#AFORISMO 98/TESTEMUNHO DO SILÊNCIO QUE HABITA A ALMA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
"... nas cidades vivem os vis servidores e os seres subjugados,
embora usem arreios dourados."
Epígrafe:
"Maria maria os verbos da vida,
Maria maria as sendas do ser,
Maria maria as veredas do amor,
Maria maria os verbos do espírito..." (Manoel Ferreira Neto)
A face das rosas, lírios, samambaias, árvores, próximas ainda de meu
olhar; das árvores, ao longe, através das grimpas, pequenos espaços entre as
folhas e galhos, veem-se os campos, as montanhas, os picos, à distância,
percebendo nitidamente as nuvens carregadas – talvez chova até ao resto do
milênio, - voltadas para mim, iluminam-se agora todas, cinza ainda claro, não
demonstrando bem que irá chover por dias inteiros, solenes.
Não é preciso dizer que não estou aludindo a qualquer ordem ou comando
externos, pois não os admitiria em hipótese alguma. Sou hoje mais
individualista do que nunca, mais egocêntrico do que jamais fui, mais solipsista
do que um dia imaginei. Não sinto qualquer vergonha nisto. Não debulho contas
de terço em nome de perdão. Ao contrário, orgulho-me. Antigamente era sempre
verão no meu coração, era sempre deserto nas minhas veias, admira-me como o
sangue fervendo não as dissolveu. Meu temperamento era sinônimo de extremismo,
de paradoxo. Enchia minha vida de êxtases e euforias até a borda, como quem
enche o seu copo de vinho até a borda, bebe-o num só fôlego, nem degusta o
sabor.
Agora, encaro a vida sob ponto de vista inteiramente novo e muitas vezes
torna-se extremamente complicado para mim até mesmo imaginar a felicidade
efêmera e passageira, a alegria breve e custosa de passar, a vida nítida e
nula. Vejo novos progressos, tanto na vida quanto na arte, constituindo-se cada
um deles numa nova forma de perfeição, de encontro, de realização, de outros
projectos. Desejo viver ainda mais um pouco para poder explorar o que é para
mim nada menos do que um novo horizonte, nova montanha que terei o prazer em
escalar. A nova montanha que terei prazer em escalar são a contemplação e
meditação acerca dos caminhos do espírito e da alma, con-templar a plen-itude
plenamente, as águas do rio que vão sendo outras ao longo de seu trajeto para a
vida, a poeira do sertão que os ventos vão soprando, levando.
Aos meus olhos, nada parece ter o menor valor, o ínfimo sentido e
significado, exceto aquilo que consigo obter com esforço e determinação
próprios, sem rogar e implorar a ninguém que me abra os caminhos, que escancare
as janelas. Minha índole procura nova forma de realização pessoal e particular.
Esta é a única preocupação que me ocupa hoje. A primeira coisa que terei de
fazer será libertar-me de qualquer jugo ou de qualquer opinião alheia, aliás a
opinião de quem quer seja não me diz quaisquer respeitos, são unicamente
opiniões, de qualquer sentimento de culpa ou remorso por dizer o que penso e
sinto. Aprendi que o dito por mim continua sendo o dito por mim, e se houver
intenção de um aplauso ou elogio de quem quer que seja será uma inautenticidade
minha ou desejo incólume de chorar mágoas que não são minhas de todo. Não
chegarei a afirmar que o exílio e a indiferença são as melhores coisas que
poderiam ter me acontecido, pois tal frase teria um sabor de excessiva mágoa
contra mim próprio e contra o mundo e as pessoas.
E nesta imóvel radiação do silêncio, a esperança de paz re-nasça
irmanada à de compaixão e solidariedade, dissolvendo-se num imenso
apaziguamento. Com o olhar gravado de mistérios e enigmas, as nuvens velam os
ossuários da terra, as penas do mundo, os pelos do ovo terreno, a profunda
surdez que me submerge, o profundo deserto que me suspende – o mundo das
imagens altera-se a cada instante, o contínuo das águas gira depressa. Desde
que haja amor em meu coração, não me importa dormir sobre a relva fresca no
verão e, quando o inverno chegar, procurarei refúgio junto aos montes de feno
ou sob o alpendre de um grande celeiro. Ter sido reconhecido mendigo, recebido
"cesta básica de alimentos", con-senti para não passar fome,
alimentar a liberdade de sonhar o amor. Coisas externas não têm qualquer valor
para mim – ao menos hoje que aprendi a conviver com o silêncio das coisas e do
mundo.
Referindo-me ao que aprendi, não distante de angústias e tristezas,
fracassos e frustrações, lamentar as experiências vividas é uma forma de
impedir o próprio amadurecimento, reclamações, lamúrias devido a atitudes
alheias, atitudes ingratas, arbitrárias, são modos de afastar as pessoas que,
porventura, inda trilham os meus caminhos - faço isto sempre: resmungou,
lamuriou, reclamou demais saio fora sem acenos, não suporto pessoas que se
julgam vítimas do mundo -, são, por último, revelação de carência absoluta.
Negá-las é colocar uma mentira deslavada nos lábios da própria vida, obrigando-a
a torná-la verdade só minha. É nem mais nem menos do que a negação da alma.
No deserto viveram sempre os verdadeiros, só o sábio dos sábios conhece
bem a verdade – o espírito é a vida que purifica a própria vida, a água é a luz
que ilumina a luz mesma, o fogo é a chama que alenta os desejos -, os espíritos
livres, como senhores onipresentes e oniscientes do deserto; e a corrente de
todo conhecimento profundo é fria, são geladas as fontes interiores do
espírito; porém nas cidades vivem os vis servidores e os seres subjugados,
embora usem arreios dourados.
Se as coisas fossem diferentes: se não me restasse um só amigo no mundo,
se nenhuma casa me abrisse as suas portas, se me visse forçado a vestir os
andrajos de um mendigo, enquanto estiver livre de toda a culpa, remorso de uma
atitude de não que ocasionou tais infortúnios, poderei enfrentar a vida com
muito mais calma e confiança do que o faria se o meu corpo vivesse coberto pelo
mais fino linho ou seda e a alma que ele abriga doente de angústia e tristeza.
É noite... como uma fonte o desejo de fulgor. Agora, eleva-se mais forte
e sonora a voz das fontes, a alma também é uma fonte. O silêncio na boca dos
indivíduos faz rolar pedras surdas, depois muda de imediato: sorri como que
para se desculpar e os lábios descobrem o esqueleto: esses dentes sem origens e
nem raças, conhecemos apenas as influências em que o osso substitui o baton
incolor. Nós outros temos aversão pelas nuvens baixas, por esses seres de
meia-palavra e de recitações, de meia-atitude e declamações, por esses seres
mistos que não sabem nem compreender nem entender os fios de ouro em seus
corações.
Se a vida é para mim um problema – como certamente acontece – eu também
não deixo de ser um problema para ela. As pessoas são forçadas a adotar uma
atitude qualquer a meu respeito e, ao fazê-lo, estão julgando não apenas a mim,
mas a si próprias. Seria inútil dizer que não me refiro aqui a qualquer pessoa
em particular. As únicas pessoas com as quais gostaria de conviver agora seriam
os simples e com os que já sofreram, com aqueles que conhecem a beleza e o
sofrimento – ninguém mais me interessa. Acredito que não sentir culpa ou
vergonha de viver é uma das primeiras metas a atingir, em benefício de meu
próprio amadurecimento e também por eu ser tão imperfeito.
Concentro a minha atenção enquanto escrevo e fumo um cigarro de palha,
para que a frescura da alegria inteira me trespasse, nítida e branca. Há a
intensidade essencial do horizonte nulo. É o que, sobretudo, me fascina,
extasia, essa verdade original das coisas, através da luz nítida, laminada nas
águas. A vida toda está aí, na linha inexistente da separação que une, do
divórcio que comunga. Um projeto de vida isola-se-me nítido na memória, por
isso desencadeei o meu combate, sereno e destemido, à dureza solar da verdade
nítida. Recupero a felicidade simples, fria de estar, alegria intensa e nula.
Agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado por
coisa alguma, mas presente a mim próprio, como se fosse o mundo que sou eu,
agora nada entendo de meus acontecimentos.
(**RIO DE JANEIRO**, 15 DE AGOSTO DE 2017)
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