#O CAMINHO DO CAMPO#, MARTIN HEIDEGGER/FILOSOFIA DO VERBO DE SONHOS, MANOEL FERREIRA NETO
Sonhar
é acordar-se para dentro. O sonho que nascera aquando lera pela primeira vez O
CAMINHO DO CAMPO, de Martin Heidegger: escrever um texto eivado de filosofia
poética, poesia pensante, nele escrito e inscrito a minha filosofia. Sonho do
ano de 1982. Tantas águas passaram de por baixo da ponte, tantos caminhos
trilhados à busca de realização deste sonho.
Escrevera
o texto TUDO ATRÁS FICA LENDÁRIO no ano de 2003, tentando consolidar este
sonho, sentindo-me em demasia alegre e satisfeito: a poesia, a filosofia que
emergia de mim próprio. Mas algo faltava para realizá-lo in totum. E o que
faltava? Faltava o gênero. Só mesmo o Aforismo para a trans-lucidez das idéias
e pensamentos.
E,
neste domingo, 11 de junho de 2017, revisitei-o com todo o carinho para acordar-me
para dentro de mim. TUDO ATRÁS FICA LENDÁRIO, título do original escrito em
2003, não respondia pelas intenções e desejos; FILOSOFIA DO VERBO DE SONHOS.
Custou-me domingo inteiro, lendo, relendo, ornamentando aqui e ali. Alfim
pronto.
Pronto,
pesquisei no Google o texto de Heidegger, encontrado sem dificuldades. Então
decidi publicar os dois textos para a apreciação dos leitores.
#O
CAMINHO DO CAMPO#
Por
Martin Heidegger
Do
portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do Ehnried.
Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar, estenda
ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as
campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina,
sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em busca da floresta.
Sauda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco esquadrado
na madeira crua.
Nele
repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que um jovem
desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma
saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente
acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra
agreste.
O
pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus próprios
problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina. Sob os
pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de
madrugada caminha para a ceifa.
Mais
freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a lembrança
aos jogos da infência e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da
floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia,
atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de
madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado,
os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que,
uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os
meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de banco
para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da
escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e
facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um
halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto
era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua
discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias de brinquedo
nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para
trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já
perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O
carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e
frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também
deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico
somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente as duas coisas:
disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que
oculta e produz.
Isto o
carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu
destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um
dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da
colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre
nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo
da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros a cotovia da manhã se
lance no céu de verão, que o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz
a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de
gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao
celeiro oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças as
primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia
sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do
caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O
Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens
inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que
dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As coisas que
amadurescem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua
plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos
a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente
Deus.
Todavia,
o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que os
cerca forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem, não escravos do
artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma
ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do
campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em
seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela voz de Deus.
Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece
uniforme. A uniformidade entedia. Os entendiados só vêem monotonia a seu redor.
O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O
número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui,
não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que
permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver
um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do
homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.
O
apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em
momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta
opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si, o
trabalho promove aquilo que nadifica.
Do
caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que
sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia ciência é uma
sagesa sutil [1]. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm,
receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno
e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranqüilo do
outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se
mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o
caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
A
serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos
gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.
Das
baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo. Galgando a
última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às muralhas da
cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas.
Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho. Vagarosamente,
quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar
noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam
rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria
ninguém esquece.
Após a
última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que
foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se
ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do
caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo
fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a
força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante
Origem, onde a terra natal nos é devolvida.
#FILOSOFIA
DO VERBO DE SONHOS#
GRAÇA
FONTIS: PINTURA
Manoel
Ferreira Neto: AFORISMO
A cena
é de uma fazenda situada num vale, a treze quilômetros de qualquer cidade, seja
ela agradável de se viver, seja como a maioria, um inferninho com todas as suas
letras. Não é um vale muito grande, apenas três quilômetros de extensão e dois
quartos de quilômetro de largura. Sua principal característica é que todas as
famílias ali residentes formam uma comunidade familiar, dessas que todos
conhecemos e são mais ou menos interessantes. As montanhas são montanhas reais,
com aproximadamente dois a três mil pés de altura, e a choupana é uma
verdadeira choupana, não (como a de um autor de imaginação fértil, que deseja
ilustrá-la, ornamentá-la de poesia-pensante, respirando fundo e escutando o
velho e orgulhoso som do seu coração. Eu sou, eu sou, eu sou) uma choupana com
garagem para dois carros de passeio.
Deixemos
que ela seja uma choupana azul, re-coberta de trepadeiras floridas, assim
escolhidas por ter uma sucessão de flores em suas paredes, que se incrustam
pelas janelas durante todos os meses da primavera, verão e outono – começando
pelas rosas de maio e terminando com jasmins de setembro. Façamos, contudo, que
não seja primavera, nem verão e nem outono – mas inverno, e do mais severo e
radical. Esse é um dos principais pontos na ciência da paz e da tranquilidade,
na filosofia do verbo de sonhos da volúpia e da liberdade. E fico sobremaneira
surpreso – atrás da surpresa não há senão a surpresa a surpreender-se a si
própria – ao ver as pessoas não se aperceberem disso e considerarem motivo de
exaltação e júbilo, de alegria e excitação, de contentamento e exultação,
quando o inverno se vai, ou, quando estiver se aproximando, esperar que não
seja tão severo, apenas um friozinho agradável para despertar um sono mais
tranquilo, eivado de a-nunciações de verdades outras que ampliam a visão
onírica do sonho, a alimentação mais saudável e gostosa. Eu, ao revés disso,
peço todos os anos que caia geada, tempestades que os céus possam nos oferecer.
Certamente, todos conhecem o inusitado prazer e satisfação de uma lareira no
inverno, velas às cinco horas da tarde, acompanhadas de um chá com pães de
queijo, quentes tapetes, uma bela mão para servi-lo, janelas fechadas, as
cortinas caindo em amplos drapeados sobre o chão, enquanto o vento e a chuva
estão enfurecidos lá fora...
A vida
passada misturou-se-me com a futura – há uma conversa múltipla e ambígua, e
qualquer coisa indivisível que a atravessa em zigue-zague e é a minha voz. E
houve no meio do salão de fumo, na choupana, um ruído, onde, aos meus ouvidos,
acabara a partida de paciência (e, de repente, a vida fica muito mais extensa,
tão extensa que tudo atrás fica lendário. Lendário?! É um termo estúpido).
Todos
estes detalhes são de uma noite de inverno, numa choupana, numa fazenda situada
no vale, que deve ser familiar a todos quantos nasceram em regiões altas. É
evidente que muitas destas ternuras, delicadezas, como os sorvetes tomados por
uma criança, pedem uma temperatura muito baixa para serem produzidas: existem
frutas que não podem amadurecer sem uma tempestade. Até me dou muito bem com a
chuva, desde que chova a cântaros, pois alguma parte de minha natureza faz com
que eu tenha necessidade disso, do contrário sinto-me enfastiado, uma ojeriza
sem qualquer medida e peso, sinto-me enganado, tripudiado: já que serei
obrigado a gastar dinheiro no inverno, com carvão, velas e muitos outros
artigos que faltam até mesmo a um cavalheiro, quero pelo menos que seja um bom
inverno. Quero um inverno londrino para os meus bolsos, ou um russo, um
carioca, onde cada homem divide com o vento norte a propriedade de suas
orelhas. Em verdade, sou tão epicureu nessa questão que não consigo saborear
plenamente uma noite de inverno se já passou há muito a noite de São João – a
noite de São João é a mais longa do ano – e o tempo começa a degenerar a
caminho das aparências da primavera. Não, o inverno deveria estar separado, por
densas paredes de noites escuras, de toda luz e brilho do sol. Das últimas
semanas de setembro, precisamente a semana de 25 em diante, até o dia de Natal,
assim é a estação da alegria e da satisfação. Pois o chá, seja em que estação
for, apesar de ridicularizado por aqueles cuja sensibilidade é naturalmente
grosseira, ou se tornaram assim por beberem vinho e não serem sensíveis a um
estimulante tão refinado, será sempre a bebida do intelectual.
Não há
qualquer necessidade de sentir-me confuso, perder a cabeça, sentir-me
solitário, aliás, sou homem feliz por esquecer as horas todas. Acalmo-me, bebo
um copo d´água, bebo-o lentamente, aprendo a respirar, a dominar as emoções, a
alumbrar as dimensões dos sentimentos. Sento-me por um segundo, olho, ao redor,
a serra das águias através da janela, expulso a nostalgia, que já não tem
direito algum de persistir, desfio as palavras, uma a uma, semeio música entre
elas. Com a terra à sola dos pés, eu, o rebelde que se recusa a ser reduzido à
condição de alienado, resolvo os problemas cotidianos e, depois de tudo,
contemplo, do alto, as serras, que conheço desde o chão até os menores
detalhes. Sento-me perto das estrelas e estendo os braços como se pudesse
tocá-las. Miro o céu, de um lado ao outro, de uma nuvem à outra, com o olhar
repleto de luz, o corpo relaxado, a cabeça leve. Salmodio preces que na verdade
são pedidos precisos, destinados a facilitar o acerto de uma desavença ou a
dispensar um pouco mais de felicidade ou riqueza a algum homem necessitado.
Aqui, ignoro a própria santidade que não evangeliza, sim proscreve com os dez
mandamentos da heresia. Minha felicidade é tão simples. Não sofro muito com
minha condição.
Posso
imaginar uma choupana com janelas abertas para um campo a perder de vista, um
jardim florido, para um horizonte acolhedor, para casas onde a felicidade seja
constante, ou pelo menos haja a serenidade dos que sentem orgulho de si mesmos,
os que se ocupam em perseverar no melhor de si.
Paro
de sonhar acordado. Jogo as palavras nas dobras de meu diário e depois fecho. O
papel fica impregnado do cheiro de incenso. Morte ao cheiro de incenso, que
queimo tanto nas festividades quanto nos funerais. A morte finge enviar-me para
bem longe dentro de mim mesmo, mas, se me faço vislumbrar novamente os dias
iluminados da vida, é para melhor poder cobrir-me de terra e trevas.
Mas
agora, para afastar-me das descrições longas demais, apresentarei um pintor e
lhe darei instruções para que acabe o quadro que comecei a pintar. Os pintores
não gostam de choupanas azuis, a não ser que estejam sobremaneira gastas pelo
passar do tempo; mas, como o leitor já sabe que estamos numa noite de inverno,
os serviços do pintor serão necessários para o interior da choupana.
(**RIO
DE JANEIRO**, 11 DE JUNHO DE 2017)
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