#AFORISMO 136/ESPERANÇA SOBRE O TRAVESSEIRO# - GRAÇA FONTIS: ESCULTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
Deparo-me
com uma esperança sobre o travesseiro. Não estou deitado sobre. Faço questão de
levantar, sentar-me na cama, vendo-a andar de modo bem lento. Ergue, em
primeiro lugar, a perna esquerda, dando um impulso – a direita move-se. Longo
tempo. Desce do travesseiro, seguindo o caminho sobre o lençol. Beirada do
colchão. Empreende um pulo. Não se machuca. Dirige-se ao canto da porta,
trancada a chave.
Olho-a Pára. Minutos inerte. Penso que, em
conseqüência do pulo, machucou-se. Por determinação própria - se é que uma
esperança determina-se – empreende alguns passos. Devido à dor de se haver
machucado, não suporta mais. Morta?
Insanos
medos. Gritos sem culpa. Pranto que engole encontros ofertados.
Em
carne?
Noites
cirzem da paz os sorrisos.
Por
que não amores sublinhando o que resta de evangelho?
Se
houvesse seguido andando sobre o lençol, não haveria de acontecer de se
machucar. Poderia tê-la eu apanhado, colocando-a no chão. O objetivo, de
sentar-me à beira do colchão, era legar-lhe todo o espaço para andar. Deitado,
poderia, sem querer, com o peso do corpo, esmagá-la. Não era o desejo, ao menos
explícito. Aliás, era o de permanecer andando sobre o lençol. Pela manhã, nada
de diferente. As coisas nos seus devidos lugares. Na cabeça, o mesmo silêncio. No
percurso do tempo, o consumo de uma paixão absurda versus realidade inútil. Às
vezes, penso que seria necessário uma transformação. Algo a ser olhado de modo
inusitado. Até que eu morra, tudo...
A
humanidade suspire pela água que se lhe escapou!...
Os
instantes incutem na mente dos homens o
vazio!...
Nesta
manhã, algo excêntrico. Deparo-me com uma esperança sobre o travesseiro. Algo é
metamorfoseado. Não se trata de outras manhãs que, contrariado e aborrecido,
fui obrigado a assumir.
Passo
a observá-la. Nenhum silêncio escalona a solicitude estranha. Nenhum mistério
exaure de antigas ignomínias. Nenhuma respiração entre parênteses. Nenhum
imenso envolvido pela neblina. Que divague, trema de tristeza, irradiando o
chamado sombrio que engrena sanções refratárias.
Começo
de preocupar-me. A esperança quieta. Homem não consegue estar parado este longo
tempo. Olha para um lado, faz um gesto desnecessário, pensa em algo, abaixa a
cabeça. A esperança não. Não tem a atitude dos homens. Não se aborrece. Não se
entedia.
Desvio
o olhar para a mesa de cabeceira. Vejo o cachimbo, o diário. Sobre, caneta
tinteiro, presente de mãe, aquando completei nove anos. Parker 5l, pena de
ouro. Ergo-me. Apanho a caneta. Com cuidado, encosto a pena na esperança. Anda
com passos medidos. Não está morta. Vive. Solta no espontâneo.
Decido
tomar o banho. Lembro-me de que necessito passar na Companhia Telefônica, a fim
de pedir que venham consertar o
aparelho.
Aconteceu.
Alguém
conversou por quarenta e cinco minutos. Logo de início, disse-me: “Não preciso
de conselhos. Desejo apenas desabafar-me”. Conflitos com os colegas de
repartição, concorrências, desonestidade, brigas com o diretor. Só em seu
apartamento. Sem ninguém com quem conversar. Nada expressei. Ouvi. Olhava o
canto da parede.
Dirijo-me
ao banheiro. Olho a esperança. Anda. Algo na cabeça: a esperança no
travesseiro. A esperança que mudou a manhã.
Ainda
que o silêncio ejacule o crepitar triste da presença, se as vozes não
estilhaçam a intimidade, a morte desfacelará no peito, a corrupção perdurará
nos olhos.
Talvez
seja esta uma resposta, mesmo que por lacunas e vazios, que encontro para um
questionamento que venho com efeito elaborando em minha mente: algumas cenas de
obras literárias em que pensamos que a ação acontece naquele instante, mas isto
não seria devido ao fato de que esquecemos do narrador. Não há como pensar que
a ação acontece no momento em que é narrada, descrita.
A
despeito disto, lembrou-me bem nítido desta esperança que apareceu em minha
cama, logo ao levantar-me. Aconteceu de ela pular da cama, andar pela extensão
do quarto. Em verdade, fui tomar um banho. Não sei o que teria acontecido para
morrer. Decidi então re-criar o acontecimento, mas, agora, vem-me à mente que
aquela esperança tinha um outro sentido que não este que venho esboçando, havia
em sua presença uma mensagem positiva, digamos assim. Contudo, em esboçando um
sentido negativo, a morte da esperança antecede à morte da harmonia, e assim o
homem está eminentemente envolvido com uma vida absurda e irritante, não posso
mais saber que símbolo havia nesta esperança que apareceu em minha cama e
morreu sem que eu saiba o que teria causado a sua morte.
Profundezas
da carne.
Refletem-me
na face imperfeições presentes.
Sou
eu quem me despe inteiro.
Algo
sucedeu tão logo me deparei com a esperança sobre o travesseiro. O vazio
dissipou-se. Tudo modificaria. Era espontâneo existir, tendo algo que defender.
Sem estar defendendo a angústia. Defendê-la-ia contente.
Sozinho,
defendo a verdade, que me ajuda a enfrentar problemas, situações. Verdades são
passíveis de críticas, questionamentos. Não me pertencem. O mito da verdade
extinguiu-se. Perdeu-se no tempo. Não há critérios para julgar.
“Ainda
que as diferenças conheçam o oráculo obscuro da luz,
Se
o enigma das mãos unidas não reunir o espírito,
O
toque será vazio,
A
carícia reconhecerá escuridões;
Ainda
que os sonhos particulares timbrem apelos à eternidade,
Se
as dúvidas cortam os corpos vulcâneos,
Esperanças
avizinham mortíferas flechas,
Gritos
despojam mortes transcendentes.
Se
hei-de usar o amor e a verdade
Para
com a vida, desço à fonte e tiro a água;
Se
não, fico desobrigado de minha presença e, então,
Toco
com as mãos os estatutos do obsceno”.
(**RIO
DE JANEIRO**, 30 DE AGOSTO DE 2017)
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