**FERNANDO PESSOA: A FICÇÃO HETERONÍMICA** - Manoel Ferreira
Desde cedo, Fernando Pessoa inventara seus
companheiros de jornada arte e vida adentros. Ainda em Durban, imagina os
heterônimos Charles Robert Anon e H. M. F. Lecher. Cria também o especialista
em palavras cruzadas Alexander Search e outras figuras menores. Mas seria no
dia 8 de março de 1914 que os heterônimos começariam a aparecer com toda a
força. Neste dia, Pessoa escreve, de uma só vez, os 49 poemas de O Guardador de
Rebanhos, de Alberto Caeiro. Como resposta, escreve também os seis poemas de
Chuva Oblíqua, que assina com seu próprio nome. Logo, inventaria Álvaro de
Campos e, em junho do mesmo ano, Ricardo Reis. Um semi-heterônimo de Pessoa,
Bernardo Soares, só em 1982 teve sua obra, O Livro do Desassossego, composta
por fragmentos de prosa poética, publicada.
Por que Pessoa se multiplicou? Abarcar esse
questionamento, tendo em vista a obra em sua profundidade, não é simples como
se possa pensar. Exige in-vestigações várias. Contudo, tomando em consideração,
psicanaliticamente dizendo, a “manque-d`être”, a “falta-de-ser”, Pessoa teve de
multiplicar-se por falta de um ego que carregasse o excesso de desejo. Nele, as
pulsões estavam sem suporte subjetivo; como forças que são, as pulsões exigiram
vazão e, ao abrirem-se as comportas, criaram não um, mas vários suportes. Por
serem vários e “reais” (filhos de múltiplos desejos), os suportes escaparam ao
ego, assumiram claramente sua condição de héteros, de comutadores alternantes.
O sujeito não desapareceu, mas pôs-se a circular como significância entre um
heterônimo e outro, o próprio ortônimo reconhecendo sua condição ortopédica de
suporte alternativo (que não se distingue, portanto, da condição de
heterônimos). A ficção heteronímica preenche o vazio, não pelo uno e pleno da
“personalidade” imaginária, mas pelo múltiplo heterogêneo em processo circular
de significância.
Álvaro de Campos e Ricardo Reis, assim como o
próprio Pessoa, consideravam-se discípulos de Alberto Caeiro, mas cada um
seguiu os ensinamentos do mestre à sua forma, e chegaram até a travar uma
polêmica muito interessante sobre o fazer poético.
A última frase de Fernando Pessoa foi escrita em
inglês no dia de sua morte:
“I know not what tomorrow will bring” ou “Eu não
sei o que o amanhã trará”
O amanhã trouxe para Fernando Pessoa uma admiração
crescente. Suas obras foram aos poucos sendo publicadas e ele é considerado
hoje, ao lado de Camões, um dos dois maiores poetas portugueses de todos os
tempos. Nenhum poeta, em língua portuguesa, obteve tanto prestígio em todo o
mundo. O obscuro e modesto lisboeta tornou-se, assim, um nome importante em
todo o mundo. Graças ao poder da palavra. Graças à magia da poesia.
Mais do que meros pseudônimos, outros nomes com os
quais um autor assina sua obra, os heterônimos são invenções de personagens
completos, que têm uma biografia própria, estilos literários diferenciados, e
que produzem uma obra paralela à do seu criador. Fernando Pessoa criou várias
dessas personagens. Três deles foram excelentes poetas e seus poemas estão
nesta antologia, lado a lado com os que Pessoa assinava com seu próprio nome.
Os estudiosos seguem discutindo por que Pessoa teria criado seus heterônimos.
Seria esquizofrenia? Psicografia? Uma grande piada? Um genial jogo de marketing
poético? De certo, sabemos que a genialidade de Fernando Pessoa é grande demais
para caber em um só poeta. Como bem o sintetizou o seu heterônimo mais
atribulado, Álvaro de Campos:
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como
várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente
atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Fernando Pessoa viveu durante os primórdios do
Modernismo, uma época em que a arte se fragmentava em várias tendências
simultâneas, as chamadas Vanguardas: Futurismo, Cubismo, Expressionismo,
Dadaísmo, Surrealismo e muitas outras.
A arte, no momento da explosão das inúmeras
vanguardas modernistas por todo
o mundo, também se dividia e se multiplicava.
Fernando Pessoa, introdutor das
vanguardas modernistas em Portugal, ao se dividir,
levou a fragmentação da
arte moderna às últimas conseqüências.
O que caracteriza o poeta moderno é a consciência
de uma despersonalização substancial, inerente a seu ofício, da perda fatal do
Eu na linguagem. “Eu é um outro”, escrevia Rimbaud, anunciando a modernidade. A
linguagem foi deixando de ser experimentada como instrumento, mediação,
representação da presença, para ser encarada como “falta-de-ser”.
ALBERTO CAEIRO
Fernando Pessoa traçou, compôs e explicou em
pormenores a “vida” de cada um de seus heterônimos. Assim apresenta a vida do
mestre de todos, Alberto Caeiro:
Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida
no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma, só instrução primária;
morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns
pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso.
Para Pessoa, a busca de uma saída pela via Caeiro
não é apenas mais uma especulação filosófica ou mera experimentação poética,
mas uma questão de sobrevivência: saúde e salvação. Sofrendo agudamente da
doença ocidental, debatendo-se na busca de um “eu profundo” que quanto mais se
busca mais se perde – porquanto o pensamento se volta, afiado e aniquilador,
contra o próprio ser pensante – Pessoa foi ao extremo desse descaminho, até o
ponto em que essa doença toma o nome de loucura, paralisa e mata.
A irrupção de Caeiro, como mestre de vida e de
poesia, é a busca de uma saída-saúde. Seu Paganismo Absoluto é um
anticristianismo: contra “esta endurecida e secular mentira do monoteísmo
humanitário que caracteriza o cristianismo”. É a recusa de toda uma história do
sentir x pensar que culminou, segundo Ricardo Reis, nos “degenerados filhos da
civilização cristã, indiferentes por doença e por fastio”.
Pessoa cria uma biografia para Caeiro que se
encaixa com perfeição à sua poesia, como podemos observar nos 49 poemas da
série O guardador de rebanhos, incluída por inteiro nesta antologia. Segundo
Pessoa, foram escritos na noite de 8 de março de 1914, de um só fôlego, sem
interrupções. Esse processo criativo espontâneo traduz exatamente a busca
fundamental de Alberto Caeiro: completa naturalidade.
“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar...”
Caeiro escreve com a linguagem simples e o
vocabulário limitado de um poeta camponês pouco ilustrado. Pratica o realismo
sensorial, numa atitude de rejeição às elucubrações da poesia simbolista.
Propõe uma espécie de filosofia; porém, ao avesso dos sistemas filosóficos de
nossa tradição, despreza a razão e o intelecto, desconfia das explicações
totalizantes. Promete, como nas religiões, uma harmonia, união, a paz interior
e a libertação. Caieiro consola como quem conhece o mal, sua obra “é um repouso
e um livramento, um refúgio e uma libertação”.
Assim, constantemente opõe à metafísica o desejo de
não pensar. Faz da oposição à reflexão a matéria básica das suas reflexões.
Esse paradoxo aproxima-o da atitude zen-budista de pensar para não pensar,
desejar não desejar:
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz
pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?
Caeiro coloca-se, portanto, como inimigo do
misticismo, que pretende ver “mistérios” por trás de todas as coisas. Busca
precisamente o contrário: ver as coisas como elas são, sem refletir sobre elas
e sem atribuir a elas significados ou sentimentos humanos:
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores
sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas,
não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É importante lembrar que os poetas simbolistas, que
antecederam Fernando Pessoa, estavam impregnados de forte misticismo, herdado
da poesia romântica. Enquanto românticos e simbolistas carregavam seus poemas
de religiosidade, Alberto Caeiro procura, de forma coerente e lógica,
afastar-se da reflexão sobre Deus.
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...
Seguindo esta linha de pensamento religioso, Caeiro
escreve um poema muito ousado sobre o menino Jesus. No poema VIII de O
Guardador de Rebanhos, destituído de santidade, Cristo é representado como uma
criança normal: espontânea, levada, brincalhona e alegre. Nisso, está a
religiosidade de Caeiro. O que Caeiro recusa é fundamentalmente o cristianismo.
Todo o seu saber se resume à natureza e á vida cotidiana do Ribatejo, à
simbologia cristã (que ele usa subvertendo) e a um auto-conhecimento obstinado.
Em perfeita consonância com sua busca de
simplicidade e espontaneidade, Alberto Caeiro escreve versos livres (sem
métrica regular) e brancos (sem rimas).
RICARDO REIS
Se Alberto Caeiro era um camponês autodidata
desprovido de erudição, seu discípulo Ricardo Reis era um erudito que insistia
na defesa dos valores tradicionais, tanto na literatura quanto na política. De
acordo com Pessoa:
Ricardo Reis nasceu no Porto. Educado em colégio de
jesuítas, é médico e vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se
espontaneamente por ser monárquico. É latinista por educação alheia, e um
semi-helenista por educação própria.
Ricardo Reis não pergunta “quem sou?” mas “quem
somos”, o que introduz uma grande diferença. Sabendo que nunca terá resposta à
primeira pergunta (“Sim, sei bem/Que nunca serei alguém (...)/ Que nunca
saberia de mim”), encontra certo consolo na generalização filosófica: “Quem nos
conhece, amigo, tais quais fomos?/ Nem nós os conhecemos”. Ricardo Reis tenta
reduzir o vazio subjetivo ao “nada” da condição humana em geral, numa
racionalização que dói menos do que o sentir individual. Distanciado, altivo,
Reis é a ficção da renúncia: “Nada nos falta, porque nada somos. / Não
esperamos nada / e temos frio ao sol”. A renúncia de Reis não é a desistência
de Fernando Pessoa “ele mesmo”; ao contrário da desistência, a renúnica é uma
farsa de vitória, pelo distanciamento voluntário da razão filosófica.
Em nenhum dos heterônimos é tão constante, como em
Reis, a referência ao tempo que passa; mas a conseqüência dessa reflexão não é
o “carpe diem” horaciano (os prazeres de Reis são congelados); é a aceitação
tristíssima e orgulhosa (por saber, e por saber que sabe), de que somos nada
porque tudo caminha para o nada. Em Reis, o desejo é mantido no grau zero:
“Nada quero”, que é um “não quero querer”, lido pela psicanálise como apenas
uma forma do desejo.
Discípulo de Caeiro, Reis retoma o fascínio do mestre
pela natureza pelo viés do neoclassicismo. Insiste nos clichês árcades do Locus
Amoenus (local ameno) e do Carpe Diem (aproveitar o momento).
Neoclássico, Reis busca o equilíbrio, a "Aurea
Mediocritas" (equilíbrio de ouro) tão prezada pelos poetas do século
XVIII. A busca da espontaneidade de Caeiro transforma-se em Reis, na procura do
equilíbrio contido dos clássicos. Deixa de ser uma simplicidade natural e passa
a ser estudada, forjada através do intelecto:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim como em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
A linguagem de Ricardo Reis é clássica. Usa um
vocabulário erudito e, muito apropriadamente, seus poemas são metrificados e
apresentam uma sintaxe rebuscada. Os poemas de Reis são odes, poemas líricos de
tom alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de cítaras ou flautas,
em estrofes regulares e variáveis. Nelas, convida pastoras como Lídia, Neera ou
Cloe para desfrutar de prazeres contemplativos e regrados:
Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos, retiremos do horto mundo
Os deprendandos pomos.
As odes de Reis, como as de Píndaro, recorrem
sempre aos deuses da mitologia grega. Este paganismo, de caráter erudito,
afasta-se da convicção de Alberto Caeiro de que não se deve pensar em Deus.
Para Ricardo Reis, os deuses estão acima de tudo e controlam o destino dos
homens:
Acima da verdade estão os deuses.
Nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
ÁLVARO DE CAMPOS
Fernando Pessoa nos informa que Álvaro de Campos:
Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de
Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica
e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o
Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade.
Como normalmente acontece com os poetas de carne e
osso, o heterônimo Álvaro de Campos apresenta três fases distintas em sua
poesia. De início é influenciado pelo decadentismo simbolista, depois pelo
futurismo e por fim, amargurado, escreve poemas pessimistas e desiludidos.
Álvaro de Campos é o ego no paradoxo de suas
contradições, implodido pelas pulsões, solto no delírio. O primeiro poema de
Álvaro de Campos é sobre o eu e sua auto-ignorância: “Quando olho para mim não
me percebo (....) / Nem sei se sou eu que em mim sente”. Mas, ao invés de angustiar-se
como o ortônimo, ou sublimar-se como Ricardo Reis, esse ego histérico se acha
interessantíssimo: “Se ao menos eu por fora fosse tão / Interessante como sou
por dentro!”. Histriônico, mutante, ávido, quer “sentir tudo de todas as
maneiras” e “viver tudo de todos os lados”, até extravasar-se, ser todos e
tudo.
Mas Álvaro de Campos não consegue (quem o
conseguiria, salvo na psicose?) viver indefinidamente no ritmo desenfreado da
Ode marítima, nos “urros”, “zurros” e “pinotes” da Saudação a Walt Whitman. A
multiplicidade pode ser exaltante nos “ataques” teatrais do sujeito implodido,
mas depois da exaltação vem a depressão, vem o momento de depor a máscara e
verificar que o “tudo” não se alcança. Álvaro de Campos é apenas a ficção da
loucura. Vem a Noite antiqüíssima, e ele lhe pede cuidados maternais. Sentado,
enfim, ante a tabacaria, o enfant terrible enfrenta corajosamente o “nada” que
é. Álvaro de Campos, o mais louco dos eus de Pessoa, é o mais lúcido: “E eu,
por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém”. E por ser o mais lúcido,
é o mais irônico: “Sou eu mesmo, que remédio!...”
Álvaro de Campos não se defende como Fernando
Pessoa “ele mesmo”, sabe que não pode ser conciliado como Caeiro-corpo nem
distanciado como Reis-razão. Ele é a ficção mais rica de Pessoa, porque nele o
Poeta deixou as contradições às soltas, em processo – Campos é o único que
passa por diferentes “fases”, que muda. Nele, a ficção se afirma como forma de
conhecimento: “Fingir é conhecer-se”.
No poema Opiário, o engenheiro Campos, influenciado
pelo simbolismo, ainda metrifica e rima. Escreve quadras, estrofes de quatro
versos, de teor autobiográfico e já se apresenta amargurado e insatisfeito:
Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmolas às portas da alegria.
Campos, em seguida, envereda-se pelo futurismo,
adotando estilo febril, entre as máquinas e a agitação da cidade, do que
resultam poemas como Ode Triunfal:
À dolorosa luz das lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza
disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos
antigos.
Desta fase são também a Ode marítima e a Saudação a
Walt Whitman. Homenageando o grande escritor norte-americano, Campos, além de
se referir ao conhecido homossexualismo de Whitman, de que parece comungar,
revela uma das mais fortes influências sobre o seu estilo:
Os poemas de Álvaro de Campos são marcados pela
oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da
prosa. Despreza a rima ou métrica regular. Despeja seus versos em torrentes de
incontrolável desabafo.
A última fase do heterônimo Álvaro de Campos, em
que pontifica o poema Tabacaria , apresenta um poeta amargurado, refletindo de
forma pessimista e desiludida sobre a existência:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do
mundo.
Assim como Ricardo Reis, também Álvaro de Campos
confessa-se discípulo de Alberto Caeiro. Mas se Reis envereda pelo
neoclassicismo ao tentar imitar o mestre, Campos se revela inquieto e frustrado
por não conseguir seguir os preceitos de Caeiro. No poema que se inicia pelo
verso "Mestre, meu mestre querido", dialoga com Caeiro, revelando
toda sua angústia:
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua
serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
(...)
A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
FERNANDO PESSOA, ELE MESMO
O Pessoa conceitual, oximórico, fabulosamente
inteligente, é o que provoca nossa admiração. Mas deste nos desapegaríamos,
como nos desapegamos de toda inteligência fria, se não houvesse o outro: um
outro que é um corpo habitado de afetos, tão mais intensos quanto mais
contidos, contrariados ou mesmo ocultados. O Pessoa abstrato, o “projetado no
écran”, aquele que quase se desvai como um fantasma, tem no entanto um lastro:
“Aquele peso em mim – meu coração”.
O efeito, em nós, do transbordamento pessoano, é
tanto mais intenso quanto mais o sentimos raro, involuntário e absolutamente
irrepressível. Aquilo que no indivíduo Pessoa era um traço de personalidade – a
contenção “britânica”, que foi a forma social de seu recalque – torna-se assim,
em sua poesia, um valor estético. Numa língua como a portuguesa, que se tem
prestado, literariamente, a tantos derramamentos sentimentais, a tantos
lamentos pegajosos, a tantas rimas com “coração”, a discrição pessoana é uma novidade
e uma lição. Em Pessoa, o traço de ternura (tão tradicionalmente lusitano que
se cristalizou numa odiosa ideologia do sentimentalismo, herdada pelos
brasileiros) ganha um valor extremo, por se tratar de uma ternura real, mas
não-exibicionista, uma força extraordinária por seu pudico dizer, e uma
autenticidade nova.
Através dessa obra, que pode ser lida como uma
vasta in-vestigação sobre o “ser e o nada”, mil marcas estão dispersas, como
pedrinhas deixadas para a reconstituição de um outro percurso: o percurso de um
corpo. Pessoa não é só um pensamento; é sobretudo um canto, melodia e ritmo que
são os rastros de um corpo desejante – poesia.
Na poesia de Pessoa está inscrita uma história de
afetos represados. O corpo de Pessoa é o de um morto-vivo: “Sepulto vive quem é
a outrem dado / E quem ao outrem que há em si, sepulto / Não poderei Senhor,
alguma vez / Desalgemar de mim as minhas mãos?” Um longo trabalho de recalque
quase conseguiu a eliminação do sentir: “Não, durmo, jazo, cadáver acordado,
sentindo / E o meu sewntimento é um pensamento vazio”. “Parado enigma”, esse
corpo vivia sua “vida sentada, estática, regrada e revista”.
A obra que Fernando Pessoa assinou com seu próprio
nome está reunida nos volumes Cancioneiro e Mensagem.
O Cancioneiro é composto por poemas líricos,
rimados e metrificados,
de forte influência simbolista. É do Cancioneiro um
dos poemas mais célebres de Pessoa, Autopsicografia, em que reflete sobre o
fazer poético:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
O leitor atento há de perceber que o poeta parte de
uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode fingir outra que não
sente. Só quem tem personalidade pode ser ator. Como Fernando Pessoa. Já os
leitores, lêem no poema a dor ou o sentimento que lhes falta e que gostariam de
ter. Sentem-na ao atribuí-la a poeta.
Mensagem (1934) foi o único livro em língua
portuguesa publicado por Pessoa.
Os poemas do livro estão organizados de forma a
compor uma epopéia fragmentária, em que o conjunto dos textos líricos acaba
formando um elogio de teor épico a Portugal. Traçando a história do seu país,
Pessoa envereda por um nacionalismo místico de caráter sebastianista.
O livro Mensagem está dividido em três partes:
Brasão, Mar português e O Encoberto.
Na primeira, conta-se a história das glórias
portuguesas. Na segunda, são apresentadas as navegações e conquistas marítimas
de Portugal. Na terceira, é apresentado o mito sebastianista de retorno de
Portugal às épocas de glória.
A primeira parte de Mensagem, Brasão, se estrutura
como o brasão português, que é formado por dois campos: um apresenta sete
castelos, o outro, cinco quinas. No topo do brasão, estão a coroa e o timbre,
que apresenta o grifo, animal mitológico que tem cabeça de leão e asas de
águia. Assim se dividem os poemas desta parte, remetendo ao brasão de Portugal.
Versam sobre as grandes figuras da história de Portugal, desde Dom Henrique,
fundador do Condado Portucalenses, passando por sua esposa, Dona Tareja, e seu
filho, primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques, até o infante Dom
Henrique (1394-1460), fundador da Escola de Sagres e grande fomentador da
expansão ultramarina portuguesa, e Afonso de Albuquerque (1462-1515), dominador
português do Oriente. Até o mito de Ulisses, que teria fundado a cidade de
Ulissepona, depois Lisboa, é apresentado:
O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo.
A segunda parte, Mar português, apresenta as
principais etapas da expansão ultramarina que levou Portugal a ocupar um lugar
de destaque no mundo durante os séculos XV e XVI:
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
Já a última parte, O Encoberto, apresenta o misticismo
em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Portugal cuja frota foi dizimada em
ataque aos mouros em 1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a
do padre Antônio Vieira, prevêem o retorno de Dom Sebastião para resgatar o
poderio de Portugal, criando o Quinto Império, marcando a supremacia de
Portugal sobre o mundo:
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa, os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu dom Sebastião?
Sua obra não é só a de uma inteligência, de um
pensamento, mas também a de um coração, “baço mas não frio”. Pessoa não é um
pensador, um filósofo, um teorizador da questão do sujeito, pleno ou vazio.
Pessoa sentiu essas questões como um corpo que foi seu e, como todo Poeta, o
que ele nos doa generosamente não são pensamentos, mas um corpo disperso em
ritmos, que nosso próprio corpo reconhece e partilha numa “relação anímica”. Um
corpo que, para ser partilhado, precisou renunciar ao ego e tornar-se um puro lugar
do sentir.
Na existência, essa renúncia ao ego custou-lhe uma
renúncia ao amor particular, individualizado: “pobre (...) do que, sendo rico e
nobre / Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo”. Esse
“casaco bom” seria justamente a assunção de um sujeito individual, que se
adequasse a um objeto particular de amor. Como diz Jacques Lacan: “o eu é como
a superposição de diferentes casacos emprestados ao que chamarei de bric-à´brac
de sua loja de acessórios” Por não ter casaco bom na vida, Pessoa teceu não um,
mas vários, em versos maiores do que a vida. E todos esses casacos foram meios
de doar um Amor nu, essencial porque impessoal.
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 28 de novembro de 2016)
Comentários
Postar um comentário