#AFORISMO 120/A CORAGEM MATA A VERTIGEM ANTE O ABISMO# - GRAÇA FONTIS: ESCULTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Ah, destino e mar!... No mar, o destino é remar o barco rumo à
imensidão, perder-se depois do encontro das águas e as nuvens. Reconheço o meu
destino. Começo, agora, a minha última solidão.
É preciso aprender a desviar os olhos do umbigo - de tanto olhar o
umbigo, acaba-se entrando num abismo in-finito - para ver muitas coisas: tal
dureza é necessária a todo caminhante do chapadão. Quem busca o conhecimento
além da solo íngreme, árvores secas e mortas, ossos de animais mortos de fome e
sede, com olhos impudentes, como poderia ver mais do que as razões exteriores
das coisas. Quero olhar, observar a razão e o fundo de todas as coisas, devo ir
para além de mim mesmo, de meu itinerário no chapadão, para o fim dele, até ter
o vale esplendoroso diante dos olhos, olhar do vale para mim mesmo, é isto o
que ainda me resta por atingir o meu último reduto.
Eis-me diante da mais alta serra do vale, um abismo indescritível
embaixo, e a mais longa de minhas peregrinações; mister descer mais fundo do
que algum dia já desci. Mais fundo na dor, no sofrimento, nas angústias, nas
náuseas, no nada, até dentro da mais negra vaga. Assim deseja o meu destino,
assim quer a minha liberdade. Pois muito bem, estou pronto!
Conto um enigma que vi - ou seria melhor dizer um enigma a que
presenciei, a que fui presenciado? A visão do ser mais solitário. Pelas ruas,
becos, alamedas, avenidas planos, no meio dos homens, sentia-me só e nauseado,
os homens provocam náuseas, mas na alta serra, a visão do ser mais solitário
sentiu-se-me de uma leveza inexpressível. Caminhava no lívido crepúsculo -
sombrio e crispado, passando a ponta da língua nos lábios, mordendo-lhes.
Há uma coisa em mim a que denomino "cor-agem", em verdade,
"cor-agem implacável" E ela, até aquele momento, matou em mim todo o
desânimo, todo o medo, toda a hesitação. Essa coragem mandou-me alfim parar e
gritar: "Ou o mais fundo do que já desci ou sentado numa pedra olhando o
panorama, a paisagem, o horizonte, as nuvens brancas e azuis. Não tenho
estômago para estas cositas." A coragem mata a vertigem ante os abismos. O
próprio ver não é ver abismos?
Vejo que é escuridão no abismo. De que adianta uma lâmpada, uma lanterna
no fundo do abismo? É escuridão, não é morte. Não é dor nem paz, é escuridão, é
perfeitamente a escuridão. Minh´alma no fundo do abismo está comendo vida, está
entupigaitada de vida, a vida escorre nas entranhas. Saber que ainda há
florestas, bosques, abismos, sinos, palavras; que no alto do pico o catavento
gira, o tempo não murchou.
Existir: seja como for! Meu nome é "cor-agem", e escreve-se na
amurada de pedra do abismo.
(**RIO DE JANEIRO**, 24 DE AGOSTO DE 2017)
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