**SEMANA //Blog **BO-TEKO DE POESIAS** - 18-24 DE NOVEMBRO DE 2016** - Manoel Ferreira
FLÂNEUR:
A PROPOSITO DE “O HOMEM DA MULTIDÃO”, DE EDGAR ALLAN POE
Na
Inglaterra, berço da Revolução Industrial, aconteceram profundas transformações
na vida econômica, social e política a partir da segunda metade do século
XVIII, que, ao lado de inegáveis benefícios (principalmente para a burguesia
ascendente), trouxeram problemas sociais gravíssimos, aos quais os escritores
desse período não ficarão indiferentes. Numa época em que a filosofia, letras e
artes se guiavam pela Razão – sublinhe-se e ressalte-se - alguns pensadores
viam as mazelas dessa nova ordem como resultados de uma visão de mundo cerebral
da vida e do próprio ser humano. Isto é muito visível em Blake quando condena a
incipiente indústria do século XVIII como “dark satanic mills”, tingindo as
cidades inglesas com o cinza de sua fuligem.
A
Londres vista por Blake, com suas ruas comoditizadas pela presença do primeiro
avanço do capitalismo, onde perambulam, cobertos de cinzas e famintos, os
limpadores de chaminé, é um esboço daquela Londres metrópole, super-povoada e
injusta, descrita, com certa repugnância, por Friederich Engels, devido à
condição de seus habitantes. “Uma cidade como Londres, onde se pode caminhar
horas a fio sem se chegar sequer ao início de um fim” impunha aos seus 2,5
milhões de habitantes, segundo ele, para erigir-se em principal capital
comercial e industrial, o sacrifício da “melhor parte de sua humanidade”
(Engels 1985: 68).
Em The condition of the working class in England,
Engels ressalta a indiferença entre todos. A
única convenção entre as pessoas na cidade era o acordo tácito segundo o qual
cada um mantinha a sua direita na calçada, a fim de que as duas correntes de
multidão que se cruzavam não se empatassem mutuamente. Em Londres, dizia ele,
ninguém atentava para o outro. Transitando pelas ruas, os habitantes da capital
mostravam uma “indiferença brutal” para com o que se passava ao seu arredor,
cultivando apenas os interesses pessoais voltados para um desavergonhado
“egoísmo mesquinho”, lembrando a descrição da sociedade feita há muito tempo
por Hobbes – a de que a sociedade nada mais era do que o produto de uma guerra
social, “a guerra de todos contra todos” (Engels 1985: 36). E acrescentava que o
que valia para Londres, valia para todas as grandes cidades da Europa.
Em
nosso ensaio anterior, analisamos a obra As flores do mal, de Baudelaire, vista
à luz do pensamento benjaminiano, pautando-nos no “flâneur” e “flâneurie”.
Vimos o panorama da França no século XIX. Continuaremos nesse ensaio sobre O
homem da multidão, de Edgar Allan Poe, servindo-nos do pensamento de Walter
Benjamin. Veremos o panorama da Inglaterra na segunda metade do século XIX.
Em
seus ensaios sobre a obra do poeta francês Charles Baudelaire, Benjamin chama a
atenção para a figura do flâneur que, com um prazer quase voyeurístico,
comprazia-se em observar refletidamente os moradores da cidade em suas
atividades diárias. Dessa paixão do flâneur pela cidade e a multidão, decorre a
flâneurie como ato de apreensão e representação do panorama urbano.
A
expansão sem precedência da economia industrial e a conseqüente explosão
demográfica das cidades, em especial Londres e Paris, acarretaram no surgimento
do ambiente urbano moderno, possibilitando novas formas de experimentar e
perceber. Isso, por sua vez, requeria novo modo de olhar para o mundo e novas
propostas estéticas.
Benjamin
procura explicitar essas transformações, ao investigar como tais mudanças foram
registradas na literatura daquela época. Baudelaire torna-se a figura central
em suas investigações. Para ele, os textos de Baudelaire constituem os
fragrantes mais precisos e intensos da vida social parisiense do século XIX,
revelando as mais finas e sutis articulações do indivíduo moderno com o cenário
urbano.
Benjamim
afirma que “a cidade é o autêntico chão sagrado da flânerie” (1994: 191), e que
o “fenômeno da banalização do espaço” constitui-se em experiência fundamental
para o flâneur (1994: 188). Baudelaire achava a cidade sedutora, principalmente
em seus “mauvais lieux”, por onde se deixava levar em suas andanças erráticas.
As ruas labirínticas da cidade constituem, para o “perfeito divagador”,
“observador apaixonado”, o fascínio da multiplicidade e do efêmero, o gosto
pelo movimento ondulante da multidão. Segundo o poeta francês, o flâneur é
inebriado, extasiado pelo prazer de se achar em uma multidão, o que, para
Benjamin, seria “uma expressão misteriosa do gozo pela multiplicação do número”
(1994: 54).
Para
Baudelaire, há a beleza duradoura nos fenômenos, que permanecem através de
diferentes épocas, e há a beleza do acidental, do instantâneo. Essa última
beleza, a da modernidade, para ser digna de se tornar antiguidade, deve ser
extraída pelo artista com todo o mistério “que a vida humana coloca nela
involuntariamente” (Baudelaire 2001: 110). Esse trabalho, o de dar forma
estética ao moderno, cabe aos artistas como Constantin Guys.
Um
desses é, sem dúvida, Edgar Allan Poe, que, antes de Baudelaire, seu primeiro
tradutor para o francês, já havia explorado, em seu conto “O Homem da
Multidão”, o tema da paisagem e da massa urbana. Nesse conto, Poe “revela
alguns traços notáveis, e basta apenas segui-los para encontrar instâncias
sociais tão poderosas, tão ocultas, que poderiam ser incluídas entre as únicas
capazes de exercer, por meios inúmeros, uma influência tão profunda quanto
sutil sobre a criação artística” (Baudelaire 2001: 119).
A
cidade é o templo do flâneur, o espaço sagrado de suas perambulações. Nela, ele
se depara com sua contradição: unidade na multiplicidade, tensão na
indiferença, sentir-se sozinho em meio a seus semelhantes. Ao errar entre as
galerias e bulevares, ao passear pelos mercados, o flâneur é o ser que vê o
mundo de uma maneira particular, sem a pretensão de explicar, mas com a
intenção de mostrar, levando a vida para cada lugar que vê. Sua paixão é a
interioridade, na rua encontra o seu refúgio, desvincula-se da esfera privada,
buscando sua identificação com a sociedade na qual convive. Ocorre, porém, que
essa identificação resulta em grande parte complicada pela natureza complexa da
sociedade moderna. Nas ruas das metrópoles, o flâneur constata que o homem
moderno é vitimado pelas agressões das mercadorias e anulado pela multidão,
estando condenado a vagar pela cidade como um embriagado em estado de abandono.
É essa angústia que o flâneur representou no século XIX.
O
flâneur aparece como a figura de um burguês que tem tempo à disposição e que
pode dar-se ao luxo de desperdiçá-lo, para horror da sociedade capitalista de
sua época. É um burguês que leva uma
vida sem objetivos definidos a não ser buscar no complexo urbano rusgas, vãos,
becos por onde entrar em busca de algum espetáculo para os seus olhos sobre
pernas. Olhos e pernas são a essência do flâneur e da flâneurie. Para isso, há
que existir um ambiente propício ao seu flanar. Esse ambiente é Paris, uma
cidade feita para ser vista “pelo caminhante solitário, pois somente a um passo
ocioso pode-se apreender toda a riqueza de seus ricos (mesmo velados) detalhes”
(White 1992: 43). Louis Sebastien Mercier, após escrever o Tableau de Paris,
escreveu: “Eu andei tanto para escrever o Tableau de Paris que posso dizer que
o fiz com minhas pernas, aprendendo a ser ágil, ávido e vivaz no palmilhar o
chão da capital. Esse é o segredo para conseguir ver tudo” (White 1992: 44)
Outra
característica do flâneur, que o distingue de um filósofo ou de um sociólogo, é
que ele procura por experiência e não por conhecimento. Para estes, grande
parte da experiência acaba sendo interpretada como – e transformada em –
conhecimento. Já para aquele, a experiência permanece em certa medida pura,
inútil, em estado bruto, fruto do olhar ingênuo, como o de uma criança, do tipo
que Baudelaire atribui a Constantin Guys. Assim, forma-se um retrato dessa
figura que, ao que parece, foi uma pessoa de carne e osso, como mostra esta
descrição de Paris, feita por volta de 1808, retirada e resumida de um artigo
de Elizabeth Wilson: o flâneur é um gentleman que passa a maior parte de seu
dia a vagar pelas ruas, observando o espetáculo urbano – as modas, as lojas, as
construções, as novidades e as atrações. Seus meios de vida são invisíveis,
ficando a sugestão de uma riqueza particular, porém sem a presença da
responsabilidade familiar ou gerencial dessa riqueza. Seus interesses são
primordialmente estéticos e freqüentam cafés e restaurantes onde atores,
escritores e artistas se encontram. Entretanto, parte do espetáculo urbano lhe
é oferecido pelo comportamento das classes baixas (vendedores, soldados, gente
da rua). Ele é uma figura marginal e tende a ser descrito como alguém isolado
daqueles a quem observa (Wilson 1992: 94-95).
O
flâneur, portanto, é o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, através
de cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato, através de
suas andanças, ele transforma a cidade em um espaço para ser lido, um objeto de
investigação, uma floresta de signos a serem decodificados – em suma, um texto.
Ao semiotizar a cidade, o flâneur, esse “botânico do asfalto” (Benjamin 1994:
34), cria uma distinção entre o observador e o observado. Mas, ao contrário de
criar, desse modo, uma posição privilegiada, estabelece com o seu objeto uma
relação bastante problemática, uma vez que ele não apenas observa a multidão a
partir de um “standing point”, mas se imiscui nela. Assim, sua leitura da
cidade ocorre através de olhares fragmentários e momentâneos, não lhe sendo
permitido o olhar contemplativo e eqüidistante, capaz de lhe oferecer a
totalidade de seu objeto.
O
flâneur, protótipo do sujeito moderno, por estar no meio do que tenta descrever
e não ter neutralidade e distanciamento na sua observação (se é que isso alguma
vez foi possível), limita-se a apontar as transformações do cenário urbano e a re-velar sua historicidade. Além disso, o
olhar do flâneur se caracteriza por uma peculiaridade: trata-se de um olhar
distraído. Ao passar, o flâneur captura a paisagem em um estado de distração,
caracterizado por sucessivos e cambiantes pontos de vista. Nessa distração, ou
melhor, nessa “embriaguez anamnéstica” em que vagueia, não importam apenas os
fenômenos que, sensorialmente lhe atingem o olhar. Nesse estado, ele também se
apossa do “simples saber”, cuja transmissão se dá, sobretudo, por notícias
orais, que, para Benjamim, se compõe de dados mortos, como de algo
experimentado e vivido. (1994: 186).
O
narrador de Poe pode ser considerado uma versão londrina do flâneur parisiense
de Baudelaire. Londres e Paris eram duas grandes capitais, mas Londres, já por
volta de 1844, quando o conto é escrito, encontra-se mais marcada pela
industrialização e por todas as conseqüências da revolução taylorista nas
formas de produção do capital. Nesse ambiente, é de se esperar que o flâneur
não existisse ou já nascesse fadado a desaparecer. Como diz Benjamin, citando
Georges Friedmann, “A obsessão de Taylor, de seus colaboradores e sucessores, é
a guerra à flâneurie” (Friedmann 1936: 76)
Em
comparação, a Paris de Baudelaire ainda guardava traços dos velhos bons tempos.
Na Paris de Baudelaire, a situação era diferente, “ainda se apreciavam as
galerias, onde o flâneur se subtraía da vista dos veículos... Havia o
transeunte, que se enfia na multidão... Mas havia também o flâneur, que precisa
de espaço livre e não quer perder sua privacidade.” Ao contrário do homem da
multidão, do conto de Poe, o flâneur é um “ocioso”, a caminhar como uma
“personalidade” que rejeita a divisão de trabalho e a industriosidade da
sociedade de então. Benjamim diz que “era de bom-tom levar tartarugas para
passear pelas galerias”, como uma forma de protestar contra o ritmo imposto
pelo capital (1994: 50-51). Poe descreve Londres como possuindo algo de bárbaro
que a disciplina mal consegue sujeitar. A industrialização e suas “benesses”
isolam os seus beneficiários e os aproxima da mecanização. Segundo Benjamin, “O
texto de Poe torna inteligível a verdadeira relação entre selvageria e
disciplina. Seus transeuntes se comportam como se, adaptados à automatização,
só conseguissem se expressar de forma automática. Seu comportamento é uma reação
a choques” (1994: 126). É a visão desses autômatos em suas marés humanas no
anoitecer que enche o narrador de Poe com “uma emoção demasiadamente nova” e o
faz desinteressar-se pelo que passava no salão do Café onde se encontra, para
se absorver na “contemplação da cena lá de
fora” (1990: 164) Há no observador de Poe aquela mesma atenção que encontramos na descrição de Constantin Guys
feita por Baudelaire, aquela sensação de estar “sempre, espiritualmente, no
estado de convalescença” (2001: 196). Depreendemos, contudo, segundo o próprio
narrador do conto, que esse estado não lhe ocorria “sempre”; antes, entendemos
tratar-se de um estado raro, incomum. Assim ele descreve seu estado naquela
tarde:
Há
não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande
janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me
encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentiame num
daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado
de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e
o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a
vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica
de Górgias. (Poe 1990: 164)
É
nesse estado de percepção aguçada, com o intelecto “eletrificado”, que o
narrador de Poe, esse flâneur em meio a um turbilhão de choques, vai encontrar
na multidão o mistério do anonimato e o milagre da “multiplicação do número”. É
esse espírito que ele aplica às coisas, descreve-as. Com sensação de prazer no
simples ato de respirar, capaz inclusive de extrair inegável bem-estar de
muitas das mais legítimas fontes de aflição e com um calmo, mas inquisitivo,
interesse por tudo. Assim que o anônimo narrador de O homem da multidão começa
a descrever sua experiência pessoal em um café de Londres, ele mostra total
confiança em sua habilidade de ler a multidão com base em sinais exteriores. É
interessante notar que Poe, ao alternar as ações de seu narrador entre ler o
jornal e contemplar a multidão, estabelece um paralelo entre as duas atividades
e sugere suas similaridades: “Com o charuto entre os lábios e o jornal sobre os
joelhos, divertira-me durante grande parte da tarde, ora a meditar os anúncios,
ora observando a companhia promíscua reunidas na sala, ou ainda a espreitar a
rua através das vidraças enfumaçadas” (Poe 1990: 164)
É
nesse estado de percepção aguçada, com o intelecto “eletrificado”, que o
narrador de Poe, esse flâneur em meio a um turbilhão de choques, vai encontrar
na multidão o mistério do anonimato e o milagre da “multiplicação do número”. É
esse espírito que ele aplica às coisas. Com sensação de prazer no simples ato
de respirar, capaz inclusive de extrair inegável bem-estar de muitas das mais
legítimas fontes de aflição e com um calmo, mas inquisitivo, interesse por
tudo. Assim que o anônimo narrador de O Homem da Multidão começa a descrever
sua experiência pessoal em um café de Londres, ele mostra total confiança em
sua habilidade de ler a multidão com base em sinais exteriores. É interessante
notar que Poe, ao alternar as ações de seu narrador entre ler o jornal e
contemplar a multidão, estabelece um paralelo entre as duas atividades e sugere
suas similaridades: “Com o charuto entre os lábios e o jornal sobre os joelhos,
divertira-me durante grande parte da tarde, ora a meditar os anúncios, ora
observando a companhia promíscua reunidas na sala, ou ainda a espreitar a rua
através das vidraças enfumaçadas” (Poe 1990: 164)
Conforme
essa passagem, há um deslocamento oscilante entre os anúncios do jornal, a sala
e a rua, que fica explicitado pelas conjunções “ora” e “ou”. Trata-se de um
flanar entre diferentes espaços, desde o mais privado e recolhido da leitura do
jornal até o espaço público da rua. Essa dialética espacial entre o privado e o
público, encontrada na base da flâneurie, revela um aspecto interessante em
relação à atitude do flâneur: o reconhecimento de que o coletivo, como diz
Benjamim, é um ser irrequieto e agitado que, nos espaços do labirinto urbano,
“reconhece e inventa tanto quanto o indivíduo trancafiado em seu quarto. E a
rua é a morada do coletivo. ” (1994: 194).
Nessa
época, com efeito, a população das
grandes cidades estava se tornando alfabetizada e os sinais urbanos começavam
invadir as ruas, tanto os verbais como os não-verbais. O narrador de Poe
deixa-nos ver que, ao observar as ruas tanto literalmente como figurativamente,
a cidade estava-se tornando um texto e, para expressá-la, a linguagem escrita
deveria assumir as qualidades da imagem. Para tanto o observador deveria ter
uma sensibilidade excitada, apta a captar os fragrantes de um mundo em rápida
mutação. Como o pintor da vida moderna, o narrador de Poe busca flagrar na vida
trivial das ruas aquele “movimento rápido que impõe ao artista uma igual
velocidade de execução” (Baudelaire 2001: 105).
Se
cada século tem sua feição, sua graça pessoal, impressa pela passagem do tempo,
o mesmo se aplica a traços menores da história; aliás, podemos pensar que
quanto mais particular é o evento, mais a marca do tempo deixará nele o seu
carimbo, como a moda, campo sobre o qual refletiu Baudelaire. Ainda, segundo
ele, essa mesma observação se aplica às profissões, porque “cada uma extrai sua
beleza interior das leis morais a que está submetida. Em algumas essa beleza
será marcada pela energia; em outras carregará os sinais visíveis da
ociosidade. É como o emblema do caráter, é a estampilha da fatalidade”
(Baudelaire 2001: 114).
É
inegável que, no conto de Poe, apesar das diferenças existentes entre esses
dois pólos, podemos dizer que tanto o
narrador, como o misterioso personagem, compartilham características do
flâneur. O velho demônio encarna, num extremo, a erraticidade, a voracidade
voyeurística, a solidão urbana. Vemos, porém, tratar-se de uma personalidade
amortecida pela recepção de choque, um embasbacado, uma marionete agitada pelo
ritmo da produção capitalista e pelo frenesi do consumo. Parodiando Baudelaire, assemelha-se a um
“caleidoscópio desprovido de consciência”. Já o narrador tem a fome da
experiência, somada à perplexidade e ao assombro. Sua perambulação acompanha os
fluxos da cidade e os passos do homem da multidão, buscando, entretanto, fixar,
como fantasmagoria, suas impressões. Essa intenção do registro é aguçada pela
consciência do mistério que envolve os fenômenos urbanos, mesmo os mais
triviais. Esse senso do mistério é aquele de estar o tempo todo no equívoco,
nos aspectos duplos, ambíguos, múltiplos, na suspeição do aspecto (imagens
dentro de imagens), formas do devir que “serão”, segundo o espírito do
observador.
Se
Deus imprimiu “o destino de cada homem na sua fisionomia”, como disse Balzac
(Benjamin 1994: 212), basta, então, observá-lo cuidadosamente, para ler, em
seus sinais exteriores, a sua profissão, vícios e tudo o mais que marca cada
dobra de sua pele. Ou então, basta escutar uma palavra de alguém que passa
para, através do tom de sua voz, ligar o nome de um pecado a ele. A índole
detetivesca do narrador de Poe limita com o espírito curioso do flâneur, à medida
que ambos buscam estudar a aparência fisionômica das pessoas, para ler-lhes a
nacionalidade e a posição, caráter e destino, através de sinais aparentes, tais
como seu modo de andar, sua constituição corporal, sua mímica facial, como
podemos notar nos excertos abaixo:
A
subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era
inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou
castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes,
pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a
cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali
prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar
o chapéu e que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo
antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe,
verdadeiramente, afetação tão respeitável. (Poe 1990: 168-169)
É
inegável que, no conto de Poe, apesar das diferenças existentes entre esses
dois pólos, podemos dizer que tanto o
narrador, como o misterioso personagem, compartilham características do
flanêur. O velho demônio encarna, num extremo, a erraticidade, a voracidade
voyeurística, a solidão urbana. Vemos, porém, tratar-se de uma personalidade amortecida
pela recepção de choque, um embasbacado, uma marionete agitada pelo ritmo da
produção capitalista e pelo frenesi do consumo.
Parodiando Baudelaire, assemelha-se a um “caleidoscópio desprovido de
consciência”. Já o narrador tem a fome da experiência, somada à perplexidade e
ao assombro. Sua perambulação acompanha os fluxos da cidade e os passos do
homem da multidão, buscando, entretanto, fixar, como fantasmagoria, suas
impressões. Essa intenção do registro é aguçada pela consciência do mistério que
envolve os fenômenos urbanos, mesmo os mais triviais. Esse senso do mistério é
aquele de estar o tempo todo no equívoco, nos aspectos duplos, múltiplos, na
suspeição do aspecto (imagens dentro de imagens), formas do devir que “serão”,
segundo o espírito do observador.
O
surpreendente e magnífico no conto de Poe é o jogo de adivinhação: o narrador,
ao se concentrar na figura enigmática do velho, com quem se depara a certa
altura no labirinto londrino, não chega a uma solução. Assim é descrito o
encontro com a estranha figura que captura sua imaginação:
Com
a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba
quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns
sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs
fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão.
Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de
que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch,
e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do
Demônio.... Senti-me singularmente exaltado, surpreso, fascinado. “Que
extraordinária história”, disse a mim mesmo, “não estará escrita naquele
peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas...
de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu
e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao
local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de
vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo,
aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe
atrair a atenção. (Poe 1990: 177-178)
Essa
perseguição ocupará quase o conto todo. A in-vestigação, com o fim de ler a
“extraordinária história” que o narrador imaginou estar “escrita naquele
peito”, encerrar- se-á ao cabo de um dia inteiro de andança errática. Nas
palavras do narrador-personagem, ao cabo de um dia completo, exausto diante da
infindável caminhada em ziguezague, sobreveio-lhe um aborrecimento mortal.
Nesse momento pára em frente do velho, olha-o fixamente no rosto, como se a
mirada frontal lhe pudesse revelar o que de maneira obliqua não conseguira. O
velho simplesmente o ignora, como se fosse um autômato, e prossegue em sua
promenade folle et sans fin, como um “lobisomem irrequieto a vagar na selva
social” (Benjamin 1994: 187):
Quando
se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e,
detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu
conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição,
fiquei absorvido vendo-o afastar-se. “Este velho”, disse comigo, por fim, “é o
tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão.
Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus
atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae,
e talvez seja uma das mercês de Deus que ‘ es lässt sich nich lesn’ “.( Poe,
1990, p.189-190)
Assim,
o conto se fecha, com a frase em alemão que, no primeiro parágrafo do conto, é
utilizada para introduzir a tese de que há coisas que não se deixam ler. Em
outras palavras, há segredos que não podem ser ditos porque não se deixam ler.
Assim, o conto se fecha dentro de uma estrutura circular, conferindo-lhe certo
hermetismo que lhe acentua a atmosfera de mistério. O hermetismo identifica o
mistério. A estrutura circular nos diz ser necessário a releitura para encontrá-lo,
mas ele nunca se revela. Não obstante essa atmosfera de mistério que deixa no
ar ao final, o conto se relaciona claramente com a crítica de Benjamin à tese
convencional, mas insensata, que racionaliza a conduta do flâneur e que é a
base inconteste de muita literatura a seu respeito. Muito mais do que ler na
fisionomia dos transeuntes o seu caráter ou a sua profissão, o flâneur busca
perder-se (ou encontrar-se?) na anonimia da vida na grande cidade. A City é “a
realização do antigo sonho do labirinto” e, segundo Benjamin, o flâneur, sem o
saber, persegue essa realidade. Busca inútil, essa do narrador de Poe? O saber
que o flâneur procura seria “vizinho à ciência oculta da conjuntura”? (Benjamin
1994: 199). Talvez... afinal, essa irresolução pode ser entendida como o
resultado do desenvolvimento de um processo que nasce da euforia e de uma
grande apetência no início da narrativa (daquele estado de convalescença) e
termina no aborrecimento mortal da dúvida. Assim, da mesma maneira que “a
espera parece ser o estado próprio do observador impassível” (Benjamin 1994:
197), a dúvida seria a condição final do processo investigativo do flâneur.
O
que podemos observar é que o conto de Poe antecipa uma questão básica que está
na essência da Modernité. Seu narrador representa o protótipo do escritor
moderno, ocupado em capturar a beleza do efêmero e do transitório, e, para
consegui-lo, ele deve emergir na experiência de sua condição enquanto elemento
integrante dessa nova sociedade. Na “flâneurie”, isto é, “no deambular
desprovido de propósitos”, o flâneur nos oferece a imagem movente, resultado da
apreensão de uma fugidia profusão de imagens instantâneas, cuja essência reside
nas fantasmagorias de um cotidiano vivido nos subsolos do consciente. Na
psicologia do flâneur opera a memória ressurreicionista, que faz com que “as
cenas impagáveis que todos nós podemos rever fechando os olhos”, não sejam
aquelas que “contemplamos com um guia nas mãos”, ou seja, aquelas para as quais
dirigimos nossa atenção segundo propósitos ou interesses despertos; antes, são
“aquelas a que não prestamos atenção, que atravessamos pensando noutra coisa,
num pecado, num namorico ou num dissabor pueril” (Benjamin 1994: 213-214).
Essa
é a psicologia do flâneur, que encontra seu correspondente, hoje, em uma forma
de percepção representada pela experiência pós-moderna do indivíduo que, seja
no shopping, seja encapsulado em seu carro, ou defronte a uma tela de TV ou
computador, depara-se com a velocidade e a fragmentação dos fenômenos num nível
de semi-ficção, semelhante à “experiência da multidão”, que o flâneur urbano
vivenciava nas ruas, avenidas, nas passagens, nos palácios de cristal de fins
do séc. XIX e início do séc. XX.
Manoel
Ferreira Neto
(*RIO
DE JANEIRO*, 23 de novembro de 2016)
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