**SEMANA //Blog **BO-TEKO DE POESIAS** - 18-24 DE NOVEMBRO DE 2016** - Manoel Ferreira



BENJAMIM E BAUDELAIRE: ESTRUTURAS DE SENTIMENTO DA MODERNIDADE - I PARTE



O século XIX correspondeu a uma época rica em inovações tecnológicas e em Experiências perceptivas, que implicaram nova organização econômica, social e cultural em todos os níveis, perspectivas. As experiências individuais, sociais, temporais e materiais sofreram transformações que podem ser observadas, dentre outras obras literárias, nos textos de Charles Baudelaire “As flores do mal” e “Sobre a modernidade”; debruçar-nos-emos nessas obras para o tecimento de considerações analíticas. Partindo do ponto de vista do materialismo cultural de Raymond Williams, as obras de arte e da literatura formalizam as experiências vividas num determinado tempo histórico, assim como participam ativamente do processo de incorporação dos modos de vida. Assim, é possível identificar, dentro de obras artísticas, as experiências vividas, representações, emoções, as dimensões subjetivas das práticas individuais e sociais de determinada sociedade.
Foi isto que Walter Benjamim procurou realizar em seus textos sobre Charles Baudelaire. Desvelou a obra de Baudelaire, identificando-lhe o contexto em que foi escrita, por meio de profícua interpretação da experiência da cultura moderna.
Nossa intenção sine qua non é estudar sobre a materialidade e suas relações com as experiências na modernidade. Para tanto, esse artigo pretende analisar as experiências tecnológicas e perceptivas na cultura moderna, do século XIX, imanentes às obras de Walter Benjamin, particularmente referentes aos textos de Charles Baudelaire, a partir da noção de “estrutura de sentimento" de Williams. Em especial, destacam-se as experiências vividas relacionadas às novas tecnologias e materiais, à temporalidade, ao social, ao pessoal, assim como ao choque. Em primeira instância, nesta edição, abordaremos a noção de estrutura de sentimento, cara ao materialismo cultural de Williams, explicitando a importância do pensamento crítico a partir da análise teórica da cultura, por meio das obras de arte e da literatura. Em segunda, noutra edição, com a análise das obras de Benjamin sobre Baudelaire, pretendemos id-“ent”-ificar as estruturas de sentimento presentes no contexto da nova estrutura social, urbana e industrial moderna do século XIX.
Eleger a categoria “estrutura de sentimento” para analisar a obra de Benjamin, sobremodo complexa, complexidade característica de todos os filósofos da Escola de Frankfurt, é mister explorar algumas contribuições do materialismo cultural de Williams. A princípio, pode-se questionar o anacronismo em relação aos dois referidos autores, mais especificamente sobre as obras de Baudelaire, estudadas por Benjamin, e os escritos de Williams. Acreditamos que a categoria “estruturas de sentimento” é, também, importante neste estudo das experiências tecnológicas perceptivas na cultura moderna, do século XIX, justamente por se tratar de um conceito acerca do que é vivido na experiência histórica. A experiência é a nossa pedra angular neste estudo. Antes dessa abordagem, deve-se compreender como tal conceito emergiu no pensamento de Williams, assim como as demais contribuições desse autor para as ciências humanas e para a comunicação.
Pensador dos Estudos Culturais, Williams destacou-se por estudar, através da análise crítica da cultura, a natureza e as relações do modo de vida da organização social. A posição do grupo de intelectuais dos Estudos Culturais (Richard Hoggart, Edward Palmer Thompson e Raymond Williams) é fundamental, não só por ampliar o estudo da literatura, da antropologia, da sociologia e da comunicação, mas, principalmente, pelo esforço em entender a cultura como forma de atuar na sociedade contemporânea. Ao compreendê-la como modo de vida que envolve processos determinados histórica, social e economicamente, e ao questionar o mecanicismo do modelo base/superestrutura, Williams propõe novas categorias e conceitos, contribuindo para uma teoria marxista da cultura.
Diversos são os significados presentes na palavra cultura, conforme identificação de Williams, desde cultivo em uma colheita até o sentido do modo de vida de um povo. Nessa análise, Williams verifica que esta palavra carrega o peso das disputas pela fixação de um sentido dominante, em diferentes épocas históricas e formações sociais. Em Williams, o termo em questão representa o espaço social e histórico das práticas sociais, materiais e simbólicas. Cultura é o espaço e instância de dominação, mas, também, esfera de realizações, sendo, ao mesmo tempo, produto e produção de um modo de vida num determinado momento histórico.
A proposta nítida de Williams é a idéia de cultura comum, ordinária, encravada no modo de vida da experiência quotidiana, como modo de se pensar o que congrega a sociedade. Assim, a cultura é de todos e todos estão unidos pelas experiências comuns vividas. Ao definir cultura como algo comum, Williams une os dois pontos principais, inter-relacionados, que concernem esse conceito: modos de vida e produtos artísticos.
Ao propor uma teoria para retomar a discussão sobre a cultura, Williams mostra que a mesma é atividade humana que visa a produção de significados e de valores, bem como a estruturação das formas, das instituições, das relações e das artes. Essa teoria, então, tem por objetivo a realização de uma crítica da cultura para analisar e entender o modo de vida da sociedade em um determinado momento histórico. Conforme Williams, “a teoria da cultura pode ser definida como o estudo das relações entre os elementos de todo um modo de vida. A análise da cultura é a tentativa de descobrir a natureza dessa organização que é o complexo dessas relações” (WILLIAMS, apud CEVASCO, 2001, p. 51).
A fim de que exista debate concreto sobre a sociedade e um espaço de luta e ação, nessa instância teórica, deve-se enxergar a cultura como produto, mas, principalmente, como produção material. Como a experiência, a consciência e o sentimento das sociedades estão em constante transmutação. Para haver análise coerente da cultura, mister haja uma categoria que abarque esses termos ativos e flexíveis de mudança. Assim foi que Williams cunhou a noção “estruturas de sentimento” para de-finir as experiências vividas num determinado tempo e momento históricos, as quais, muitas vezes, escapam ao pensamento hegemônico. Conforme o autor, o que interessa mesmo, a pedra angular, são os significados e os valores tais como são vividos, sentidos e experimentados ativamente, assim como as relações entre eles e as crenças forais ou sistemáticas.
De-finimos esses elementos como “estrutura”: como série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo engrenadas, engendradas, e em tensão. Não obstante, estamos de-finindo uma experiência social que está ainda em processo, com freqüência ainda não reconhecida como social, mas como privada, idiossincrática, e mesmo isolada, mas que na análise (e raramente de outro modo) tem suas características emergentes, relacionadoras e dominantes e na verdade suas hierarquias específicas (WILLIAMS, 1979, p. 134).
Williams frisa ser essa categoria útil, em especial, nas artes e na literatura, visto que as “estruturas de sentimento” aparecidas nas obras não são geradas internamente nelas e, sim, externamente por meio das estruturações das experiências históricas. Uma vez registrada nas obras de arte, tal estrutura vivida pode ser analisada, compartilhada, examinada, id-“ent”-ificada e generalizada. Pode-se dizer que a “estrutura de sentimento” é uma forma de incorporar as experiências e os processos sociais ao estudo da cultura, para analisar as condições das práticas sociais em um determinado momento histórico. Todavia, ao mesmo tempo em que as artes armazenam tal forma de estrutura, participam ativamente do processo de incorporação e formalização dessas experiências na vida social. As artes são importantes objetos de análise prática do materialismo cultural.
Walter Benjamin, historiador materialista com fortes vínculos marxistas, que também utiliza a cultura como análise, pretendia contar a história do mundo moderno da produção literária, mercantil, tecnológica, material, a partir da modernidade de seus produtos, sempre relacionando, dialeticamente, o texto ao contexto. Dessa forma, produziu ensaios fragmentados, mostrando a expressão da mercadoria na modernidade, como, por exemplo, a literatura, o cinema, a fotografia, evidenciando que os materiais estão impregnados de conflitos de classe.
Benjamin também se preocupou em problematizar a gênese da ideologia do progresso da modernidade, o que pode ser observado, especialmente, nos textos acerca das obras de Baudelaire, “Paris, capital do século XIX” e “Paris do segundo império de Baudelaire”.
Nesses textos existem dois temas principais, a saber, a modernidade e a cidade, os quais são determinantes e inseparáveis na obra de Baudelaire (GAGNEBIN, 2004, p. 47). Antes de explicitar esses dois temas, faz-se mister entender que Benjamin denuncia a concepção da “historiografia progressista” e da “historiografia burguesa”, que previa um progresso inevitável e cientificamente previsível. A fim de des-velar a opressão do tempo moderno, o autor se afasta do tempo cronológico e linear e se filia à idéia de “tempo de agora” (“Jetztzeit”), caracterizado por sua intensidade e brevidade, cujo modelo foi explicitamente calcado na tradição messiânica e mística judaica (GAGNEBIN, 1994, p. 8). Benjamin transcorre para além do julgamento de sua análise e, assim, mapeia o mundo para a ação, por meio da construção de um imaginário que ultrapassa as narrativas literárias.
Baudelaire ocupa o lugar mais proeminente na galeria benjaminiana dos autores e das obras literárias. Outras figuras, igualmente importantes, estão também contempladas ao longo de toda a sua obra. Porém, sobre o ‘caso’ Baudelaire, ou melhor dizendo, sobre “o abismo sem estrelas” de Baudelaire, Benjamin debruçou-se mais demoradamente, resultando desse esforço textos admiráveis. Walter Benjamin terá, possivelmente, encontrado nessa imagem o reflexo da vertigem do seu próprio pensamento. O lamento, o horror perante a decadência da tradição e dos valores, a urgência do pensar perante a violência nihilista da experiência moderna, mas também a nostalgia baudelaireana relativamente às correspondências originárias, eis os aspectos que conduziram Walter Benjamin à partilha incondicional com a obra radical de Baudelaire. É ao longo de obras como Passagens, Charles Baudelaire, Zentralpark, que os temas que serão abordados irão aparecendo.
A primeira razão pela qual Baudelaire ocupa uma posição importante na galeria de autores privilegiados por Walter Benjamin, deve-se ao fato de Baudelaire, fato único e ímpar na literatura do seu tempo (embora na sua obra Benjamin cite também Blanquis, Victor Hugo, Marcel Proust, Lamartine e tantos outros), personificar a figura do ‘alegórico’ e do saber barroco e saturnino por excelência, encontrando na sua lírica o ‘lugar natural’ da alegoria.
Entender o gesto alegórico, o ‘abismo’ baudelairiano - abismo do espaço, mas também alegoria do abismo do tempo -, tentando pôr à vista a estrutura essencial da sua obra (obra que, em si mesma, quer deixar ver esse esqueleto, surgindo destinada ao olhar alegórico), tornou-se um objetivo fundamental para Benjamin, que pretendia a revalorização desse procedimento estético.
A modernidade deve ser entendida como momento marcado pelo individualismo, solidão e fetiche da “inovação”. Ou ainda, como uma “(...) época da superação, da novidade que envelhece e é logo substituída por uma novidade mais nova” (VATTIMO, 1996, p. 171). Benjamin compreende que a busca incessante pelo novo é algo inseparável da produção capitalista, que tudo transforma em mercadoria.
Todavia, a modernidade representa longo processo que se inicia na Europa Ocidental, em torno das décadas do ano de 1800, quando o homem se vê ocupando o papel do sujeito da produção do saber, ou ainda, com a separação do sujeito e do objeto (GUMBRECHT, 1998, p. 10-12). De fato, o século XIX foi caracterizado por transformações sistêmicas nos campos discursivo, epistemológico, institucional e sócio-econômico que implicaram em mudanças na percepção e nas experiências dos sujeitos. Como Crary (2004, p. 69) evidencia, o sistema econômico capitalista introduz novos produtos, novos estímulos e fluxos de informações, levando a atenção e a desatenção a novos limites em meio a novos métodos de regulação e administração da percepção. Eis a modernidade estabelecendo novas relações da noção de tempo, espaço, psique, representação, realidade, percepção e atenção.
As novas formas de produção, juntamente com o surgimento de um campo social, urbano, psíquico e industrial, saturadas de informações sensoriais, foram o problema central do século XIX. De acordo com Gumbrecht, foi justamente no século XIX que o tempo veio a ser agente absoluto de mudança, graças à sua domesticação, pela ciência e pela história, favorecendo a inovação e o progresso compulsórios. “Simultaneamente, o tempo como agente absoluto de mudança dá à inovação o rigor de uma lei compulsória” (GUMBRECHT, 1998),
A noção de temporalidade do século XIX trouxe a idéia de expectativa do tempo, em que o passado é retrógrado e o futuro é sinal de progresso. Assim, há a valorização do lugar de onde se fala, isto é, o presente, que não é mais, conforme Gumbrecht, um intervalo de continuidade. Romper com a tradição significa superar o atraso, dentro de um presente repleto de expectativas de um eterno devir, impregnado do ideário burguês do progresso. É justamente essa modernidade transitória e negadora da tradição que Benjamin se preocupa em descrever e, assim, elege a Paris do século XIX como seu contexto moderno.
Paris, cidade que Benjamin tanto amou, é o objeto arquitetônico privilegiado por ele e a que o autor recorre constantemente, quer para situar Baudelaire, quer para caracterizar e compreender a sua obra, do ponto de vista da sua modernidade. A nova cidade, após a sua reconstrução, tal como foi levada a cabo por Haussmann, no século XIX, era constituída por largas avenidas e passeios amplos, que permitiam ao parisiense uma nova relação com a cidade e com a arquitetura. Ela foi inteiramente reconstruída mediante novos traçados, com uma reestruturação fundiária, de construção de infra-estruturas, assim como foi a construção de equipamentos e de espaços livres.
A esquematização da nova cidade cria uma cidade com luz, espaço e revaloriza, enquadrando, os monumentos. A maior parte do que será o alvo essencial da obra de Benjamin, as galerias, construíram-se nos quinze anos a seguir a 1822. Associadas ao aparecimento da nova arquitetura e dos novos elementos construtivos, o ferro e o vidro, surgem os precursores dos grandes armazéns, a que se chamam os armazéns de novidades. Estes armazéns e, por conseguinte, as galerias parisienses, converteram-se num pólo de atração turística, como afirma Benjamin, com base na leitura de um guia ilustrado de Paris nessa época.
O aparecimento das galerias coincide igualmente com o dos panoramas, os quais se constituem, como “a expressão de um sentimento novo da vida.” É através dos panoramas que o citadino tenta introduzir o campo na cidade e neles (aspecto que será importante na análise do tema do flâneur e da flânerie) a vida alarga-se às dimensões de uma paisagem, desdobrando-se como tal ante o olhar do transeunte. Sublinhe-se e ressalte-se, ainda, como acontecimento significativo e decisivo o aparecimento da fotografia.
O flâneur é um estudioso da natureza humana. Sob a aparência de um olhar desatento e distraído, esconde-se alguém cuja volúpia reside na decifração dos sinais e das imagens: algo que pode ser revelado por uma palavra deixada ao acaso, uma expressão capaz de fascinar o olhar de um pintor, um ruído que espera o ouvido de um músico atento. Os conceitos de flânerie e de ócio devem, então, ser aproximados, tomando o segundo como a inaparente condição do trabalho poético mais fecundo. Atente-se nas palavras de Benjamin, quando afirma que todo o trabalho de Baudelaire se desenvolvia, não na sua residência (de onde eram banidos os objetos usuais de trabalho), mas sim na atividade de atento flâneur, o que lhe permitia aprender a ver os seus poemas como “une sucession ininterrompue de minuscules improvisations”. Por isso, reconhecemos que o olhar do flâneur esconde a mais profunda agitação interior e é esse fato que leva também Benjamin a afirmar: “A maioria dos homens de génio foram grandes flâneurs.”
Walter Benjamin também veria no panorama uma nova forma de representar a idade, e um novo momento na história do olhar. Mas o panorama também "anuncia uma reviravolta na relação entre arte e técnica", sendo também "a expressão de um novo modo de existência". Para Benjamin, a cidade vai se transformando, pouco a pouco, em modo de representar uma nação, e o panorama transforma a cidade em paisagem, onde mais tarde o flâneur procurará os motivos de sua poesia. Ao mesmo tempo, o panorama provoca mudanças na percepção e na representação do real, que terão conseqüências no comportamento e na arte: "Em 1822 Daguerre inaugurou seu panorama em Paris. Desde então, essas caixas claras e brilhantes são os aquários do distante e do passado". Quando Daguerre passa a dedicar-se às experiências fotoquímicas de Nièpce, não imaginava que a fotografia iria possibilitar que a experiência perceptiva do panorama se tornasse portátil e ao alcance de todos. Pois poucos anos depois de sua invenção – que consistia na fusão da antiga câmera obscura com a fotossensibilidade – ter sido patenteada, em 1851, foram produzidos 21 milhões de daguerreótipos. A fotografia, assim como o panorama, é um "dispositivo" que mobiliza a indústria e a arte, mas de uma maneira nova: por um lado, o gesto fotográfico se massifica, todos podem ser agora retratistas; por outro lado, a fotografia, cujo produto é passível de cópia, destitui o "caráter de autenticidade", a "aura" da obra de arte. Segundo Benjamin, as técnicas de reprodução em massa não implicam apenas numa mudança "exterior" à arte (o fato de que todos possam ser "artistas" com um simples clique), mas uma modificação no próprio estatuto da arte na modernidade. A "queda da aura" é definitiva. Depois da fotografia, as pontes foram queimadas. Ou seja: já não podemos definir a arte por valores antigos (como o sublime e a autenticidade). É aí que o pensamento de Baudelaire, o poeta da Modernidade, entra em cena. E, mais do que isso, é nesse ponto que o ensaio de Baudelaire sobre a fotografia torna-se uma revelação. Tanto sobre as imagens técnicas quanto sobre o próprio poeta e as suas Flores do Mal.
A reação de Baudelaire à fotografia no Salon de 1859 ocorre justamente quando a fotografia busca um espaço no domínio da arte. Na exposição de 1857, no Palais de lIndustrie, graças ao esforço de Nadar, a fotografia busca pela primeira vez entrar no domínio da arte. Os organizadores da exposição, no entanto, recusam-se a admitir que a fotografia acompanhe o desenho, a pintura, a gravura e a litografia. Apesar disso, uma comissão formada por artistas e escritores (entre eles Delacroix e Gautier), manifesta-se favoravelmente à fotografia, o que irá despertar a reação de muitos estetas e, entre eles, Baudelaire.
O argumento de Baudelaire no Salon não se dirige unicamente à fotografia, mas a todas as formas de arte que se submetem ao "Verdadeiro", em detrimento do "Belo": "chez nous le peintre naturel, comme le poëte naturel, est presque un monstre. Le goût exclusif du Vrai (si noble quand il est limité a ses véritables applications) opprime ici et étouffe le goût du Beau" É verdade que o "público burguês", a quem Baudelaire irá se referir, admira na fotografia o seu caráter de transparência e fidelidade (algo a que o panorama já o educara). Contudo, já no tempo de Baudelaire, era comum pensar-se no caráter artificial da fotografia em relação à realidade, a começar pela ausência de cores. Sobre o retrato, em 1841, Rodolf Töpffer ressaltava o fato de que a cada instante um rosto se transforma, e a fotografia só pode registrar um desses instantes: "en quelque instant que M. Daguerre vienne fixer là votre image, cette image de votre figure dun instant ne sera que le quart, que le demi-quart, que le dixième, que le centième de vous même".*
O conceito que permite, com efeito, estabelecer uma mediação entre flânerie, enquanto atividade/experiência vivida do choque [Chockerlebnis] propiciadora da experiência poética, ócio e produção são o de meditação melancólica, aquela que é a condição essencial e sem a qual não existiria qualquer produção estética (entenda-se alegórica) em Baudelaire. Desde logo, na visão moderna e baudelaireana da experiência, parece ressaltar essa hiperlucidez vertiginosa que inere à compreensão da visão dialética e violenta que coube em sorte aos modernos mais radicais.
Benjamin salienta ainda um fator que será de extrema importância para definir essa época: as exposições universais. Estas desempenham um papel importante no que Benjamin chamou a época das fantasmagorias, referindo-se deste modo ao século XIX, que atesta o clímax do espírito burguês: “As exposições universais são os lugares de peregrinação da mercadoria como fétiche”.
As fantasias de Grandville dão ao universo este aspecto fantasmagórico, modernizando-o, aparecendo todo ele como mercadoria, sendo nele que os habitantes de Saturno, melancólicos e entediados, se distraem do seu mal-estar. “O anel de Saturno torna-se uma varanda de ferro forjado onde os habitantes de Saturno vêm tomar ar ao cair da noite.”
Nesta ‘nova’ cidade, e que corresponde também a um mundo em decadência, de uma cultura derradeira e mortalmente ferida pelo fetiche da mercadoria e pelo capitalismo burguês, os seus passeios amplos convidavam agora à circulação, afastando o medo que tomava o transeunte parisiense, na antiga cidade, e essa atividade (a flânerie) constituía a ocupação privilegiada do burguês ocioso (o flâneur), aquele que sustentava a convicção da fecundidade da flânerie, de que nos fala, não apenas Benjamin, nos seus estudos sobre Baudelaire, como também o próprio Baudelaire, na sua obra As Flores do Mal.
A cidade de Paris do século XIX é o elemento principal da poesia lírica de Baudelaire e, na caracterização de Benjamin, aí se sobressaem os signos do progresso como transportes, ferro, vidro, iluminação a gás, os quais viraram referência para o pertencimento de uma metrópole à modernidade. É importante ressaltar que a Paris do Segundo Império teve seus espaços urbanos planejados e reformados pelo barão Georges-Eugène Haussmann, nomeado prefeito por Napoleão III. O novo planejamento da cidade foi realizado de acordo com os interesses do Estado em organizar uma nova urbanização imponente e embelezada, sendo que os principais objetivos eram o saneamento, a circulação e a higiene geográfico-social de seus inimigos. Assim, a Paris bipartida foi dividida entre bairros dos ricos e dos pobres, afastando as populações perigosas, colocando-as na periferia. Ou ainda, nas palavras de Benjamin:



A verdadeira finalidade das obras de Haussmann era tornar a cidade segura em caso de guerra civil. Ele queria tornar impossível que no futuro se levantassem barricadas em Paris. (...) Haussmann quer impedi-las de duas maneiras: a largura das avenidas deveria tornar impossível erguer barricadas e novas avenidas deveriam estabelecer um caminho mais curto entre as casernas e os bairros operários. Os contemporâneos batizam esse empreendimento de “embelissement stratégique” [embelezamento estratégico] (BENJAMIN, 1985, p. 42).



A Paris referida nos textos benjaminianos possui largas avenidas, monumentos, pontes, galerias – “passagens”, armazéns, folhetins, paisagem visual – publicidades, cartazes e homens affichés. Tudo isso, em meio às multidões, acarreta novos tipos de experiência e modifica as práticas, os hábitos e os sentimentos sociais. Por exemplo, o surgimento da luz a gás tornou a vida noturna possível e, assim, Benjamin ilustra como a materialidade produz novas relações com o mundo e, também, novos discursos. Enfim, é uma cidade marcada pelo comércio, pela industrialização, pelas novas tecnologias é berço de ricas experiências vividas; por isso, é fundamental identificar as “estruturas de sentimento” de tal contexto.
Para tanto, serão expostas, a seguir, quatro categorias exploratórias sobre as experiências perceptivas que representam as principais “estruturas de sentimento” da Paris do Segundo Império, descrita por Benjamin. Porém, é necessário explicar a importância de se estudar a categoria experiência, imanente nas obras de Benjamin.
O historiador da materialidade, conforme o pensamento de Walter Benjamin, não visa uma descrição precisa do passado tal qual ele ocorreu e, sim, “(...) pretende fazer emergir as esperanças não realizadas desse passado, inscrever em nosso presente seu apelo por um futuro diferente” (BENJAMIN apud GAGNEBIN, 1982, p. 67). Assim, o historiador da materialidade deve utilizar como método de análise a experiência (“Erfahrung”) relacionada ao passado vivido coletivamente. Por isso, o incômodo do autor no que diz respeito ao que seria a perda ou a diminuição da experiência e, conseqüentemente, sua transmissão pela narração. O autor identifica que essa perda é ocasionada em função das condições impostas pelo capitalismo. Conforme Benjamin, a experiência “Erfahrung” foi solapada pela experiência “Erlebnis”, a qual representa o vivido pelo indivíduo solitário. No entanto, o autor compreende que, nesse contexto de perda da experiência comum, outras formas de narração – e poder-se-ia ampliar, aqui, e dizer outras formas de experiência - se tornam dominantes. Segundo o autor, ficamos pobres, “(...) abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’” (BENJAMIN, 1994, p. 119). Dessa forma, tanto a experiência coletiva moderna tradicional “Erfahrung”, para os dias de hoje, como a individual “Erlebnis” serão valiosas para o mapeamento das “estruturas de sentimento da modernidade”, visto que é “a experiência que dá sentido à cultura”.
A base material da sociedade proporciona novas relações dos indivíduos e novos discursos. No campo da comunicação, observa-se que a popularização da imprensa, ocorrida graças à tecnologia a vapor, nesse caso, a máquina de linotipo, possibilitou a redução do preço dos exemplares, a introdução do romance e da propaganda comercial no folhetim, proporcionou novas formas de sociabilidades, assim como novos formatos e conteúdos impressos. De fato, as tecnologias possibilitaram a rapidez na modernidade. Benjamin identificou a exigência do público para notícias rápidas e diretas, consumidas durante a hora do aperitivo, o que indicou o ritmo jornalístico que deveria ser desenvolvido. A notícia passa a ser produzida a cada dia, com modificações na edição, na paginação, na inclusão de novas intrigas e boatos, para ter uma aparência atrativa aos seus compradores. A sociabilidade da leitura coletiva nos cafés e o formato dos impressos possibilitaram mudanças nas práticas de leitura. E, assim, na hora do aperitivo, os cafés ficavam repletos de leitores em torno de um único jornal.
Benjamin verifica que as práticas sociais determinam a materialidade, o conteúdo, as formas de leitura e os gêneros literários e, não o contrário. Por exemplo, as physiologies, pequenos cadernos de bolso que representaram o beletrismo otimista, ora um dos diferentes gêneros literários destinados ao consumo na rua, ao ar livre. Isso porque a necessidade da informação curta e rápida possibilitou o consumo de tal gênero.
Por outro lado, a importância da mercadoria literária favoreceu o enriquecimento dos escritores, graças à elevada remuneração do folhetim e do aumento dos anúncios. Muitos literatos alcançaram a notoriedade perante o público e utilizaram o seu prestígio indevidamente, resultando novas modalidades de corrupção. Ou ainda, utilizaram o renome literário como parte da trajetória para se alcançar a carreira política ou para a preparação do voto do campesinato.
O telégrafo também promoveu mudanças na sociabilidade assim como no ritmo do noticiário e do bulevar, determinando novas relações sociais. Nas palavras de Benjamin sobre o telégrafo, “a partir daí, as catástrofes e os crimes do mundo inteiro podiam ser contados” (BENJAMIN, 1985, p. 59). Assim, essa tecnologia torna o mundo próximo e ao alcance de sua demanda, como uma mercadoria. Em relação à arquitetura parisiense, as passagens possibilitaram novas experiências estéticas e materiais. Feitas de vidro e revestidas de mármore em seu interior, as passagens são um “paraíso artificial” do comércio de mercadorias. As galerias com mercadorias de luxo representam a era industrial e as experiências perceptivas em uma cidade em miniatura, mas, também uma época de isolamento dos indivíduos. O panorama coincidiu com o surgimento das galerias e representou a incansável tentativa de imitar a natureza do mundo miniaturizado.
A importância das fábricas e seus restos também ocasionaram novas práticas sociais. Por exemplo, o lixo descartado dos processos industriais passou a ser recolhido pelos catadores de trapo que, em número cada vez maior nas cidades, formavam uma indústria caseira sediada na rua, tornando ainda mais explícita a miséria humana, conforme explica Benjamin. Cabe, aqui, destacar o quadro delineado por Baudelaire intitulado “la modernité” que ilustra bem as “estruturas de sentimento” da população em meio às fábricas.



Seja qual for o partido a que se pertença’, escrevia Baudelaire em 1851, ‘é impossível não ficar emocionado com o espetáculo dessa população doentia, que engole a poeira das fábricas, que inala partículas de algodão, que deixa penetrar seus tecidos pelo alvaiade, pelo mercúrio e por todos os venenos utilizados para produzir obras-primas (...) Essa população se mata esperando as maravilhas a que o mundo lhe parece dar direito; sente correr sangue purpúreo em suas veias e lança um longo olhar, carregado de tristeza, para a luz do sol e para as sombras dos grandes parques (BENJAMIN, 1985, p. 98).



O ser humano também se torna mercadoria na cultura moderna da Paris do século XIX e sua materialidade corporal, enquanto força de trabalho, é posta como produto. Isso ocorre, por exemplo, com as damas de luxo e com o proletariado, que fazem parte do modo de produção mercantil. Ou ainda, os indivíduos das metrópoles que são personagens e mercadorias nas mãos do poeta mercantil.
O tempo no século XIX, conforme dissemos anteriormente, caracterizou-se como agente absoluto de mudança, ligado à idéia de progresso e à inovação dos materiais. Assim, a experiência temporal acaba sendo siamesa da experiência material. Os novos produtos, que permeiam a idéia de tempo como progresso, proporcionaram novas práticas sociais. Por exemplo, a paisagem urbana traz consigo a noção de tempo, ou de múltiplos tempos e sentidos com observado por Ferdinand Lion em um trecho selecionado por Benjamin.



Os elementos temporais mais heterogêneos se encontram, portanto, na cidade, lado a lado. Quando, saindo de um prédio do século XVIII, entramos em outro do século XVI, precipitamo-nos numa vertente do tempo; se logo ao lado está uma igreja da época do gótico, atingimos o abismo; se a alguns passos à frente nos achamos numa rua dos anos básicos (da revolução industrial na Alemanha)..., subimos a rampa do tempo. Quem entra numa cidade, sente-se como numa tessitura de sonhos, onde o evento de hoje se junta ao mais remoto (LION apud BENJAMIN, 1989, p. 209).



Essa vertigem do tempo, juntamente com os novos materiais, ocasiona uma nova experiência, a de choque. Porém, é necessário explicitar que, no tempo do cronótopo, historicamente especificado, nada está livre da mudança e, assim, não pode ser comparado como uma repetição dos seus predecessores. Dessa forma, cada presente precisa ser experimentado, pois é diferente do passado e do futuro. Ao se conectar aos materiais, o sujeito tem o papel de fazer história. Todavia, as experiências vividas em um determinado momento histórico, isto é, as “estruturas de sentimento”, fornecem as pistas das materialidades e das relações sociais e, assim, revelam um processo histórico.
A alegoria de Baudelaire ilustra bem o tempo nostálgico e cheio de cólera em relação à lembrança barroca. O primeiro livro de “As Flores do Mal”, intitulado de “Spleen e ideal”, traduzido por melancolia e sublimação, é um bom exemplo de duas temporalidades: o tempo da harmonia perdida, isto é, do “ideal”, e o tempo inimigo que devora a vida, o do “spleen”. Este último corresponde ao sentimento de catástrofe permanente. De acordo com as análises de Benjamin, “o spleen põe séculos entre o presente e o momento que acaba de ser vivido. É ele que, incansavelmente, estabelece ‘antigüidade’” (BENJAMIN, 1989, p. 155). Fruto da melancolia e da revolta, a alegoria de Baudelaire é fundamental para ilustrar o mundo moderno desarmônico, em meio à economia mercantil capitalista e industrial do século XIX.
A alegoria pode ser interpretada também como uma operação crítica de apropriação deformadora, um "exercício de re-significar infinitamente o mundo [...]. A alegoria baudelairiana [...] nasce do sentimento de transitoriedade que é radicalizado com o advento da cidade moderna"*, ela confere, no presente, a presença. Nesse sentido, o trabalho do poeta se configura como autodestruição criadora, uma imagem nunca acabada – a memória do presente. A cidade se transforma em ruína, a forma muda rapidamente, e tudo se transforma em alegoria, como diz o poeta no poema "Le cigne"; o culto das imagens em Baudelaire se deve à consciência da efemeridade eterna das coisas, da destruição permanente, da presença do sentimento de "agoridade", momento em que o tempo passa a ser compreendido como um espaço de passagem e seu trabalho se inscreve na irreversibilidade do tempo. Segundo André Hirt, é a singularidade de uma beleza alegórica que Baudelaire define como modernidade.
A alegoria é, portanto, uma trama complexa que impede a cristalização do sentido; nesse contexto, a imagem alegórica é vista como possibilidade de construção do conhecimento, pois convoca os vestígios do passado, trabalhando-os de maneira crítica para ultrapassá-los dialeticamente à luz de um olhar situado no presente. O anacronismo, que só se torna pensável a partir da consciência da multiplicidade, liga-se ao conceito benjaminiano de alegoria no sentido de apontar para uma tensão temporal, para uma operação que nasce do sentimento de destruição permanente, para uma memória que se re-configura incessantemente.
Assim, pode-se dizer que sempre há uma reformulação de problemas que parte do interior da própria obra, negando-se a eterna consecução de causas, pois a obra de arte possui uma temporalidade específica que interroga e reinventa, constrói e desconstrói a história da arte valendo-se da história da própria obra de arte: a obra de arte moderna é consciente de si como montagem, como impossibilidade de representar uma totalidade.
Para Walter Benjamin, a história da arte está sempre a recomeçar, pois cada nova reflexão conduz novamente à origem, podendo-se dizer, nesse sentido, que ela é o resultado da tensão entre Erfahrung e Erlebnis. Essa tensão resulta em um processo irônico que entrelaça lembrança e esquecimento, dialética sem síntese possível; Baudelaire é irônico no sentido de perceber esse paradoxo. Sua ironia é compreendida como "forma específica e apurada de auto-reflexão que afirma a imbricação essencial entre a construção da obra (cuja possibilidade de existência individual é a limitação formal), sua necessária auto-superação (pois toda obra verdadeira visa a ser mais do que ela mesma para se abrir à idéia absoluta da arte) e, portanto, sua autodestruição".
A ironia de Charles Baudelaire, que se abre ao trabalho da memória, revela-se a partir da destruição de seu próprio objeto de trabalho e da reestruturação de seu aspecto formal. A ironia perpassa todo o trabalho do crítico-poeta, ela representa a consciência do inacabamento, a aspiração à totalidade e o fracasso dessa busca.
Nesse universo, o esboço é a figura da passagem, consciência da impossibilidade de apreender qualquer figuração, pois sempre há um atraso em relação à representação da experiência: para o autor de Salon de 1859, a forma é o que está vindo a ser. Nesse contexto, "a memória, em Baudelaire, não opera de forma linear, justaposta e cumulativa. Ela possui uma força crítica que rompe toda continuidade mecânica. Não é uma transcrição do passado no presente, mas uma des-contextualização do passado no seio do presente"*.
A obra de Charles Baudelaire exprime a estrutura dialética da imagem, a dialética da temporalidade que ela contém, é uma composição de imagens, apresenta um conjunto de idéias que se metamorfoseiam. É a partir desse movimento de transformação, de metamorfose, que a forma pode ser concebida como originária, pois a origem é a crítica do presente; é no agora que a origem aparece. Essa montagem/desmontagem de singularidades está inserida em um contexto que interroga a estrutura do tempo. A variação representada pela metamorfose, pela multiplicidade e a coexistência dessa multiplicidade são algumas das características encontradas nos textos em verso e em prosa de Baudelaire. Seu trabalho reside na singularidade irredutível de um processo que engendra um pensamento em outro e refuta o exato.
Em As flores do mal, há corte e montagem em um determinado "agora". Nesse sentido, o livro de poemas pode ser considerado uma topografia da memória; nele, tudo é (re)-descoberto pelo trabalho de escavação da memória que parte do presente do poeta, pois "é no presente que convivem as imagens que se entrecruzam, se refletem e se apagam novamente"*. A memória não absorve a exatidão, mas a impressão causada pelo objeto, como escreve Baudelaire em Le Peintre de la vie moderne: "todos os bons e verdadeiros desenhistas desenham conforme a imagem escrita em seu cérebro, e não conforme a natureza"*; o uso da memória implica em uma forma especial de registro, pois ela traduzirá essas impressões.
A arte mnemônica passa pela mediação da memória e da imaginação: uma série de impressões é armazenada para depois se transformar em imagem, é uma luta contra o tempo, que só pode ser detido pela força da memória; ela é, portanto, a matriz do pensamento baudelairiano, é "uma escritura da memória [...]: não imagem da memória, mas uma memória da imagem"*.
Para Baudelaire, Constantin Guys encarna essa memória do presente. Nos trabalhos do pintor, assim como nos escritos do poeta de As flores do mal, a obra se transforma em ruína, a modernidade cria sua própria antigüidade, pois ela é frágil e está fadada à destruição. Sendo assim, o tempo presente se revela importante a partir de uma ameaça constante de desaparecimento. Nesse contexto, o artista que projeta seu olhar somente para trás "perde a memória do presente; abre mão do valor e dos privilégios fornecidos pela circunstância, pois quase toda nossa originalidade vem da marca que o tempo imprime em nossas sensações"*.
Baudelaire desenvolve um trabalho crítico em seu livro de poemas: em sua obra, é possível ver rastros de uma outra realidade, pois ela é o esboço de um outro tempo, diante da obra ele busca "analisar os elementos de progresso ou os fermentos de ruína que ela contém em si"*, seus textos formam universos autônomos, mas que se imbricam, que interagem, construindo uma unidade a partir da diversidade e a diversidade a partir/dentro da unidade; essa construção geradora de vários sentidos é o resultado da tensão entre o limite e o ilimitado. O autor de Le Peintre de la vie moderne produz sentidos a partir de uma ausência, de uma ruína, de um esboço que não se sabe se compôs um todo, ele realiza o trabalho de um pensador alegórico, partindo do princípio de que "a história não é, pois, simplesmente o lugar de uma decadência inexorável como uma infinita melancolia poderia nos induzir a crer. Ao se despedir de uma transcendência morta e ao meditar sobre as ruínas de uma arquitetura passada, o pensador alegórico não se limita a evocar uma perda; constitui, por essa mesma meditação, outras figuras de sentido"*.



Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 23 de novembro de 2016)


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