**EVENTO DO ETERNO - I PARTE** - Manoel Ferreira
Há paralelos notáveis entre o pensamento de Sartre e o pensamento do
Apóstolo Paulo . Há quem chegue a falar de uma influência, ainda que indireta.
Paulo influenciara Agostinho, que, por sua vez, teria influenciado Lutero, que
teria influenciado Kierkegaard, que teria influenciado Sartre.
De fato, há, no pensamento de ambos, uma idéia de liberdade radical que
exige do homem uma responsabilidade também radical, que é a base de uma fé
verdadeira e libertadora.
Em a Cerimônia do Adeus, Simone Beauvoir apresenta inúmeras entrevistas
que aconteceram entre ela e Sartre; numa delas é-lhe perguntado como se
realizara a passagem da liberdade individual à idéia de liberdade social?
A liberdade refere-se ao todo uno da existência humana, ainda que esse
todo uno se exerça na extensão espacial e duração temporal. A liberdade,
enquanto faculdade de o sujeito decidir sobre si próprio como todo e uno, não é
evidentemente faculdade que se situe por detrás da temporalidade meramente
física, biológica, exterior e histórica do sujeito.
A liberdade se exerce como tal liberdade subjetiva numa passagem pela
temporalidade que a própria liberdade “estabelece” para poder ser ela mesma.
Essa concepção de liberdade é muito mais matizada e complexa, muito menos clara
do que a concepção primitiva e categorial da liberdade pensada como a
capacidade de fazer isto ou aquilo arbitrariamente. A liberdade é liberdade na
e através da história no espaço e no tempo, e precisamente aí e desta forma é a
liberdade do sujeito com relação a si mesmo, o vivido.
O ser do homem é “ação”. Ainda que resolva não mais se realizar,
realiza-se apesar de tudo, embora somente como preguiçoso, imbecil,
imprestável, inútil, inerte. Se se decide a não se envolver mais no mundo por
meio de sua atividade, constrói, apesar de tudo, um determinado mundo, em que
os diques se romperão, causando inúmeras vítimas. O homem não pode ficar sem
fazer nada, porque não fazer nada é ainda fazer alguma coisa. Eis porque o
homem é a execução de seu projeto.
Três visões através dos verbos, “referir-se”, “exercer-se”, “ser”, que
se tornam intenções da totalidade e que serão o eidos da busca do em-si, da
“essência”, numa dialética de torniquetes sem limites e fronteiras, a liberdade
sendo fundamento. São, até poderíamos dizer, os três “mandamentos” que seguira
para estabelecer a sua liberdade e responsabilidade.
Na época em que escrevera O ser e o nada, acreditava que somos sempre
livres, como os estóicos, mesmo em circunstâncias extremamente desagradáveis
que podem desembocar na morte. Mudara muito. Pensa que há situações em que não
se pode ser livre. O padre Heinrich, de O diabo e o bom Deus, é um homem que
nunca foi livre, porque é um homem da Igreja, e, ao mesmo tempo, tem uma
relação com o povo que absolutamente não se liga à sua formação eclesiástica.
Povo e Igreja se contradizem; ele próprio representa o lugar onde essas forças
se contrapõem e não pode jamais ser livre. Morrerá porque nunca pôde
afirmar-se.
Passou da idéia estóica de que somos sempre livres – que era uma noção
muito importante para si, porque sempre se sentiu livre, não tendo jamais
conhecido circunstâncias realmente graves onde já não pudesse sentir-se livre –
à idéia posterior de que há circunstâncias em que a liberdade está acorrentada.
Tais circunstâncias decorrem da liberdade de outrem. Em outras palavras, uma
liberdade é acorrentada por uma outra liberdade ou por outras liberdades.
Não é concebível que um homem seja livre se os outros não o são. Se a
liberdade é recusada aos outros, deixa de ser uma liberdade. Se os homens não
respeitam a liberdade de outrem, a liberdade que por um instante surgiu neles é
imediatamente destruída.
A liberdade não existe para que tudo possa continuamente tornar-se outra
coisa, mas antes para que possa tornar-se realmente válida e erradicável. A
liberdade é a faculdade de estabelecer algo de necessário, algo que perdura,
algo de final e definitivo. A liberdade é o evento de eterno, evento ao qual, é
claro, não assistimos como espectadores externos, pois somos nós próprios quem
está a acontecer na liberdade, mas sofrendo a multiplicidade do temporal,
realizamos este evento da liberdade, constituímos a eternidade que nós próprios
somos e nos tornamos.
Em Sartre no Brasil, a conferência de Araraquara, edição bilíngüe,
Sartre elucida bem o que a liberdade significa, aliás, fundamentando com o
cogito de Descartes e o valor:
... se compreendemos o valor absoluto para cada um de nós de cada um de
nós, porque o cogito (grifo de Sartre), é uma espécie de absoluto, a partir daí
podemos ao mesmo tempo reencontrar todo o desenvolvimento dialético, porque o
cogito esvai-se em dialética, desaparece: só resta que a partir de então nos
ocupemos com o que somos. Mas ao mesmo tempo em que encontramos toda a
dialética, fundamo-la também, dando-lhe um valor humano, se quiserem. O termo
valor pode surpreender aqui porque não fazemos um estudo axiológico, mas os
senhores sabem que encontramos aqui mesmo a liberdade, pois a liberdade e o
cogito são única coisa; liberdade, cogito, é a fonte de todo valor, se quiserem
.
É´ preciso agir sobre a história e sobre o mundo, e obter uma relação
diferente do homem com a história e com o mundo. Sartre primeiro conheceu uma
espécie de liberdade individual, antes da guerra, ou pelo menos acreditou
conhecê-la. No fundo, sua liberdade assumiu inúmeras formas, mas no conjunto,
tratava-se da liberdade de um indivíduo, que tentava exprimir-se e triunfar
sobre forças exteriores.
Com efeito, em O Ser e o Nada eu quis, apreendendo-me no nível mesmo da
consciência, isto é, no nível ao mesmo tempo mais certo e o mais abstrato, o
mais formal, aquele em que se encontram verdades inegáveis, mas quase nulas,
com as quais não se pode fazer quase nada, eu quis portanto fazer uma descrição
do que é a realidade humana como projeto, compreensão. Mas é bom destacar essas
noções dá-las sob uma forma abstrata, estudando a consciência pura, não é de
forma nenhuma assim que cabe reintroduzi-las numa antropologia. Na realidade, é
preciso que ela esteja sempre aí, mas é preciso que nunca apareça. A verdade,
portanto, é que nosso trabalho não consiste em insistir indefinidade sobre o
projeto, sobre o conjunto das coisas que fazem a condição humana. O que é
necessário é reconstituir uma ontologia ou, pelo menos, uma antropologia
dialética na qual a compreensão seja exigida a cada instante, a cada instante o
projeto da pessoa sob forma concreta e real apareça .
A ligação da liberdade, de sua liberdade contra tudo o que pode
censurá-la, isto é, a ação de outros homens.
A questão que a mensagem do Novo Testamento propõe ao homem é a da
decisão existencial que ele deve tomar diante de Deus: crer ou recusar a fé.
Tal decisão é o ato supremo da liberdade do homem enfrentando-se com Deus em
sua palavra: um ato que determina o sentido que cada homem dá à própria
existência.
As afinidades são visíveis entre a filosofia de Heidegger e esse ponto
nevrálgico da mensagem do Novo Testamento. Heidegger nos diz que o problema da
existência é o problema central da filosofia e que o homem é um sujeito que
veio à existência e se projeta para o futuro pelas decisões que patenteiam a
liberdade: decisão por uma vida autêntica, aberta ao futuro pelo exercício de
uma liberdade continuamente renovada e sem cessar criadora, ou decisão por uma
vida inautêntica, que significa desistência e naufrágio da liberdade. O homem
acha-se assim constantemente confrontado com uma escolha que engaja seu futuro.
Jean Genet, o menino homossexual agredido, violado, conquistado por
jovens pederastas, tratado um pouco como um joguete pelos valentões de seu
meio, torna-se o escritor Jean Genet. Houve aí uma transformação que é obra da
liberdade. Á liberdade é a transformação de Jean Genet, menino homossexual e
infeliz, grande escritor, pederasta por opção e, se não feliz, seguro de si.
Tal transformação poderia não ter ocorrido. A transformação de Genet se deve
verdadeiramente ao uso de sua liberdade. Ela transformou o sentido do mundo,
dando-lhe um outro valor. Essa liberdade e somente ela foi a causa dessa
reviravolta, a liberdade escolhendo-se ela mesma operou tal transformação.
O que Sartre constata, na primeira parte de sua vida, é, sob uma forma
ainda um pouco vaga, a oposição da sua liberdade em relação ao mundo. A guerra
e o após-guerra foram apenas um desenvolvimento dessa oposição, e isso ele quis
mostrar quando escolheu o título do movimento de resistência: Socialismo e
Liberdade.
A idéia de uma liberdade, ou seja, um livre desenvolvimento de cada um e
de todos, são idéias que, na época, lhe pareciam opor-se – ainda na época em
que mantém inúmeras entrevistas com Simone existem cada uma de seu lado -, e, o
que descobriu após a guerra, foi sua contradição e a contradição do mundo
residiam na idéia de uma liberdade, na idéia do pleno desenvolvimento, do pleno
desabrochar da pessoa confrontada com a idéia do desenvolvimento igualmente
pleno de uma coletividade à qual pertence a pessoa, surgindo ambas inicialmente
como contraditórias.
O pleno desenvolvimento de um cidadão não tem necessariamente como
prelúdio e pleno desenvolvimento da sociedade; é a este nível que se poderia
dar explicação da sua história, da sua história clara de após a guerra, de sua
história obscura de antes da guerra; ou seja, que a idéia da sua liberdade
implica a idéia da liberdade dos outros. Só pode sentir-se livre se os outros o
são.
Há afirmação ou negação atemática de Deus em todo ato livre? Liberdade
ou subjetividade, que é o “objeto” da própria liberdade, liberdade para algo de
validade definitiva e liberdade, por ou contra Deus são estreitamente conexas
entre si.
Lutero, para quem o que importa é pura e simplesmente o retorno da
igreja ao evangelho de Cristo, como ele havia experimentado vivamente nas
Sagradas Escrituras e, sobretudo, em Paulo.
Vejamos as várias falas de Tetzel, O diabo e o bom Deus, V Quadro, Cena
I, onde detectamos a presença de Lutero:
Não se lamentem: elas protegem-nos contra o Diabo porque são mais cabras
que ele. (A multidão ri). Ah, meus rapazinhos, não pensem que isto é tudo:
vamos falar de coisas sérias! Música! (Soam tambor e pífaro.) Trabalhar é belo
e é bom. Mas às vezes a gente apóia-se ao cabo da enxada, olha para longe e diz
para consigo: “Que é que me vai acontecer depois da morte?” Não basta ter uma
linda campa bem florida: a alma não fica lá. Para onde irá ela? Para o Inferno?
(Tambor). Ou para o Paraíso? (Flauta.) Boa gente, como calculam, o Bom Deus já
fez a Si próprio essa mesma pergunta. Ele preocupa-Se tanto convosco, o Bom
Deus, que até já nem dorme. Tu, por exemplo como te chamas?
Espera! Felizmente existem os Santos. Cada um deles mereceu cem mil
vezes o Céu, mas isso de nadas lhes serve pois que s[ó se pode entrar lá uma
vez. Então, que disse a Si mesmo o Bom Deus? Ele disse: “Para não deixar perder
as entradas que não podem ser utilizadas, vou distribuí-las por aqueles que não
as merecem. Aquele bravo Peter, por exemplo, se ele comprar uma indulgência ao
irmão Tetzel, entrará no meu Paraíso como um dos cartões de convite de S.
Martinho .
(...) As indulgências aqui contidas foram especialmente estudadas para
aquelas pessoas de bem que têm família no Purgatório. Se pagarem a soma
necessária, toda a vossa família abrirá as asas e voará até ao céu. São dois
escudos por pessoa transferida. A transferência é imediata. Vamos! Quem quer?
Quem quer? Tu, quem perdeste tu?
Para Lutero, seguindo Paulo, vale o primado da graça e da fé. O homem é
justificado não pelas obras, mas “somente pela graça” - que não merecemos -,
“só pela fé”, por uma confiança incondicional em Deus e em seu Cristo.
Paulo e todos os teólogos cristãos dos três primeiros séculos aderiam
com grande clareza a fé judaica no Deus único, sempre subordinando Cristo ao
único Deus e Pai. Em 325, no primeiro concílio ecumênico – convocado por
Constantino (sem consultar o bispo de Roma) para sua residência de Nicéia -,
Cristo foi declarado igual a Deus: ele seria o homo-úsios, ou seja, “da mesma
essência com Deus Pai”.
Com o dogma da Trindade, imposto no século IV-V, passa a ser o
coroamento do cristianismo como religião do estado, que sob o imperador
Teodósio já se encontra plenamente institucionalizado no final do século IV. A
fé, com o dogma da Trindade, deixa de ser vista, como no Novo Testamento,
principalmente como uma entrega confiante a Deus e a seu Cristo. Fé, agora, é
sobretudo crer retamente, ortodoxia: a convicção de que determinadas teses
doutrinárias da Igreja sobre Deus, sobre Cristo e sobre o Espírito Santo, tais
como formuladas pelos sete concílios ecumênicos e sancionadas pelo Estado, está
“correta”.
Uma comunidade que ora em comum, antes de tudo os salmos: “O senhor é
minha luz e minha salvação, a quem temerei? O senhor é meu refúgio, de quem
terei medo?” (Sl 27,1).
Recebemos o Cristo ouvindo as palavras da fé. Trabalhamos na obra da
nossa salvação em silêncio e na esperança; mais cedo ou mais tarde, contudo,
chega o momento em que devemos abertamente confessá-lo diante dos homens e, em
seguida, diante de todos os que habitam o céu e a terra.
No todo, uma nova liberdade do cristão. Até hoje, essa mensagem deve
conferir às pessoas, e sobretudo aos jovens, a firmeza na vida. “É para a
liberdade que Cristo nos libertou! Ficai, portanto, firmes e não vos curveis de
novo sob o jugo da escravidão!
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 30 de novembro de 2016)
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