#ATEÍSMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO# - GRAÇA FONTIS: ESCULTURA/Manoel Ferreira Neto: ENSAIO
DEUS ESTÁ MORTO - CAPÍTULO XXI
Outra vez, acabamos excluindo as categorias pelas
quais demos um valor ao mundo, levando-o a assumir uma forma sem nenhum sentido
e valor. Todavia, o fato dessas três categorias não tangerem mais uma
interpretação do mundo, o fato de as termos desvalorizado, a ineficiência de
sua aplicação ao mundo não pode constituir razões bastantes para a
desvalorização do mesmo.
Mesmo diante desse quadro, o niilismo que se apresenta
como estado psicológico, que propicia o processo de desvalorização e dissolução
dos valores supremos tradicionais, é uma espécie de niilismo incompleto, pois
se inicia com ela uma supressão dos antigos valores, mas, por outro lado, os
novos se encontram aí, ocupando seus lugares, conservando a marca
supra-sensível, ideal. Nesta categoria de niilismo, a dicotomia
mundo-verdadeiro e mundo-aparente continua em vigor, sustentando ainda uma
crença, sem se desaparecer por inteiro.
Em contrapartida, Nietzsche só admite a supressão
total do mundo supra-sensível, ideal, com o amadurecimento do niilismo
completo. Neste, encontramos uma duplicidade: o niilismo do forte e o niilismo
do fraco, isto é, o niilismo ativo e o passivo. O niilismo do fraco decorre da
falta de força em construir um mundo com sentido à maneira da metafísica; nele
encontramos um sinal de declínio e recuo da potência do espírito. É um niilismo
do cansaço que exaure a força criadora de sentido e se entra no estado de
resignação. O niilismo da força já se revela como sinal de potência evoluída do
espírito o qual se remete a desenvolver e antecipar o processo de destruição.
Esta categoria de niilismo arruína todos os valores tradicionais, como também
qualquer espécie de mundo supra-sensível.
Assim, a radicalidade do niilismo que, aliás,
Nietzsche pretende atingir, aduz, precisamente, que são falsas as concepções de
fé e verdade, pois o mundo verdade é inexistente, é uma ilusão causada por nós
mesmos. Desta forma, com a supressão do lugar ideal dos valores tradicionais,
abrimos margens para uma nova escala de valores, fazendo uma transformação no
caráter do niilismo: de negativo passa-se a positivo, uma vez que possibilita o
surgimento de valores novos, fundados na vontade de potência. Com essa
metamorfose do niilismo, isto é, o fato dele abrir caminho afirmativo, ele
supera seus limites e se completa, tornando-se a forma de niilismo aduzida ou
colocada por Nietzsche.
Este niilismo deve ser originado sob o mais
terrível aspecto, destacando de caráter existencial qualquer impulso de
finalidade e motivos todavia, encontrando-se em constante repetição, sem se
concluir em um nada. Portanto, é um niilismo que se completa com a implantação
do eterno retorno. Desta forma, as coisas estão num constante fluir, observando
e realizando aquilo que é permitido pela energia do cosmo e da mecânica, sem se
repousarem no nada ou na própria finalidade de atingirem a si mesma. Fincado nestes
pressupostos, Nietzsche chega à conclusão de que a especificidade geral de todo
o mundo resulta no caos que perpassa por toda a eternidade.
Agora, surge um outro problema: a existência parece
tornar intolerável. É por isso que Nietzsche sugere essa superação, o
super-homem, como alguém que exprime a concentração máxima da vontade de
potência, capaz de tolerar esse pensamento. Para que surja o super-homem, é
preciso haver uma transvaloração de todos os valores ao qual se opõe totalmente
ao niilismo e o supera. Portanto, com a superação da dicotomia entre os mundos,
faz-se necessário repensar o sentido do devir, sem voltar à dicotomia
platônico-niilista. E é neste repensar que Nietzsche encontra oportunidade para
trabalhar sua doutrina do eterno retorno.
O eterno retorno seria um susto somente se a
consciência se lembrasse das intermináveis repetições, se portanto no curso do
tempo ela não apenas permanecesse a mesma, mas soubesse que era a mesma. Mas se
a consciência pensa que está cada vez recomeçando, e nessa ilusão de um início
se repete constantemente, haverá para a consciência sempre novos começos, não
repetições, ainda que lhe apresentem um cálculo que pareça comprovar o eterno
retorno à Medida que nos demonstramos por cálculo a repetição, ainda não a
vivenciamos. O susto (como o encantamento) só pode residir na vivência.
Após o assassínio de Deus que culmina com o advento
do super-homem, o homem tende a ocupar o lugar de Deus. Esse assassínio que o
direciona a se realizar livremente é porta de entrada para a transmutação de
todos os valores da tradição. Assim, temos uma decadência moral que já de
caráter mórbido abre margem ao invento de valores novos, a uma inquietação do
homem frente à realidade.
Como já vimos anteriormente, o niilismo é conseqüência
do esboroamento da moral. Com isso, caímos num caos absoluto que deverá ser
superado a partir do eu que valora, quer e cria. Desta forma, o homem cria
novos valores.
Temos, portanto, a idéia de eterno retorno, não
absolutamente como uma superação do niilismo, acontecimento que se realizará
com o advento do Super-homem e a vontade de potência, mas como uma concepção do
mundo que surge a partir da descrença total da existência de um além mundo, uma
vida após a morte e mais ainda, da própria existência de Deus.
É importante salientar que o termo “eterno retorno”
não é autoria de Nietzsche; surgiu com os pré-socráticos e também representa
uma condição lógica no ateísmo, o que não podemos afirmar que o seja em todo
conjunto do pensamento nietzscheano.
Nietzsche em uma viagem à Suíça, caminhando em Sils
Maria, no alto Engadine é despertado pela idéia de eterno retorno, tida como o
cume do seu último pensamento filosófico.
Segundo ele, para acatar essa nova idéia, faz-se
necessária uma supressão da moral, portanto, uma transmutação dos valores.
O objeto de enfoque agora é o mundo: a falta de
finitude, isto é, o fato dele ainda não ter alcançado um fim, mesmo que tal fim
não tenha sido planejado, leva a concebermos que as forças sustentáculos do mundo
não diminuem, não cessam, senão, na infinitude, o tempo já teria alcançado um
final, já haveria de se tornar fraco e sucumbido. Desta forma, o mundo das
forças não dispõe de um equilíbrio, não cessa nem pára, mas sua força e seu
movimento coexistem de igual grandeza para cada tempo. Assim, o estado que o
mundo tende a alcançar já o foi alcançado e por sucessivas vezes. É como um
instante que já aconteceu e que por muitas vezes se repetirá. Sendo assim,
afirma Nietzsche:
Tua vida inteira como uma ampulheta, será sempre
desvirada outra vez e sempre se escoará outra vez, um grande minuto de tempo no
intervalo, até que todas as condições, a partir das quais vieste a ser, se
reúnam outra vez no curso circular do mundo. E então encontrarás cada dor e
cada prazer e cada amigo e inimigo e cada esperança e cada erro e cada folha de
grama e cada raio de sol outra vez, a inteira conexão de todas as coisas. Esse
anel, em que és um grão, resplandece sempre outra vez. E em cada anel da
existência humana em geral há sempre uma hora, em que primeiro para um, depois
para muitos, depois para todos, emerge o mais poderoso dos pensamentos, o
pensamento do eterno retorno de todas as coisas:- é cada vez para a humanidade,
a hora do meio dia .
Como vemos, o mundo é essa explosão energética que
exala uma capacidade criadora, uma faculdade de transformação, onde não paira
numa finalidade, mas retorna a alguma de suas formas antigas, possuindo meios e
mecanismos para se afastar de qualquer forma de repetição e controlar a todo instante
seus movimentos, a fim de não chegar a um estado final.
A concepção de eterno retorno nietzscheana parte da
visão linear do tempo, de uma sucessão intratemporal, enfocando uma diferença
entre passado e futuro, passando de antemão a suprimir esta lineabilidade,
concebendo a infinitude do tempo, a eternidade, de uma maneira nova e estranha.
É baseado nesta concepção de que o mundo não tem origem nem fim no espaço, da
afirmação e negação simultânea do tempo, onde cada instante possui caráter de
eternidade que sua idéia de eterno retorno é edificada.
Em a Gaia Ciência, Nietzsche afirmara:
De fato, nós, filósofos, livres espíritos, sabendo
que o antigo Deus está morto, sentimo-nos iluminados como por uma nova aurora;
o nosso coração transborda de gratidão, de espanto, de pressentimento e de
expectativa... eis que, enfim, também se não está claro, o horizonte de novo
parece livre, eis que enfim os nossos barcos podem voltar a partir e vogar
diante de todos os perigos; voltará a ser permitida ao pioneiro qualquer
tentativa de conhecimento; o mar, o nosso mar, de novo volta a abrir-nos todos
as suas extensões; talvez nunca tivesse havido mar tão pleno .
Como relatamos anteriormente, a idéia do eterno
retorno é o pensamento mestre de sua última filosofia. Ela é focalizada como
tese central da obra Ecce Homo, sobretudo proferido pela boca do profeta na
obra Assim Falou Zaratustra.
Do ponto de vista antropológico, segundo Carlos A.
R. de Moura, o pensamento do eterno retorno, definido agora como a religião das
almas libérrimas, deve exercer uma ação ético-pedagógica sobre a humanidade. E
este aspecto é até mesmo o essencial, já que, para Nietzsche, o efeito
“existencial” da doutrina estaria garantido, mesmo se ela se mostrasse
cientificamente indemonstrável e se impusesse apenas como uma mera
propabilidade. Enquanto religião das almas libérrimas, seu efeito sobre a
humanidade não é algo estritamente dependente de qualquer certeza especulativa.
Mesmo admitindo que a repetição cíclica seja apenas
uma verossimilhança ou uma possibilidade, basta o pensamento de uma
possibilidade para nos emocionar e nos transformar, da mesma forma como sentimentos
e esperanças .
(**RIO DE JANEIRO**, 31 DE JULHO DE 2017)
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