**EVENTO DO ETERNO - II PARTE** - Manoel Ferreira
O cristianismo des-mascarou o antropomorfismo do politeísmo pagão e o
substituiu pelo monoteísmo de um Deus pessoal. Por outro lado, a Esquerda
Hegeliana des-mascarou o antropocentrismo radical do monoteísmo cristão e o
substituiu pelo materialismo ateu de uma humanidade desalienada. Por mais
diversos e inversos que sejam, um e outro esforço se fizeram e se fazem na
força da mesma estrutura onto-teo-lógica da metafísica. Questionar a
originariedade do politeísmo, monoteísmo e materialismo, quanto à divindade de
Deus e quanto à humanidade do homem, não significa tentar em vão fazer regredir
ou progredir a história. Significa seguir o apelo cairológico, de pensar o
processo histórico à luz da Verdade enigmática do Ser.
A passagem que conduz do Deus impessoal dos filósofos ao Deus pessoal do
cristianismo, esta passagem considerada à luz da Verdade esquecida do Sagrado é
tão ilusória como a passagem, que leva do humanismo da substância ao humanismo
do sujeito.
Heidegger lembra que a categoria de pessoa não é menos carregada das
potências metafísicas de dessacralização e desumanização do que as categorias
de objeto e de coisa. O Deus, para cujo nome o Pensamento Essencial procura a
devida linguagem, não é, portanto, nem o Deus de Hegel nem o de Kierkegaard. É
o Deus Divino de Jesus Cristo, que justamente por não ser da metafísica não
pode ser também nem o Deus da religião do Absoluto nem o Deus da religião do
Paradoxo.
Não tendo tido pai , Sartre persuadiu-se de não ter tido superego : mas
o fato de não ter superego , portanto, Lei a desrespeitar ou interdição a
transgredir, não o condenou também a não ter passado pelo chamamento da
verdadeira rebelião?
A transcendência para a presença distante do mistério absoluto que se
oferta a nós é a condição que possibilita a subjetividade e a liberdade. Porque
este horizonte de absoluta transcendentalidade, que chamamos “Deus”, é o Donde
e o Aonde de nosso movimento espiritual, é que somos afinal sujeitos e, sendo
assim, livres. Em toda parte onde tal horizonte infinito não existe, o ente
respectivo é já por isso intrinsecamente limitado e prisioneiro de si mesmo,
sem que o saiba expressamente, e, por esta razão, também não é livre.
Ser homem é deixar-se abrir pelo diferir da identidade em espaços de
encontro com o Nada do Mistério. Nesta abertura lhe advém a liberdade da
verdade; a liberdade de deixar encontrarem-se as diferenças de todos os modos
de ser. E´ o que se dá em toda atitude Essencial que reconduz o homem até a
Linguagem de sua humanidade. Assim na profundidade do viver, na presença da
morte, na transcendência do Eros, na convivência pessoal, na experiência da fé,
na criação artística, no pensamento radical irrompe-lhe o Nada do Mistério de
tal sorte que nesta irrupção e por ela todos os modos de ser chegam a desabrochar
na interioridade daquilo que são e tal como são. E´ na irrupção desta
interioridade que os seres são enviados à viagem da identidade de suas
diferenças.
A universalidade da fé cristã não é uma universalidade ab-strata que do
poder de atropelar as diferenças extrai uma unidade, onde tudo se equivale. A
universalidade da fé cristã é a universalidade con-creta, pois con-crescit,
nasce com a renúncia a todo poder, por já se ter sempre entregue à luz obscura
do Mistério.
Aos judeus, que no Mistério da fé creram em Cristo, disse Jesus: “Se
ficardes na identidade de minha Linguagem, sereis na Verdade meus discípulos e
assim nascereis com a Verdade e a Verdade trazer-vos-á a liberdade” . O
Cristianismo se dá no horizonte da fé. A fé é o Mistério da Linguagem de
Cristo, cuja identidade abrange toda a revelação de Deus e toda religiosidade
humana. Esta fé se foi irradiando a partir da Igreja Primitiva pela pregação e
escritura da palavra. Numa e noutra a Linguagem de Cristo se fez e se faz
língua e história da salvação.
O “eu” está em primeiro plano de praticamente tudo quanto Sartre
escreve, e sua subjetividade, se necessário, é levada ao nível da hostilidade.
Ele se recusa energicamente a retirar-se para o plano de fundo, e a assumir o
papel de um guia objetivo, cuja função fosse meramente indicar os objetos,
obras e eventos, ou apontar algumas conexões bem estabelecidas entre eles.
A pergunta que se faz, lembrando que Sartre “guardou” o Divino, mas
“para versá-lo na Cultura”; manteve-se fiel ao “Espírito Santo” , mas concebido
como santo padroeiro “das artes e das letras, das línguas mortas ou vivas e do
Método Direto”, é como Deus se relaciona com o mundo?
O Espírito de Cristo enviou sua Igreja numa viagem histórica, rica em
diversidade, tensão e oposição de tradições e costumes, de mentalidades e
situação, de problemas e interpretações, para aviar a identidade católica de
seu Mistério. É´ o sentido da tradição, que a língua francesa expressa, com
muita propriedade, no verbo de-livrer: libertar a identidade na mobilização de
sempre novas diferenças.
Pertencer à tradição cristã é transformá-la, deixando jorrar, pela
interpretação da identidade, a riqueza inexaurível de sua vitalidade histórica.
As transformações, crises e evoluções são o penhor da presença do espírito na
Linguagem do Mistério .
No hinduísmo, através da meditação se há de alcançar o plano da verdade
mística mais elevada. Em Sartre, a experiência mística é o fundamento da
escolha, da “escolha original”. Não se alcança a redenção pelo conhecimento
inferior nem por obras rituais e morais, mas unicamente pelo conhecimento
místico mais elevado do Uno e do Todo. A preocupação com a totalidade, sempre
presente na obra sartreana, é importante. Sartre insiste em que
(...) a beleza da literatura está em seu desejo de ser tudo – e não numa
busca estéril da beleza. Apenas um todo pode ser belo: os que não conseguem
compreender isso – o que quer que tenham dito – não me atacaram em nome da
arte, mas em nome de seu compromisso particular .
O verdadeiro caráter de um compromisso particular não pode ser
reconhecido se não se puser a nu seus vínculos com uma dada totalidade. Uma
filosofia não é válida para o momento, não é algo que se escreve para os
contemporâneos; ela especula sobre realidades intemporais; será forçosamente
ultrapassada por outras, porque fala da eternidade; fala de coisas que
ultrapassam de longe nosso ponto de vista individual de hoje: a literatura, ao
contrário, faz o inventário do mundo presente, o mundo que se descobre através
das leituras, de conversas, de paixões, de viagens; a filosofia vai longe;
considera que as paixões de hoje, por exemplo, são paixões novas que não
existiam na Antiguidade; o amor...
O conhecimento prático da Filosofia faz do filósofo um homem que deve se
comprometer até o fim, pura e simplesmente porque já está comprometido e deve,
assim, responder, em cada caso, diante de todos por sua filosofia como por seus
atos. Uma noção que, no marxismo foi um pouco escamoteada pela idéia da
realização da Filosofia.
... se a Filosofia é prática, se ela representa efetivamente um
encaminhamento da ação e do pensamento e uma transformação do homem, ela deve,
diz Marx, realizar-se; realizar-se, isto é, tornar-se mundo. O que ela diz tem
de se tornar o que é. Ela faz ao mesmo tempo em que diz. Virá, portanto, o
momento em que o tornar-se mundo da Filosofia será a um só tempo a realização
total da Filosofia e seu desaparecimento, pois não haverá mais lugar para a
Filosofia, visto que haverá um mundo de homens .
E quando Sartre observa: “Estava convencido de que o futuro me impelia
para a frente”, não deixemos de observar, de um lado, que esta convicção se
opõe à clássica lição dos “adultos”, segundo a qual o passado é que nos
“impulsiona”; por outro lado, a procura da salvação pessoal foi nele, muito
cedo, ligada à exigência de um certo esforço sobre si mesmo.
A consciência busca o tempo já vivido, mas ao mesmo tempo o percebe como
antecipação do futuro. A consciência é, ao mesmo tempo, memória do passado e
antecipação do futuro, memória e profecia, retrospectiva e prospectiva. Essa
dialética é possível porque o homem é vontade de ser sempre mais e de valer
cada vez mais.
Diante do futuro, a consciência se torna desejo, esperança, projeto. O
passado se transforma em energia em vista do futuro; o homem pro-jeta, isto é,
se lança para a frente e assim se constrói. O futuro é o homem em estado de
projeto. A esse respeito, E. Dardel observa com razão que o futuro precede o
presente. É em verdade a partir do futuro que o homem se constrói, porque no
futuro se abre o leque de suas possibilidades; ele apresenta-se não para
permanecer por-vir, mas para se tornar presente.
Na segunda parte da Conferência de Araraquara, Sartre nos fala da
antropologia histórica. O que ele entende por ela? A antropologia histórica
consiste em estudar o homem na medida em que é modificado pelas circunstâncias,
e, modificado por elas, as modifica por sua vez. Nas palavras de Marx: o homem,
feito pela história, faz a história, na mesma medida em que é feito por ela.
Sartre admite que haja um diacronismo nestas duas características da
Antropologia. Lida-se com um homem que não
(...) pode ser compreendido a não ser através de um processo, isto é,
através de um conjunto em parte de momentos datados, dados, e que chega até o
momento em que consideramos a pessoa .
Em Marx existe a contradição entre os dois termos. Contradição. Está-se
falando dialética e, por conseguinte, não pretende Sartre com isso fazer
objeção a Marx. Em dizendo de contradição, pensa em uma oposição verdadeira,
pois em Marx há os dois sentidos. A antropologia é estrutural, pois afinal é
nas estruturas do capitalismo que Marx deu sua descrição. O processo do
capital. De qualquer maneira, é um sistema no qual a história é definida pelas
estruturas, as estruturas da produção, as estruturas das relações de
apropriação. “O conjunto dessas coisas constitui uma sociedade”.
... a noção de projeto, a noção que nos conduzia aos limites do terreno
da liberdade e algumas outras noções semelhantes, nos remetem a esta idéia de
desarraigamento do presente. Ao fato de que somos objetos, mas sempre
ultrapassamos o objeto. Ela os conduz, em suma a uma realidade prática do
homem, onde existir e fazer-se são uma só e mesma coisa e esta realidade
prática, que nela mesma escapa à ciência embora a fundamente, é justamente o
que a ideologia da existência se propõe a estudar .
Arlette Elkaim, a jovem judia de Constantine que Sartre escolheu, no
meio dos anos sessenta, para surpresa geral: o homem que nunca se casara; nunca
jamais quisera filhos; por quê, então, essa moça: de onde essa eleição?
sente-se em dívida com ela? qual dívida? que contas paga com esse gesto? o que
ela encarna em sua economia libidinal e simbólica? o judaísmo, justamente? um
incesto bem sucedido? .
John Gerassi, que tratava com Sartre, há vários anos, outras conversas,
e se via bastante bem o papel de interlocutor oficial, ou memorialista,
ultrapassa os limites do ignóbil e vai dizer em alto e bom som o que os outros
talvez mal ousassem pensar em segredo: Benny Lévy “Um chefete de guerra
fanático”; “um judeu egípcio”, inclusive “não-francês” que, ao cabo de uma
“diabólica manipulação”, certamente forçou um Sartre enfraquecido, não dispondo
mais de suas faculdades, a “reescrever de cabo a rabo” sua própria história,
inventando imaginárias “raízes judaicas”; uma espécie de “mentor” que, “tornado
rabino e talmudista”, teria enjudeuzado esse espírito livre, esse voltairiano.
Ora, a passagem do futuro para o presente se efetua por meio da opção,
da escolha, da decisão e, finalmente, da execução. Na opção, o homem assume uma
das possibilidades de seu futuro, enquanto pela ação ele se realiza: ele se faz
presente a uma das promessas de futuro que a ele se ofereciam. Intenção e ação
estão entrelaçadas.
Há um texto, afinal, por trás disso tudo. Um texto de verdade. E desse
texto, queira-se ou não, pensado por Sartre, é extraordinário que todos os que
hoje, como ontem, denunciam a manipulação, a traição, a malversação, todos os
que sufocam de raiva com a idéia do judeuzinho egípcio, Benny Lévy, ter levado
um dos maiores filósofos franceses a abjurar a verdadeira fé para abraçar a da
Bíblia, não se tenham preocupado em saber o que, ao certo, ele dizia.
Pouvoir et liberté é um texto imperfeito e, sob muitos aspectos,
prematuro. E é um texto que, de fato, antes de cantar a glória da filosofia
judaica, joga por terra faces inteiras do sistema sartreano, com selvageria.
Não é um exercício de autopunição, uma terra arrasada – um velho escritor em
agonia, caprichoso, ciumento das suas criaturas: “... não basta morrer, meu
sistema morre comigo! Maldita seja minha filosofia se me sobreviver”.
“O essencial não é o que se fez do homem, mas o que ele faz do que
fizeram dele”, diz-nos Sartre. O que fizeram do homem são as estruturas, os
conjuntos significantes que as ciências humanas estudam. O que ele faz é a
própria história, a superação real dessas estruturas numa práxis totalizadora.
A filosofia situa-se nessa charneira. A práxis é, no seu movimento, uma
totalização completa, mas ela nunca atinge mais do que totalizações parciais,
que seriam, por seu turno, ultrapassadas. “O filósofo é o que tenta pensar esta
superação”.
Defrontam-se em Sartre o Filósofo e o comediante. Todo filósofo torna-se
necessariamente comediante: pois que a lucidez, para poder atingir as
consciências mistificadas (a liberdade para poder atingir as consciências
servis) deve-se tornar primeiro prestigiosa e dominadora (Sócrates representa
seu interlocutor, manobra-o, condú-lo insidiosamente a descobrir a verdade nele
próprio, e os diálogos de Platão são truques maravilhosos).
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 30 de novembro de 2016)
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