tira a
matéria de seu trabalho e, decursivamente, como pode a obra suscitar
determinadas emoções no leitor, no espectador; de onde vem o fantasiar, seja o
originário, poético, seja o derivado, contemplativo.
Todo o sentido da Ars Poética concentra-se no palco interior, aquém da
obra, na subjetividade do artista e sua “constelação psíquica”, e também na
repercussão que uma obra possa desencadear no espectador.
A investigação freudiana da histeria e do sonho canaliza toda a pesquisa
para o inconsciente e para a vida sexual, enquanto Sartre desmantela
literalmente a realidade para alargar uma consciência que persegue como único e
impiedoso objetivo: a transparência.
O ideal da transparência acompanha toda a produção de Sartre, desde O
Ser e o Nada. Declara:
Penso que a transparência deva substituir sempre o segredo, e imagino
bastante bem o dia em que dois homens não terão mais segredos um para o outro
porque eles não terão mais segredos para ninguém, porque a vida subjetiva,
assim como a vida objetiva, será totalmente oferta, dada. É impossível admitir
que entreguemos nosso corpo como nós o entregamos, e que escondamos nossos
pensamentos, dado que, para mim, não há diferença de natureza entre o corpo e a
consciência .
No seu discurso em Araraquara, diz ele:
[...] se a Filosofia é prática, se ela representa efetivamente um
encaminhamento da ação e do pensamento e uma transformação do homem, ela deve,
diz Marx, realizar-se; realizar-se, isto é, tornar-se mundo. O que ela diz tem
de se tornar o que é .
O homem é o mundo, e a questão está em fazer o registro de tudo o que
integra concretamente, como princípio de constituição, o microcosmo humano em
sua particularidade. A constituição consiste num deixar-se viver, espécie de
avassalamento involuntário.
Por que, ou melhor, para quem se escreve? Resposta indubitável: para
hoje. Para este nosso tempo, e nenhum outro. Para esta mesma época que ele
resolveu tomar como objeto. O escritor engajado é aquele que, com firmeza,
resolução, clareza, decide dirigir-se não a uma época futura, longínqua e,
então, sonhada, mas a própria época de que é coevo.
Faz isso com uma metáfora que vai voltar, em livros e em outros lugares,
com extrema insistência: a metáfora das bananas: “Sempre considerei”, diz, “as
bananas como frutos mortos, cujo gosto vivo me escapava”. Ou: “para saber o que
é – a banana – é preciso comê-la no pé, ou quando acaba de ser colhida”. Ou
ainda: “os livros que passam de uma época para outra são frutos mortos.
Tiveram, em outro tempo, um outro gosto, forte e vivo. Era preciso ter lido
Emílio ou Cartas persas quando colhidos”.
O que deseja Sartre expressar com a metáfora das bananas? Que a
literatura, como as bananas, é perecível. Como as bananas, ela morre se tiver
seu consumo adiado. Deseja ele uma literatura do finito, ancorada nessa sua
temporalidade, nada esperando de um tempo por vir em que não sobrará, nem dos
livros nem das bananas, senão um cheiro triste, um sabor mofado ou azedo.
A literatura só é escrita aqui, no instante, para o instante, sem
possibilidade de evasão para fora do cerco desse instante, e assim, sem
recurso, também. A literatura é atividade vital, essencial, ardente – ela não
vale nada, não queima nada se não queimar aqui, agora, na “primeira leitura”,
que, para ele, é “a que mais conta”.
Enfim, “engajado”, para um romance, significa: virar as costas às
ilusões da intemporalidade. Jogar o jogo do “engajamento” é resistir à tentação
de escrever, como Valéry enquanto vivo, “livros póstumos”. Os escritores
engajados são quem estão vivos antes de estarem mortos. Defender o engajamento
é renunciar às miragens da posteridade, notoriedade, muito embora Sartre por
quase toda a vida fora um notório homem, e desejou desde sempre sê-lo.
Sartre, o anti-Mallarmé que, bem antes de Flaubert, passa alguns anos de
sua vida a se medir, se não com Mallarmé propriamente, pelo menos com a
religião da obscuridade de que a época lhe credita a paternidade e contra a
qual Proust, em artigo memorável, “Contre l´obscurité”, 15 de julho de l896, e
quase que nos mesmos termos, instaura um processo: Sartre contra Mallarmé e,
provavelmente, também contra Debord, a vontade, o tomar partido de “se
preocupar” com o público.
O século XX, diz Sartre, com Proust, não deve ser o século de Mallarmé!
A literatura só tem sentido, e Mallarmé o sabe, se, de direito, pelo menos, for
universalmente transmissível! Ou seja, seu ideal é o da reconciliação da dupla
figura do aficionado e do conhecedor, do simples leitor e do discípulo, na
ordem daquilo que um outro mallarmeniano, Jacques Lacan, chamou o “mátema”.
A literatura é a ausência. É a separação, radical, do autor e de seus
leitores, e dos leitores entre si. Por isso, Sartre queria dar o seu testemunho
nas ruas – num comício sobre o “processo Geismar”, assim diz trepado num tonel,
através de um megafone, perante um público bastante restrito:
Quero dar o meu testemunho na rua, porque sou um intelectual e acho que
a ligação do povo e dos intelectuais, que existia no século XIX – nem sempre,
mas que deu resultados muito bons -, deveria voltar a existir atualmente. Há
cinqüenta anos que o povo e os intelectuais estão separados; é preciso agora
que sejam um só .
O Espírito Objetivo funciona à maneira de um imperativo, como o sentido
da história dentro da qual o escritor está inserido.
Que significará uma literatura comprometida, engagée, se o “irreal” que
a constitui não permite uma discussão no domínio do imediato: Não é por ser
“irreal” a arte que é “estúpido”, até mesmo “imbecil”, julgar a mesma arte em
função da moral: é por ser inocente. Se, para Sartre, um sentimento “fingido” é
igual (ou quase) a um sentimento “real”, não vemos porque não aproximar a
“irrealidade” da arte – que é uma “ficção” do que se sente, como Fernando
Pessoa frisou e muita gente com ele, desde, pelo menos Camões – da realidade da
vida.
O que é a Literatura? é um longo ensaio, vário, contraditório, temerário
e inteligente. Sartre coloca-se aí fora da sua arte e teoriza sobre ela. Não de
um ponto de vista estético, mas social, de um ponto de vista ético, ou melhor.
O compromisso é necessário para a literatura (não, porém, para a
poesia). Os literatos do século XIX violentaram as leis morais, foram um
momento “negativo” como para a “festa” o mostra Caillois, ou seja, quando se
dissipam os bens e se violam as leis.
A obra de arte apela para a liberdade do leitor, propõe-se ao espectador
“como um imperativo categórico”, mas não atua sobre ele. Em L´Imaginaire não se
excetua o “romance” da “irrealidade” que caracteriza a imagem e subseqüentemente
a arte; em O Que é a Literatura?, para se proclamar a obrigação do engagement,
dá-se à arte em prosa uma posição privilegiada para um confronto com o mundo.
Sartre parece esquecer que as relações da arte com o mundo e sua ação
sobre ele não operam senão extraordinariamente pela parte que a “prosa” excetua
para a pôr em contato direto com o mesmo mundo: faz-se precisamente também e
mais genericamente pela outra parte, aquela para a qual ele não vê viabilidade
de “compromisso”, de engagement. A fração de “prosa” que ele privilegia para
esse engagement é a que confina com os meios de ação, que só por acréscimo tem
que ver com a arte.
A arte é a expressão de uma sensibilidade, de uma visão de mundo, e como
tal intervém no domínio das relações imediatas. Sartre, para quem a música
“escapa inteiramente ao “real” (e daí que lhe não veja grandes possibilidades
de compromisso) não lhe reconhece um “análogo” senão na sua execução”.
Pensar que há imbecis que tiram consolo das belas-artes. Como minha tia
Bigeois: “Os Prelúdios de Chopin representaram uma tal ajuda para mim na morte
de seu pobre tio”. E as salas de concertos transbordam de humilhados, de
ofendidos que, com os olhos fechados, procuram transformar seus rostos pálidos
em antenas receptoras. Imaginam que os sons captados correm neles, suaves e
nutrientes, e que seus sofrimentos se transformam em música, como os do jovem
Werther, pensam que a beleza é compassiva para com eles. Imbecis .
No Prefácio ao Artista e sua consciência , de René Leibowitz, concedendo
à música um valor de “sentido” e não de “significação” que remete a valores
distintos dos próprios elementos que significam – Sartre concebe possível um
engagement da música na dimensão do “sentido”. Para Leibowitz, porém, e com
razão, o “compromisso” afirma-se precisamente na “invenção técnica e no ato de
liberdade que ela encarna” contra a chatice da repetição do já feito e a
obediência aos cânones impostos.
Quanto ao cinema, numa carta a Alicata, Jean-Paul Sartre, vivendo na
Itália, a propósito de um artigo do Unitá consagrado ao filme soviético A
infância de Ivã. Alicata decidiu tornar pública essa carta que apareceu no
Unitá de 9 de outubro de 1963, assim escreve no início:
Disse-lhe já várias vezes quanto é grande a minha estima pelos seus
colaboradores que se ocupam da literatura, artes plásticas e cinema. Acho que
reúnem, ao mesmo tempo, rigor e liberdade, o que contribuiu para que possam, em
geral, ir ao fundo dos problemas e, ao mesmo tempo, compreender a obra no que
ela contém de singular e concreto. Posso fazer as mesmas referências a Il Paese
ne Paese Será: nenhum esquematismo de esquerda, nem ninguém que seja
esquemático .
Quanto ao realismo que fora mostrado nesse filme, Sartre nos diz:
Em definitivo, as melhores produções do realista sempre nos
apresentaram, a despeito de tudo, heróis complexos, com cambiantes, exaltando o
seu mérito, tendo o cuidado de sublinhar certas fraquezas. Na verdade, o
problema não está em dosear os vícios e as virtudes do herói, mas sim em por em
discussão o próprio heroísmo. Não para o recusar, mas para o compreender .
(**RIO DE JANEIRO**, 15 DE ABRIL DE 2018)
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