4.0 - MEMÓRIA E CONFLITO INTERIOR - PARTE III# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/ARTE ILUSTRATIVA/Manoel Ferreira Neto: TESE
Não importa quanto ele enfeitou ou alterou suas
memórias e observações do passado, pois todos esses “aperfeiçoamentos” tiveram
a intenção de emprestar o máximo de expressividade artística e simbólica à
profunda transformação de sua sensibilidade. Os incidentes e fatos narrados no
livro – mesmo que outros tenham sido negligenciados ou comprimidos num lapso de
tempo diferente da sua duração real – podem ser aceitos pelo menos como fiéis
na essência, quando não na forma, e serem usados como material biográfico. O
mesmo pode ser dito dos pensamentos e sentimentos do narrador – que, no
entanto, não pretende ser Dostoïévski.
No artigo, Dostoïévski não faz nenhuma descrição
das cerimônias da Páscoa no presídio, mas alguns detalhes narrados em
Recordações da casa dos mortos não podem deixar de ser mencionados como cenário
e introdução. Durante a Quaresma, os prisioneiros eram divididos em sete
grupos, um para cada semana do período de abstinência quaresmal. A cada semana um
grupo era levado para o sacramento da comunhão; Dostoïévski foi designado para
a sexta semana, um pouco antes da Páscoa. Durante esse período, os prisioneiros
eram dispensados do trabalho e iam à igreja duas a três vezes por dia.
"Assim, na primavera, o fantasma da liberdade
entrevista, a alegria de tôda a natureza se traduziam para mim numa tristeza,
numa irritabilidade aumentadas. Durante a semana da Paixão incluíram-me entre
os que deveriam fazer a Páscoa. O velho suboficial dividira o presídio em sete
séries, correspondentes às sete semanas da quaresma. Cada grupo era composto de
uns trinta homens que deveriam fazer sucessivamente as suas devoções, e para
êsse fim eram dispensados dos trabalhos. Essa semana de descanso me fêz muito
bem. Íamos à igreja, que ficava a pequena distância da fortaleza – duas, e até
mesmo três vêzes por dia. Já há muito tempo que eu não entrava numa igreja. Os
ofícios da Quaresma, tão familiares à minha infância, na casa de meu pai, as
orações solenes, as prostrações, tudo isso me revolvia na alma recordações de
há muito apagadas, tudo me trazia evocações da meninice."
Os preparativos da Páscoa evocavam naturalmente
recordações das práticas religiosas da infância de Dostoïévski – dos dias em
que sua fé era serena e tranqüila – e de sua impressão, já naquele tempo, de
que os camponeses eram cristãos muito mais verdadeiros em suas devoções do que
a arrogante classe dirigente que os tirava do lugar com tanta insensibilidade.
Não se pode esquecer dos possíveis efeitos da missa
de Páscoa ortodoxa, que, celebrando o mistério essencial da ressurreição de
Cristo, sublinha o amor fraternal e o perdão mútuo que deveria unir todos os
fiéis em regozijo pelo acontecimento miraculoso. É um costume do ritual
ortodoxo que os membros da congregação se abracem e se beijem no momento
culminante da missa de Páscoa.
"Numa quinta-feira de páscoa, um mormaço
impregnava o ar, o céu estava azul e o sol vivo e quente, mas minh´alma estava
mergulhada em trevas. Eu andava vagabundeando, além das casernas, contando as
estacas da maciça estacada que formava a muralha da prisão, sem desejar
contá-las conquanto fosse para mim uma ocupação habitual. Os detentos “estavam
em repouso” por ocasião do segundo dia de festa; muitos estavam embriagados e,
a cada instante, ouviam-se injúrias e murros trocados em todos os cantos.
Outros cantarolavam canções obscenas, jogavam cartas - alguns detentos meio
oprimidos por seus camaradas, conservavam-se de lado nos seus catres, cobertos
por u´a manta, esperando que os chamassem; as lâminas das facas já tinham
brilhado algumas vezes... tudo isso durante estes dois dias de festa,
torturava-me a ponto de me deixar doente. De resto, nunca pude suportar sem
desprazer o espetáculo da galhofa popular, aqui ainda menos que em qualquer
outro lugar. Nestes dias havia falta de guardas; estes abstinham-se de
esquadrinhar em busca da aguardente, compreendendo que era bom dar tréguas uma
vez por ano, mesmo a esses condenados, admitindo-se que nada de peor podia
acontecer. Por fim, senti inflamar-se o ódio no meu coração. Encontrei um
polonês, M-cki, preso político: ele me lançou um olhar sombrio, o olho
faiscante e o lábio trêmulo: “Odeio estes bandidos!” disse-me ele em voz baixa,
rangendo os dentes, depois se distanciou."
A dialética se mostra no início, conforme as
palavras textuais, “um mormaço impregnava o ar, o céu estava azul e o sol vivo
e quente”, isto é, deparamo-nos com a esperança da liberdade, simbolizado pelo
céu azul, e o “sol vivo e quente”, simbolizando a luz, a claridade, o desejo do
numinoso, do encontro, da redenção. Interessante é, anteriormente, “um mormaço
impregnava o ar”, simbolizando e representando o “interior”, desejo e vontade
da alma de liberdade, redenção, ressurreição. Neste sentido, há de se considerar
a “dialética interior” dessa busca de Dostoievski, que permeara toda a sua obra
futura. Assim, a dialética “interior” são as trevas e a luz, que se
multiplicará, originando as dialéticas-moventes. Considerando, como alguns
autores, o paradoxo, a ambigüidade, o duplo, habitam o interior, são elementos,
deixa-se de contemplar as dialéticas-moventes, que são importantes na busca da
harmonia, do equilíbrio, da fé, da liberdade, ressurreição e redenção. Revelam
a duplicidade do homem, corpo, espírito, alma, a busca da adesão de todos
através da fé, da esperança.
Jung nos lembra que a luz da natureza, o sol vivo e
quente, é uma luz que foi acesa no Espírito Santo e jamais se apagará, porque
está bem acesa... e a luz é de tal natureza, que deseja arder continuamente –
“Eu vim deitar fogo à terra, e como gostaria que já estivesse aceso!” (Lc
12,49). É uma luz invisível: daqui se segue que só no invísivel o homem tem sua
sabedoria, sua arte, provinda da luz da natureza. O homem é “um profeta da luz
natural”.
A conversão iria contribuir sobremodo para a
revelação da obra dostoiévskiana, as trevas e a luz, esta busca de encontro com
a luz, só possível a partir desta conversão, embora em suas obras anteriores a
semente se revela, a partir dessa obra a vivência e a experiência radicais, a
entrega absoluta e inteira, a doação aos homens, à humanidade, entregar sua
vida a nós os homens, em sua obra, para nos ajudar a procurar nossos caminhos,
assim alcançaria sua ressurreição. Assim, construiu-a verdadeiramente, ressuscitou
nas artes, na literatura.
A consciência foi sempre descrita, segundo Jung, em
termos derivados de fenômenos luminosos; não seria despropositado admitir que a
multiplicidade dos discursos na obra dostoiévskiana, as dialéticas-moventes,
múltiplas luminosidades que correspondem aos conflitos da alma humana, desejo
de consciência e liberdade. Se a luminosidade aparece em vários discursos, por
exemplo como estrela singular, estrela-guia, como o sol ou como o olho, ela
assume paradoxos e antinomias, que são interpretadas como Si-mesmo. Trata-se de
um caso de doublé conscience [dupla consciência], que analisaremos futuramente,
devido à dissociação da personalidade. Os símbolos do Si-mesmo têm caráter de
“comunhão”, “koinonia”.
Se intencionamos a comunhão do contraste,
antinomia, dialética-interior, dialéticas-moventes, é que através destas é que
se pode aproximar do conflito dos homens, da humanidade, compreender e entender
o mergulho profundo na alma humana. São elas que indicam o caminho, é a “estrela”
que nos leva ao Menino Jesus, ao Amor, Solidariedade, Compaixão. Ambas
interpretações contribuem para os “caminhos do espírito” na obra
dostoiévskiana.
A ausência dessa interpretação da dialética
“interior”, considerando “trevas e luz” identifica o “realismo” russo, que
trataremos mais tarde, mostra todos os conflitos, dramas, traumas dos homens,
da humanidade, não revela os “caminhos da salvação” – as trilhas que seguimos
até alcançá-la. Ademais, no tangente à citação acima, acerca da conversão de Dostoiévski,
esta dialética-interior, trevas e luz, não entenderíamos mais profundo a fala
do prisioneiro que originou o mergulho no psíquico, era necessário conhecer a
si próprio, só assim poderia conhecer a alma humana, a alma do povo russo, da
humanidade.
As idéias de Mikhail Bakhtin iluminaram sobremodo
para as dialéticas-moventes, a multiplicidade de discursos, ela origina
aquelas, revelando a busca, que culminará na redenção, ressurreição, isto a
partir da conversão, psicopatológico por baixo, ontológico por cima, a
experiência e vivência, a fé a esperança.
(**RIO DE JANEIRO**, 19 DE ABRIL DE 2018)
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