#FILOSOFIA DO VERBO DE SONHOS# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO
A
cena é de uma fazenda situada num vale, a treze quilômetros de qualquer cidade,
seja ela agradável de se viver, seja como a maioria, um inferninho com todas as
suas letras. Não é um vale muito grande, apenas três quilômetros de extensão e
dois quartos de quilômetro de largura. Sua principal característica é que todas
as famílias ali residentes formam uma comunidade familiar, dessas que todos
conhecemos e são mais ou menos interessantes. As montanhas são montanhas reais,
com aproximadamente dois a três mil pés de altura, e a choupana é uma
verdadeira choupana, não (como a de um autor de imaginação fértil, que deseja
ilustrá-la, ornamentá-la de poesia-pensante, respirando fundo e escutando o
velho e orgulhoso som do seu coração. Eu sou, eu sou, eu sou) uma choupana com
garagem para dois carros de passeio.
Deixemos
que ela seja uma choupana azul, re-coberta de trepadeiras floridas, assim
escolhidas por ter uma sucessão de flores em suas paredes, que se incrustam
pelas janelas durante todos os meses da primavera, verão e outono – começando
pelas rosas de maio e terminando com jasmins de setembro. Façamos, contudo, que
não seja primavera, nem verão e nem outono – mas inverno, e do mais severo e
radical. Esse é um dos principais pontos na ciência da paz e da tranquilidade,
na filosofia do verbo de sonhos da volúpia e da liberdade. E fico sobremaneira
surpreso – atrás da surpresa não há senão a surpresa a surpreender-se a si
própria – ao ver as pessoas não se aperceberem disso e considerarem motivo de
exaltação e júbilo, de alegria e excitação, de contentamento e exultação,
quando o inverno se vai, ou, quando estiver se aproximando, esperar que não
seja tão severo, apenas um friozinho agradável para despertar um sono mais
tranquilo, eivado de a-nunciações de verdades outras que ampliam a visão
onírica do sonho, a alimentação mais saudável e gostosa. Eu, ao revés disso,
peço todos os anos que caia geada, tempestades que os céus possam nos oferecer.
Certamente, todos conhecem o inusitado prazer e satisfação de uma lareira no
inverno, velas às cinco horas da tarde, acompanhadas de um chá com pães de
queijo, quentes tapetes, uma bela mão para servi-lo, janelas fechadas, as
cortinas caindo em amplos drapeados sobre o chão, enquanto o vento e a chuva
estão enfurecidos lá fora...
A
vida passada misturou-se-me com a futura – há uma conversa múltipla e ambígua,
e qualquer coisa indivisível que a atravessa em zigue-zague e é a minha voz. E
houve no meio do salão de fumo, na choupana, um ruído, onde, aos meus ouvidos,
acabara a partida de paciência (e, de repente, a vida fica muito mais extensa,
tão extensa que tudo atrás fica lendário. Lendário?! É um termo estúpido).
Todos
estes detalhes são de uma noite de inverno, numa choupana, numa fazenda situada
no vale, que deve ser familiar a todos quantos nasceram em regiões altas. É
evidente que muitas destas ternuras, delicadezas, como os sorvetes tomados por
uma criança, pedem uma temperatura muito baixa para serem produzidas: existem
frutas que não podem amadurecer sem uma tempestade. Até me dou muito bem com a
chuva, desde que chova a cântaros, pois alguma parte de minha natureza faz com
que eu tenha necessidade disso, do contrário sinto-me enfastiado, uma ojeriza
sem qualquer medida e peso, sinto-me enganado, tripudiado: já que serei
obrigado a gastar dinheiro no inverno, com carvão, velas e muitos outros
artigos que faltam até mesmo a um cavalheiro, quero pelo menos que seja um bom
inverno. Quero um inverno londrino para os meus bolsos, ou um russo, um
carioca, onde cada homem divide com o vento norte a propriedade de suas
orelhas. Em verdade, sou tão epicureu nessa questão que não consigo saborear
plenamente uma noite de inverno se já passou há muito a noite de São João – a
noite de São João é a mais longa do ano – e o tempo começa a degenerar a
caminho das aparências da primavera. Não, o inverno deveria estar separado, por
densas paredes de noites escuras, de toda luz e brilho do sol. Das últimas
semanas de setembro, precisamente a semana de 25 em diante, até o dia de Natal,
assim é a estação da alegria e da satisfação. Pois o chá, seja em que estação
for, apesar de ridicularizado por aqueles cuja sensibilidade é naturalmente
grosseira, ou se tornaram assim por beberem vinho e não serem sensíveis a um
estimulante tão refinado, será sempre a bebida do intelectual.
Não
há qualquer necessidade de sentir-me confuso, perder a cabeça, sentir-me
solitário, aliás, sou homem feliz por esquecer as horas todas. Acalmo-me, bebo
um copo d´água, bebo-o lentamente, aprendo a respirar, a dominar as emoções, a
alumbrar as dimensões dos sentimentos. Sento-me por um segundo, olho, ao redor,
a serra das águias através da janela, expulso a nostalgia, que já não tem
direito algum de persistir, desfio as palavras, uma a uma, semeio música entre
elas. Com a terra à sola dos pés, eu, o rebelde que se recusa a ser reduzido à
condição de alienado, resolvo os problemas cotidianos e, depois de tudo,
contemplo, do alto, as serras, que conheço desde o chão até os menores
detalhes. Sento-me perto das estrelas e estendo os braços como se pudesse
tocá-las. Miro o céu, de um lado ao outro, de uma nuvem à outra, com o olhar
repleto de luz, o corpo relaxado, a cabeça leve. Salmodio preces que na verdade
são pedidos precisos, destinados a facilitar o acerto de uma desavença ou a
dispensar um pouco mais de felicidade ou riqueza a algum homem necessitado.
Aqui, ignoro a própria santidade que não evangeliza, sim proscreve com os dez
mandamentos da heresia. Minha felicidade é tão simples. Não sofro muito com
minha condição.
Posso
imaginar uma choupana com janelas abertas para um campo a perder de vista, um
jardim florido, para um horizonte acolhedor, para casas onde a felicidade seja
constante, ou pelo menos haja a serenidade dos que sentem orgulho de si mesmos,
os que se ocupam em perseverar no melhor de si.
Paro
de sonhar acordado. Jogo as palavras nas dobras de meu diário e depois fecho. O
papel fica impregnado do cheiro de incenso. Morte ao cheiro de incenso, que
queimo tanto nas festividades quanto nos funerais. A morte finge enviar-me para
bem longe dentro de mim mesmo, mas, se me faço vislumbrar novamente os dias
iluminados da vida, é para melhor poder cobrir-me de terra e trevas.
Mas
agora, para afastar-me das descrições longas demais, apresentarei um pintor e
lhe darei instruções para que acabe o quadro que comecei a pintar. Os pintores
não gostam de choupanas azuis, a não ser que estejam sobremaneira gastas pelo
passar do tempo; mas, como o leitor já sabe que estamos numa noite de inverno,
os serviços do pintor serão necessários para o interior da choupana.
(**RIO
DE JANEIRO**, 11 DE JUNHO DE 2017)
Comentários
Postar um comentário