#AFORISMO 131/ALVORECER: SER O SILÊNCIO DA SINFONIA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
I - INTRÓITO
Farrapos maltrapilhos de sinuosas liberdades esfalfando oblíquos
perpétuos de devaneios, esfiapando obtusos particípios de dissolutas miragens,
e eis o mundo enxovalhado e sovertido sob aquele enigmático mastro chuvido.
Farrapos de teias de ensimesmados arbítrios extenuam-se. As cordas d´água mais
deliram, mais se dilatam na chuvarada, e a terra não penando tal chuvência,
chuvil de enleios e enredos. No mais profundo oceano, sob a raiz das plantas
aquáticas, ou no seio das conchas na areia, é tempo de meio silêncio, de boca
gelada e murmúrio, de lábios trincados e uivos, palavra indireta, aviso na
esquina
Apanho da pena...
Pena de rumores,
Pena de ruminações.
Pena de uivos.
Pena de gemidos.
Vivo é só o homem porque se sabe vivo; e é porque se sabe vivo e mortal,
que ele é um Deus condenado à morte e sem ressurreição. O que há de escárnio na
sua sorte é que a sua parte animal é igual ao animal, o que há de sarcástico na
sua sina é que os seus instintos são iguais aos instintos da serpente que
convenceu Eva a comer do fruto proibido; e a sua parte de grandeza é igual à
dos deuses.
Caixões esmorecem tintas que apagam a incólume memória de anos rasgando
a seda presa no fio oblíquo de fumaças. A cal cofia ambíguas vestes de linho, o
medo de terras recalca o andar cambaio. O ressentimento de tijolos pisa os pés
descalços. A amargura de cimento ressoa o silêncio.
Não me digam que a morte é uma espécie de sono bom, isto me faz rir, não
estou em condições de fazê-lo neste instante, faz-me sorrir de escarniados
sorrisos plum-itivos, sou enviesado ao sabor de certas metáforas
escalafobéticas, servem apenas para o criador se lisonjear de sua criatividade.
Quero morrer dormindo, é a morte mais digna, não saberia que estaria morrendo.
Porque no sono o que importa não é dormir bem, mas sim o acordar depois de se
ter dormido bem. Na morte dormindo o que importa não é morrer, mas acordar
depois de ter morrido bem. Poder perguntar a minha mãe, que morreu dormindo,
como é isto de morrer dormindo, mas a questão é se ela vai me responder. Quê
despautério! Sim, mas é o que sinto forte e presente em mim. Tudo isto é
fatigante quase até à irritação – esta insistência no que é óbvio desde que um
homem morreu. E, no entanto, através de mil crenças ou subterfúgios, jamais o
homem morreu, porque só hoje ele morre.
II ATO
O homem, fora.
Fora das muralhas do exílio,
Fora dos cárceres da escravidão.
Fora dos grilhões da insensatez.
Tumbas a brasas eriçadas esgalgam ódios últimos, sorrindo fúnebres as
derradeiras lembranças. Covas a chamas esfoladas esganiçam vinganças. Cisternas
a águas re-colhidas em/por balde de lata puxadas a corrente grossa. Goles
tirados a tempo curto removem possibilidades cuja força é ser efêmera.
Sepultura íngreme cobre de nada as hipocrisias primeiras, ironias retiradas a
esmo, cinismos repostulados, a falsa modéstia é nonada absurda a copos
emborcados. Sete palmos, as cinzas esfalpadas abrem letras que esmiuçam
tentáculos. Medusa tece pedras cruas cujo olhar fundamenta o barro nu de nossas
ansiedades.
Compreendo a estranheza. O exílio não existirá sem o corpo. No entanto,
constitui um impasse. Impasse para o infinito. Viver o imortal. Pensava que as
muralhas fossem a liberdade – nem mesmo o desejo de atingi-la, alcançá-la.
No exílio, sou ser sem sentido. Fora, a ausência de sentido é o sentido
da ausência, e o sentido da ausência fora da ausência de sentido. É a mãe que
está distante do filho, mesmo com ele no útero; longe dele, embora o cordão
umbilical não tinha sido extirpado. Está à distância dele, após o cordão
umbilical haver sido cortado.
Descobrir a liberdade. Exteriorizá-la no mundo.
Revelar a sensibilidade do espírito. Verbalizá-la na terra.
Ocultar as pectivas pers do subterrâneo da alma.
Angústias... Dádivas... Melodias.
III ATO
O mundo é o exílio. Pensava encontrar um lugar em que descansar os
ossos. A liberdade é para não estar fora do mundo. E fora do mundo não são
ofícios dos ócios. Livre, cadáver de uma perdiz ou de um faisão abatido por
caçador furtivo. Todas as possibilidades são no sentido de o corpo estar
estendido num fosso ou por trás de uma moita, os joelhos dobrados, os cabelos
sujos de terra.
E onde a águia, o gênio de pupila ovante,
Tem vertigens, auras, desfalece e cai,
A ceguinha débil, vagabunda, errante,
D´Olhos às escuras, Infinito adiante,
infinitivos gerúndios radiantes,
Num enlevo aéreo perpassando adiante,
Num enlevo aéreo perpassando vai!...
Branca e pequenina, ligeirinha e leve,
Corta por abismos, plagas sem faróis,
´Stepes infindáveis que ninguém descreve,
Lúgubres desertos de mudez e neve,
Bátegas de brasas, turbilhões de sóis...
(...)
Vem um anjo abri-las; a ceguinha mansa
Põe-se de joelhos, em adoração...
Diz-lhe o anjo:
- Toma, guarda esta lembrança:
Uma palma d´astros, a luzir Esp´rança,
Uma orquídea d´estrelas, a cintilar querenças
Que à velhinha humilde levarás na mão!
A existência procura inserir-se na morte para não se extinguir. A
tristeza resultante da depressão é muito mais que um tipo de emoção
centralizada apenas e exclusivamente na psique: afeta todo o corpo. Ela é
sentida tão agudamente e causa tanta dor quanto um apêndice supurado – talvez
mais.
Lembra-me isto... Talvez não possa denominar uma lembrança, chamar
assim. Não consigo penetrar na significação deste termo, no sentido deste
símbolo. Diria recordação mesmo. E deste termo tenho consciência do que
intenciono dizer.
Sim... O verde de teus tesouros ilumina a escuridão?
Não os vejo, meu amor, para mim abrem horizontes
Mergulho em teus raios, no brilho de teus olhos.
O que sinto, o que me trans-cende
Uni-versos traçam na carne os êxtases,
Alegrias, prazeres, vestígios de miríades,
Entre-laçando nos ossos
Corpos de angústia, tristeza, dor e sofrimento.
Horizontes tecem no sangue os ímpetos,
Fantasias, quimeras, sonhos,
Costurando no espírito,
Utopias de esperanças e fé,
De confiança e con-(s-)-ciência de olhares profundos
Na vida e seus dons e talentos.
Não me escutas
Ausência absoluta de palavras, sentidos e metáforas,
Nos lábios, sorriso sublime de amor,
Representado nas flores secas que são sementes de origens...
Representado nas rosas vivas e viçosas que são raízes
De crepúsculos e auroras, e no ínterim de contemplações
Finge compreensão, finge recolhido e acolhe
No peito o carinho desdobrado.
Na mente a ternura re-presentada
Na manhã da vida, dos desejos e vontades
De felicidade, paz, amor.
Ouves, escutas, sintas
Dores, sofrimentos, desesperanças,
Os homens se queixam de suas desditas.
Lamentam suas sendas perdidas
Só tu, tu podes com simples roçagar a pele
Esquecida nos sonhos que parecem únicos,
Retirar-lhes das angústias a suavidade da fé
Das tristezas a sublimidade das esperanças
Oh, sudário de origens e raízes
Em cujos nós, linhas e perspectivas,
A face verdadeira, pura, de águas límpidas
Refletem a continuidade da vida.
IV ATO
A lua sobe solitária
A memória se esvaece
Suspiram pela morte solene em dias ensimesmados
Pela vida plena em noites escuras
Pela preguiça sublime, o sol forte, calor intenso,
Pelo desânimo, as brumas esfumaçadas, flocos de neves
Suspiro o tempo em que as palavras
Não atendiam rápidas aos pérfidos afagos dos dedos
As mãos feitas concha.
O absurdo maior não é morrer. Sedes esgalgam ventos a trancafiarem
loucuras ensandecidas. À miséria e corrupção de últimas palavras cálices
trancam cinzas processadas de carne humana. Tragédias e farsas de identidades
enjaulam sons resvalados até ao derradeiro delírio. A língua ininteligível
encarcera amores, mesquinhas infâmias.
O outro prende da desconfiança mútua, do receio, da humilhação, a
secreta perfídia.
(**RIO DE JANEIRO**, 29 DE AGOSTO DE 2017)
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