**GERMINAÇÃO DAS ORIGENS – UMA LEITURA DE VIRGÍLIO FERREIRA, PAI DO EXISTENCIALISMO EM PORTUGAL** - Manoel Ferreira
Vergílio Ferreira entrou na Literatura pela porta do neo-realismo – a
forma literária e ideológica em que se vazou o projeto interpessoal de uma
geração que considerou como seu dever primeiro intervir, pelo modo que lhe era
possível, no aceleramento de um processo histórico considerado, aliás, irreversível
e fatal. Os seus primeiros romances nasceram sob a pressão do tempo, sob aquilo
que os alemães designam “Zeitgeist”. O tempo histórico favorecia a intervenção
neo-realista. Pela primeira vez em Portugal, o poema, o conto, o romance
atingiam uma vasta área de leitura e deixavam de ser um “divertissement” para
privilegiados, como ainda acontece no Brasil. Em Portugal, as propostas
órficas, podadas nos propositais exageros dos jovens modernistas que desejavam
escandalizar as figuras da “literatura oficial”, vão evoluir para o esteticismo
da geração da Presença, surgida em Coimbra em 1927. Os escritores presencistas
“des-cobrem” a ficção de cunho psicológico e ensaiam novos temas e novas
técnicas aprendidas em Proust, Gide, Dostoiévski e Joyce. Iniciam em Portugal
uma crítica de arte em que o cinema está incluído e estudam a filosofia de
Bergson e a Psicanálise de Freud.
Encontramos a concepção bergsoniana de tempo como é usada no filme e no
romance moderno – ainda que nem sempre tão inequivocamente como aí – em todos
os gêneros e tendências da arte contemporânea. A “simultaneidade dos estados de
alma” é, antes de tudo, a experiência básica que estabelece uma conexão entre
as várias tendências da pintura moderna, entre o futurismo dos italianos e o
expressionismo de Chagall, entre o cubismo de Picasso e o surrealismo de
Giorgio Chirico e Salvador Dali. Bergson descobriu o contraponto dos processos
espirituais e a estrutura musical de seus inter-relacionamentos. Do mesmo modo
que quando ouvimos, devidamente, uma peça de música temos em nossos ouvidos a
conexão mútua de cada nota com todas as outras que já soaram, possuímos sempre
em nossas experiências mais profundas e virtuais tudo quanto já experimentamos
alguma vez e assimilamos à nossa vivência. Se nos entendemos, lemos nossas
próprias almas como se fossem partituras musicais, solucionamos o caos dos sons
emaranhados e os transformamos numa polifonia composta de diferentes partes.
Segundo Schopenhauer, a música é a arte mais distante do principium
individuationis, pois a música é a voz da própria vontade, o som da essência
metafísica do mundo. Para o filósofo, ela é capaz de transmitir a reminiscência
de um modo de ser jubilosamente não dividido, e de antecipar a harmonia que
acompanharia a vitória do indivíduo sobre sua própria vontade e, assim, sobre
si próprio, conquista que “corrigiria o engano” e restauraria a paz e a
integridade do todo único. Com boa razão Schopenhauer concedia exclusivamente à
música, e não à língua, alcançar além do princípio e transmitir a
universalidade sem fala, ilimitada.
Suzanne Langer argumentou que a forma de uma obra de arte exprime um
sentimento ou uma emoção e que esta forma é a do sentimento. O artista,
especialmente o artista musical, conhece de um modo não-lógico a natureza das
emoções, o que é o mesmo que ter uma compreensão intuitiva de suas formas. É a
estas que ele exibe com o imediatismo representacional do símbolo artístico
essencialmente a forma expressiva da composição. Naturalmente, Suzanne Langer
distingue esse sentido de “forma” dos diversos outros sentidos do termo. Assim,
para dizer o mínimo, ela não deseja significar por ‘forma” o formato de um
sentimento. Articular um sentimento em uma composição não é objetivá-lo e,
dessa maneira, convertê-lo na forma expressiva da obra para apreensão estética.
Isso distingue tal expressão da expressão não-estética existente na mera
alocução de sentimento, como – digamos – em uma carta irada dirigida a alguém
ou em exclamações, jaculatórias e resmungos, todos eles casos de auto-expressão.
Dessa maneira, o artista não precisa expressar os sentimentos que ele
simplesmente tem, à medida que compõe, ou que teve ou que terá. Ele está
informado, antes, das formas dos sentimentos e coloca os sentimentos à mostra,
em suas composições, em virtude de suas formas.
Como diz Suzanne Langer, é a forma do sentimento que importa, em Música
especialmente, mais do que a descrição da coisa particular que tem ou exibe o
sentimento. Isso me leve a uma heresia. Sugiro que a forma dinâmica do conteúdo
imagístico auditivo da Música é idêntica à forma apreendida na visão estética.
A tristeza expressivamente retrata no movimento adágio do Concerto para Violino
em Mi Maior, de Bach, com suas figuras desanimadas, especialmente na base do
contraponto, é tanto a de um salgueiro-chorão como a de um ser humano, e não se
costuma geralmente ouvir um salgueiro. Assim, é um erro supor que a Música tem
a sua própria variedade de formas audíveis. A mesma forma do sentimento tanto
pode ser apreendida na forma visual da obra de arte como na auditiva.
Toda a parte é um jogo com o caos e uma luta contra ele; a arte está
sempre avançando cada vez mais perigosamente para o caos e libertando cada vez
mais de seu poder novas regiões do espírito. Se há algum progresso na história
da arte, ele consiste no crescimento constante dessas regiões arrebatadas ao
caos. Com sua análise do tempo, o filme está na linha direta desse
desenvolvimento: ele tornou possível a representação visual de experiências que
antes só haviam sido expressas através de formas musicais. Ainda não apareceu,
porém o artista capaz de preencher com vida real essa nova possibilidade, essa
forma ainda inexplorada.
Sempre houve um elemento de tensão entre a qualidade e a popularidade da
arte, o que não quer dizer em absoluto que as massas em todos os tempos se
tenham declarado em princípio contra a arte qualitativamente boa, em favor de
uma arte inferior. Naturalmente, a apreciação de uma arte mais elaborada
apresenta maiores dificuldades para as massas do que a de uma arte mais simples
e menos desenvolvida, mas a falta de uma compreensão adequada não as impede
necessariamente de aceitar essa arte – se bem que não exatamente devido à sua
qualidade estética. O sucesso junto às massas está completamente divorciado de
critérios qualitativos. Elas não reagem ao que é bom ou mau artisticamente, mas
a impressões que as fazem sentir-se tranqüilizadas ou alarmadas na sua própria
esfera de existência. Interessando-se por aquilo que tem valor artístico,
contanto que se apresente de modo a adaptar-se à sua mentalidade, ou seja,
contanto que o tema seja atraente. Neste ponto, as probabilidades de sucesso de
um bom filme são em princípio muito maiores do que as de um bom quadro ou de um
bom poema. Pois, excluindo o filme, a arte moderna é quase um “livro fechado”
para os leigos; é intrinsecamente impopular, porque seus meios de comunicação
transformaram-se, no curso de um desenvolvimento longo e estanque, numa espécie
de código secreto, ao passo que aprender o novo idioma em desenvolvimento do
filme não passa de uma brincadeira de criança até para o mais primário público
de cinema. Em vista dessa feliz síntese, ficar-se-ia inclinado a tirar
conclusões otimistas a longo prazo sobre o futuro do filme, se não se soubesse
que esse tipo de acordo intelectual não é senão um estado de infância
paradisíaco, provavelmente repetido sempre que surge uma nova arte.
Após lidar com alguns romances de Vergílio Ferreira, especialmente da
fase e ciclo existencialista, por longos anos, e de aplicar a eles diferentes
procedimentos de análise, inclusive a psicanalítica, fundamentada em Freud,
parece-me, hoje, haver fundado uma interpretação de algum interesse: no campo
estético. Em Hegel, a arte da palavra chamada “poesia” torna-se a expressão
suprema da Idéia em seu movimento de particularização: “ela (a poesia) abarca a
totalidade do espírito humano, o que comporta sua particularização nas mais
variadas direções” (Hegel, Esthétique, “La poésie I”). Posta assim em paralelo
com a filosofia especulativa, a poesia dela se diferencia, ao mesmo tempo, em
virtude da relação que estabelece entre todo e parte: “Certamente, suas obras
devem possuir uma unidade concordante, e aquilo que anima o todo deve estar
igualmente presente no particular, mas esta presença, em vez de ser marcada e
acentuada pela arte, deve permanecer um em-si interior, semelhante à alma que
está presente em todos os seus membros, sem lhes dar a aparência de uma
existência independente” (ibid). Assim sendo uma expressão – uma exteriorização
particularmente – da Idéia, e porque participa da língua, a poesia é uma
representação interiorizante que coloca a Idéia o mais perto do Sujeito: “A
força da criação poética consiste, pois, em a poesia modelar um conteúdo
interiormente, sem recurso a figuras exteriores ou a sucessões de melodias:
desse modo, ela transforma a objetividade exterior numa objetividade interior
que o espírito exterioriza pela representação, sob a própria forma sob a qual
esta objetividade se encontra e deve se encontrar no espírito” (ibid) As
camadas lingüísticas dos romances de Vergílio Ferreira não têm simplesmente a
função de um estilo funcionando como adorno, ou mesmo como suporte da história,
mas alcançam a dimensão de importante elemento romanesco, capaz de encerrar em
si o próprio universo humano que o escritor quis revelar no seu romance:
“Eis como, para além da problemática da obra, que por si só se institui
como algo de novo no campo da ficção, o processo “operatório” do estilo faz um
romance inteiro, da primeira à última linha”.
Numa nota de pé de página Fernando Mendonça revela que o próprio
Vergílio Ferreira concorda com essa perspectiva interpretativa da função do seu
estilo:
“Tal ‘estilo’, com efeito, tem acima de tudo uma função operatória e não
apenas de ‘suporte’ e muito menos de ‘enfeite’. Assim sempre se me afigurou
superficial, a propósito dos escritores “estilistas” – ou ao menos de alguns
deles – a afirmação de que escrevem bem.. Porque quem apenas escreve bem –
escreve mal...”
Parece, portanto, suficientemente esclarecido o valor do estilo na
construção dos romances de Vergílio Ferreira. Dentre outros fatores, é também
através do tratamento da linguagem que o escritor se separa, como um artista da
palavra, preocupado com um universo em cujo centro situou a dimensão humana,
dos cronistas de um mundo acossado pela necessidade, pela escassez e marcado
por uma crueldade de exílio. É certo que o estilo de Vergílio Ferreira vai
definir as suas intenções “operatórias’ principalmente a partir de Cântico Final
(1960), mas Mudança e Manhã Submersa, que lhe são anteriores, são já romances
vazados numa linguagem destinada a realçar as angústias do estar no mundo. Vale
a pena, para exemplicar, transcrever um trecho do romance:
“Ao embalo da invernia, no sossego do fogão, Bruno pendia sobre si como
ramo carregado. Tocava-o, no centro, um cansaço de tudo, um morno sonho de
olvido. Berta? Raul? A guerra? Pelos infernos, largai-me! Queria Berta submissa
e enojava-o a submissão como um visco de lesma. Gostava de quebrar-lhe a dureza
e aborrecia-a depois. Mas que amo eu? Que verdade na vida me comove? Era bom
estar tudo no seu lugar, mas sem luta, sem discussão, implicitamente. Sim, Raul
foi amante dela. Pelo menos, um e outro sentiram-se amantes. Anda uma fúria na
vila, a guerra, velhos instintos de ódio, de vingança, liberdade, igualdade,
fraternidade, - pelos infernos, largai-me! Queria-se só, com silêncio no
coração, um silêncio de ventos largos de montanha. Pensar era acusar-se ou decidir-se
a um rumo. Era sentir-se preso. Paz! Fosse embora desgraçado, mas sem o remorso
de não ter evitado a desgraça. Tapar os olhos, ir para o fundo, mas sem idéias,
como uma pedra”.
É fácil destacar no trecho transcrito expressões de um “estilo existencialista”
– se assim se pode qualificar um estilo literário – intencionalmente utilizadas
para ressaltar a angustiada lassidão de Carlos Bruno. Tocava-o, no centro, um
cansaço de tudo, um morno sonho de olvido (...) enojava-o a submissão como um
visco de lesma (...) que verdade na vida me comove”(...) Era bom estar tudo no
seu lugar, mas sem luta, sem discussão, implicitamente (...) Pensar era
acusar-se ou decidir-se a um rumo (...) Tapar os olhos, ir para o fundo, mas
sem idéias, como uma pedra. Estas são algumas das expressões mais flagrantes em
que não só a sintaxe, mas a própria palavra em si mesma, como na função
poética, age como o núcleo de uma camada simbólica destinada a ressaltar certas
áreas de significado, que no texto transcrito é o plano existencial em que se
move e situa Carlos Bruno.
A Arte se realiza no domínio da emotividade a cujas portas as razões
esperam as ordens de serviço. A função da Arte é exprimir esse mundo imediato
da adesão, da liberdade que espontaneamente se manifesta, do que sem margens se
é. A obra de arte é a via de acesso a esse mundo em que sejamos nós. O seu
artifício só é sentido quando esse mundo não é o nosso e não podemos portanto
entrar no jogo que o revela; ou quando, sendo esse mundo o nosso, o artifício
nos prende a passagem do espírito até esse mundo. O “prazer” estético é o
irrecusável comprazimento com a nossa verdade profunda, ou simplesmente com a
verdade do homem, com o que há de inseparável da sua condição. Sentir “prazer”
na Arte, reconhecer nela a expressão da liberdade, reconhecer nela a verdade
original, verificar nela a expressão do que profundamente se é, ou, mais
rigorosamente, do que é a própria Vida em nós, rever nela a manifestação pura
da pessoa que somos para lá do que aparentemente no-la possa dar (porque a Arte
pode ser a grande denunciante de nós próprios, não apenas perante os outros,
contra quem nos podemos defender, mas perante nós mesmos, contra quem
dificilmente teremos defesa) – tudo isso exprime variamente, ou sob vários
aspectos uma única e unificada realidade.
A grande questão, a única, é sempre a da identidade almejada e falhada.
Quando o Poeta se encarna numa personagem literária alheia, característica e
conhecida (’Primeiro Fausto’), altera seus traços e conforma-a a sua obsessão pessoal;
os temas do amor, da morte, do pacto infernal acabam por ensimesmar-se,
abismando-se no “horror de conhecer”, que é o horror de não se conhecer. O
pacto diabólico , no Carlos Bruno vergiliano é a da pavorosa compreensão do
“mistério do mundo”, compreensão que é a da impossibilidade de compreender, já
que o “segredo da Busca é que não se acha”. Na luta com a Vida, a Inteligência
sempre perde.
Carlos Bruno estava novamente entregue ao seu vazio, e assim ficou até
ser surpreendido pelo abandono de Berta, que resolveu deixá-lo, retirando-se
para a casa do pai, em Vilarim. O romance alcança então um dos seus trechos
mais belos, tanto ao nível da significação ideológica, quanto no plano da
realização estética. Carlos Bruno surpreende-se sozinho, ao anoitecer, no
interior da sua casa mal iluminada pelas chamas dos cepos de pinheiro que
ardiam na lareira arrancando reflexos das lombadas dos livros enfileirados nas
estantes. No silêncio de pedra daquela hora, Carlos começou a sentir uma paz
interior que há muito tempo não experimentava. É evidente que se inicia aqui,
em extrema pureza, um reencontro do homem consigo próprio. Essa pureza vai ser
mantida ainda daí por diante, no recolhimento que Bruno procura entre os
elementos da natureza, alheio às coisas práticas e materiais da vida, à rapidez
com que empobrecia, à escassez dos clientes que cada vez mais rareavam no seu
escritório. Carlos comprara a um passante um cão perdigueiro que desejava Ter
para última companhia, saindo com ele à caça, embrenhando-se por dias e dias
nos cerros da montanha, por onde gostava de errar, solitário, (...) de assentar
as botas ferradas no chão duro e livre, sentindo-se confortado no abandono,
liberto do olhar hostil de toda a gente. Podia estender os braços, largar à toa
para um rumo qualquer, sem o muro de uma presença. É na solidão que Bruno se
reencontra e aplaca o ferrão da sua angústia, constatação que nos remete à
frase famosa de Sartre o inferno são os outros, o que permite inferir que a
crise instalada na consciência da personagem tem também algo a ver com o seu
próprio relacionamento com o mundo humano ao seu redor. Quando Carlos procura
um cão para sua última companhia, é porque sabe que as suas relações com ele
estão absolutamente isentas de qualquer deterioração ou comprometimento. Quando
acompanhado pelo cão penetra em contemplação meditativa na natureza primitiva
de que o próprio animal faz parte, é porque sabe que ali encontrará a realidade
da liberdade e do espírito, longe do olhar hostil de toda a gente (...), sem o
muro de uma presença. Carlos Bruno encontrava portanto na primitiva pureza dos
elementos naturais, o valor que desesperadamente procurou entre as mais
complexas criações do gênero humano.
Os motivos do cão e da natureza, não são, em Mudança, meramente ocasionais
ou gratuitos, considerada a importância simbólica que os caracteriza. Pela
freqüência com que são utilizados não só no decorrer do romance como ao longo
do conjunto da obra de Vergílio Ferreira, estes símbolos podem mesmo ser
considerados como dois dos seus mais importantes leitmotiv, embora, como é
evidente,apresentem de romance para romance, no contexto da trama ficcional,
diferentes significados. Assim, o cão, que o escritor faz presente em romances
como Mudança, Aparição, Alegria Breve e Nítido Nulo, nem sempre têm idêntico
valor simbólico. Em Mudança, ele representa uma relação desinteressada, posta a
salvo da crise e isenta de comprometimento. Já em Alegria Breve ou Nítido Nulo
a sua significação é totalmente diversa, representando, no primeiro romance,
aquilo que o ser humano tem de primário, de bruto, de instintivamente animal,
de deformação da imagem do homem e sua humana condição, enquanto no segundo, a
presença do cão e sua função romanesca, simboliza, principalmente, a liberdade
perdida pelo homem (o protagonista está preso numa cadeia à espera da execução)
mas que o animal, na sua inconsciência, sendo movido apenas pelo instinto, não
tem condições de usufruir. Estas, diga-se de passagem e a bem da verdade, são
interpretações defendidas por Nelly Novaes Coelho, com as quais o ensaio
concorda. Interessante observar, como ponto comum aos quatro romances
mencionados, que os cães que neles figuram morrem de forma violenta no decorrer
da ação. Em Mudança, o perdigueiro morre atropelado; em Aparição, o animal é
morto de forma piedosa porque definhava aos poucos consumido por uma doença
incurável; o cão de Alegria Breve é morto pelo dono quando ambos eram os únicos
seres vivos de uma aldeia em que todos os habitantes já haviam morrido; em
Nítido Nulo, numa cena absurda capaz de lembrar imagens kafkianas, o cão é
eliminado a tiros de pistola, por um militar, em plena praia, sob o sol
brilhante. Evidentemente, o conteúdo simbólico vivenciado ou representado pelo
cão nos romances de Vergílio Ferreira tem relação direta com o homem, quando
não integra, como no caso de Alegria Breve, a própria condição humana em seus
aspectos negativos. A morte dos animais no decorrer da ação dos romances,
significa, portanto, um corte do significado simbólico de cada um em sua
relação com o homem. Assim, por exemplo, no caso específico de Mudança, a morte
do perdigueiro evidencia a impossibilidade que se impõe ao homem de manter,
duradouramente, um relacionamento puro, desinteressado, isento da corrosão das
crises e dos comprometimentos de todas as espécies.
A recorrência ao cão como representação simbólica nos romances de
Vergílio Ferreira, particularmente em Mudança, é mais um traço nas semelhanças
que se podem constatar entre o escritor português e Albert Camus. Como Carlos
Bruno tomou o perdigueiro por última companhia, o velho Salamano, personagem de
O Estrangeiro, depois que a mulher morrera, porque se sentia muito só, pedira a
um colega de trabalho que lhe desse um cão, vivendo muitos anos sozinho com o
animal num pequeno quarto, até que repentinamente ele desapareceu, deixando o
velho perplexo e agitado na angústia da solidão.
Em Vergílio Ferreira o motivo da natureza, relacionado também com a
solidão do homem, identifica-se ou está mesmo contido nas freqüentes referências
que o escritor faz à montanha ao longo de toda a sua obra, elemento dos mais
importantes na simbologia do escritor, que, inclusive, extrapola a linguagem
romanesca e emigra para a ensaística, encontrando-se, por exemplo, num ensaio
tão importante quanto Invocação ao Meu Corpo. No contexto da literatura
portuguesa deste século, a ênfase dada pelo romancista à montanha como motivo
ficcional de extrema recorrência presente ao longo de toda a sua obra, o que o
transforma num dos seus mais característicos leitmotivs, permitiria, num
paralelo empiricamente traçado, relacionar Vergílio Ferreira ao seu
contemporâneo Miguel Torga, tematicamente preso ao mundo semibárbaro das terras
altas de Trás-os-Montes e autor de dois livros de títulos significativos: Contos
da Montanha e Novos Contos da Montanha. Entretanto, uma análise mais cuidadosa
imediatamente evidencia as linhagens distintas dos dois escritores. Em Vergílio
Ferreira, a montanha não é exatamente um universo geográfico ou social, e sim
um espaço essencialmente mítico, de função catártica ou ascética, em que o
homem reencontra as suas origens naturais e onde lhe é possível reeducar o seu
espírito, despindo-o dos preconceitos que lhe foram impostos pela existência.
Neste intuito pedagógico, a montanha em Vergílio Ferreira estaria bem mais
próxima do sentido mágico da montanha de Thomas Mann, que exerce sobre Hans
Castorp o seu poder de purgação e aperfeiçoamento espiritual. Lugar de
meditação, símbolo da pureza inicial das coisas, a visão da montanha é colocada
às vezes no romance como algo tocado de sagrado ou como uma força maior do
universo, que consegue aplacar a sufocada angústia de Carlos Bruno. Aliada à
montanha, a neve, outro elemento da natureza cuja brancura sugere também uma
pureza mística ou quase, assume, próximo ao final de Mudança, uma grande
importância simbólica, porque é ela que consegue, fugidiamente, devolver a
Bruno a breve alegria de uma felicidade passageira:
“Do céu opaco, uma larga nuvem de flocos brancos caía mansamente como
poeirada de papéis rasgados. Bruno cheirara a neve de véspera, no ar gelado e
quedo, no céu cor de pombo. E agora que a via através da janela, não trocaria
por nada aquela hora de sossego. Subiu aos vidros da varanda e escutou, de
coração represo, o silêncio intrínseco do mundo. Já ao largo de toda a encosta
ia um vasto mar branco com ondas nas curvas lentas dos cerros, barcos negros de
casas, mastros de ramos de árvores. (...) Silêncio profundo, silêncio cósmico,
de astros rolando pelo espaço vazio. Bruno desceu à sala, carregou o fogão e
fechou os olhos, abandonado e feliz. Sem cessar, do peso das nuvens
desprendiam-se mechas de neve que arrasavam, em planura, a última arrogância
das coisas. (...) Bruno, ao rumor da tiragem do fogão, olhando o poisar da neve,
mergulhava dentro de si, procurando o sabor, o cheiro real do mistério fluido
daquela hora, tantas vezes evocada saudosamente. Quase tocava esse mistério,
quase o retinha, cuidadosamente, na concha das mãos. Mas não chegava nunca a
vê-lo, a tocá-lo, de leve que fosse. Era um fumo sem cor, adivinhado, mas
terrivelmente presente. Era um doce eflúvio a envolvê-lo todo, assim mudo,
petrificado. Débil lembrança de um momento nunca abarcado pelos sentidos, de
uma verdade só memória, sem tempo. Por isso, via melhor a neve, a longa
desolação do mundo branco, fechando os olhos, fechando-se todo, e imaginando.
Talvez que para aquela hora de pureza só fosse própria uma inocência de
criança, que nunca se conhece senão depois de se ser criança”.
A busca angustiada e incessante de Carlos Bruno pela razão da
existência, resolve-se assim na redescoberta ou reencontro da inocência e da
pureza originais, perdidas no sorvedouro da vida e representadas pelos
elementos naturais, revestidos, no romance, de sugestiva carga simbólica. A paz
interior, certa alegria ou mesmo a perspectiva de felicidade obtida pelo homem
em contacto com a natureza, característica freqüente na obra de Vergílio
Ferreira, constitui outro pilar na ponte de semelhanças que ligam o romancista
a certa literatura existencial francesa, ainda, muito especialmente Albert
Camus.
É evidente que o sujeito vergiliano não é mais o ego cartesiano nem o Um
sintético de Hegel. Na verdade, a crise do sujeito tal como ela se manifesta em
Vergílio já se prenunciava em Kant. Para Kant, o sujeito não pode ser objeto de
conhecimento; não é substância (como antes em Descartes) nem um devir (como
depois em Hegel). Hegel, de certa forma, devolveu ao sujeito uma segurança
ameaçada no kantismo. A síntese da dialética hegeliana (paga com o evitamento
da questão da negatividade) restituiu ao sujeito a possibilidade de se pensar
como uno.
Um homem a quem só resta sentir e pensar. Mas pensar era ainda enfrentar
um conflito, porque era acusar-se ou decidir-se a um rumo. Era, afinal, pelo
ato de pensar, que Bruno se impunha ou que os outros lhe impunham a solidão
para onde a sua vida deslizara, porque ele sabia demais, indagava demais,
discutia demais e a sua consciência crescera desmesuradamente e já não sabia
naquele exíguo universo humano. Esse era o crime de que o acusavam: - pensar.
Por isso, já não era entre os homens que Bruno mais se reconhecia e encontrava,
mas entre os próprios elementos da natureza bravia, fosse nas massas pedregosas
da montanha ou nos cerrados das matas seculares. O percurso vivencial de Carlos
Bruno, narrado em Mudança, é o percurso da sua própria aprendizagem do
existir-no-mundo, o percurso da formação de uma consciência, de um pensamento,
depois sempre irremediavelmente impulsionado para a frente, o que o leva a
dizer ao final do romance:
“Mas como queres agora que eu pare e ande ao mesmo tempo? Que saiba e
não saiba que sei? Do alto da minha lucidez, estou só”.
Nítido Nulo, de Vergílio Ferreira é um livro de palavras obsessivas.
Diante do mar, um prisioneiro rememora com desconcertantes e vertiginosas
mudanças de pensamento todo o seu passado. Paradoxalmente, a variabilidade do
seu pensamento instaura no leitor uma tautologia que obriga a repensar o lugar
da repetição. Entre as malhas deste relacionamento ergue-se a história do
prisioneiro. Observemos um pequeno exemplo. Quando o protagonista (o
“prisioneiro” relembra os banhos que tomava na praia, quando pequeno,
descreve-se deste modo:
“(...) com o meu fato às riscas de presidiário”.
Mircea Eliade observa que é freqüentemente o tema do homem, primordial,
perto da perfeição, que decai, tornando-se mortal, frágil, ameaçado. O anseio
de transformar o mundo justifica-se, então, pelo desejo de retomada do poder
perdido. Isso leva o homem a enfrentar o ciúme dos deuses.
A estruturação cíclica do tempo mítico assegura a manutenção do processo
de transformação, rechaçando o silêncio e a imobilidade do incriado, “Viver é
conquistar o caos”, diz Van Der Leewuv. É um processo penoso, cheio de perigos
e conflitos.
Toda criação requer uma destruição. Não é apenas aniquilar as forças que
se opõem ao processo, como é lógico. Mas também destruir aquilo que de melhor
se propõe no mundo.
A arte concebida como ‘substituto da vida’, a arte concebida como o meio
de colocar o homem em estado de equilíbrio com o meio circundante – trata-se de
uma idéia que contém o re-conhecimento parcial da natureza da arte e da sua
necessidade. Desde que um permanente equilíbrio entre o homem e o mundo que o
circunda não pode ser previsto nem para a mais desenvolvida das sociedades,
trata-se de uma idéia que sugere, também que a arte não só é necessária, mas
igualmente que a arte continuará sendo sempre necessária.
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 29 de novembro de 2016)
Comentários
Postar um comentário