**ATEISMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO** - Manoel Ferreira
DEUS ESTÁ MORTO
O problema de Deus, como podemos analisar, desde a
Filosofia Antiga, com os pré-socráticos, é perene, permeia desde épocas remotas
e não cessa de movimentar nossa consciência hoje, não cessará de fazê-lo por
toda eternidade. Dizia Kant que o conceito de Deus é o mais complicado de
compreender; todavia, ele é inevitável para a razão especulativa humana.
Pretendemos, assim, apresentar a “morte de Deus”
proclamada solenemente por Nietzsche há pouco mais de um século. “Deus está
morto” .
Esta afirmação desencadeia um esboroamento de toda
estrutura montada e sustentada pelo homem desde a Antigüidade. Com ela, temos
um desfacelamento da metafísica tradicional erguida desde Platão, com a
concepção dualista do mundo, visão esta que serviu de sustentáculo para toda a
estrutura do cristianismo que, para Nietzsche, representa o platonismo para o
povo.
A primeira parte de nosso estudo está dedicada, em
linhas gerais, à crítica nietzscheana ao sistema moral vigorante na sociedade,
bem como os delineamentos gerais das conseqüências advindas de toda essa estrutura.
Em princípio, apresentaremos a religião através do
olhar clínico de Nietzsche - “Olhemo-nos nos olhos” - que, tomado, sobretudo,
pelas leituras de Feuerbach, que define a religião como uma projeção humana,
acaba por defini-la como estado doentio do homem, principal responsável pela
sua existência.
O cristianismo necessita da doença, mais ou menos
como a cultura grega necessita de uma abundância de saúde – tornar doente é a
genuína intenção oculta de todo o sistema de procedimentos de salvação da
Igreja .
A crítica de Nietzsche à concepção cristã
revela-nos que, no cristianismo, nem a moral nem a religião estão em contato
com a realidade e que, fundamentalmente, só possui em causas e feitos
imaginários tais como: alma, espírito, livre-arbítrio, pecado, salvação,
castigo, graça e remissão dos pecados. Ou seja, nos dizeres do filósofo, “um
comércio entre seres imaginários ´Deus`, ´espíritos´, ´almas´(Nietzsche, 2000,
p. 48). Para Nietzsche, o cristianismo é uma religião fictícia na qual sua
moral se utiliza de uma linguagem figurada da idiossincrasia religiosa, tendo
como pano de fundo uma teologia imaginária (o reino de Deus, o juízo final e a
vida eterna) e ao mesmo tempo negadora da realidade. Sendo que todo esse mundo
de ficções tem a sua origem no ódio contra o natural, ou seja, contra a
realidade.
Para Nietzsche, o significado da morte de Jesus na
cruz re-presentava de fato o término de todo o esforço completamente original
para um movimento rumo à felicidade; aqui sobre a Terra e não apenas prometida,
baseada na superação do pecado, na negação do abismo criado entre Deus e o
homem, na vida, no ensinamento e no sentido do direito de todo evangélico. A
concepção de que Deus deu o seu filho em sacrifício para remissão dos pecados
da humanidade seria a resposta encontrada para justificar que nada havia
terminado e que o evangelho não se acabaria assim tão facilmente. Desde então,
foi introduzida pouco a pouco, como uma vertente real na tipologia do Salvador
a doutrina do “juízo final”, “da última vinda”, “a doutrina da morte como
sacrifício” e a absurda idéia da “ressurreição” pela qual toda a idéia de
salvação se vê completamente escamoteada em favor de um estado depois da morte.
Por que nossa civilização é um prolongamento
natural do cristianismo, mister sempre levar em conta o princípio hermenêutico
que norteia as análises de Nietzsche, e que ele enuncia em alguns fragmentos
póstumos: é preciso identificar o ideal cristão mesmo ali onde se eliminou
completamente a “forma dogmática’ do cristianismo – como na música, no
romantismo, na natureza de Rosseau ou no socialismo.
É antes de tudo essa separação entre os ideais
cristãos e a forma dogmática da religião que permitirá a Nietzsche reconhecer o
cristianismo até mesmo entre seus supostos opositores, como naquele livre
pensador que repudia a Igreja, mas não o seu veneno. O “cristianismo” que entra
em cena a partir de agora é constituído por um conjunto de ideais
civilizadores, evangelizadores (como é o caso da literatura dostoiévskiana), um
repertório de valores que se mantêm vivos, aquém ou além do dogma religioso.
Partindo da religião, propõe atacar o cristianismo
que não tem semelhança alguma com as atitudes de Cristo. Na verdade, é um modo
formulado pelos apóstolos, sobretudo Paulo, para vingar a morte d´Ele e
expressar a sua hostilidade com a Vida. Sendo assim, nas raízes do
cristianismo, pretende criticar a moral estabelecida, acusando o mesmo de
subjugar o homem a uma potência desconhecida e superior, princípio causador de
tudo, levando o mesmo a posicionar-se diante deste suposto senhor, como
escravo, criatura pobre e medíocre. E, nesta crítica, pretende acabar com a
dicotomia existente desde Platão, descartando, agora, a possibilidade ou
existência de um além-mundo e, conseqüentemente, de uma vida eterna.
Ver como honesto um Paulo que tinha seu lar no
principal centro do iluminismo estóico, quando ele faz de uma alucinação a
prova de que o Redentor ainda vive, ou mesmo dar crédito ao relato de que teve
essa alucinação, seria uma autêntica niaiserie (tolice) por parte de um
psicólogo: Paulo quis os fins, portanto quis também os meios...
Foi Paulo quem introduziu o culto com sacrifícios e
a salvação pela fé, quem falseou a vida e o caráter de Jesus e quem preparou o
terreno para o pleno desenvolvimento do clero e da Igreja, fazendo uma
espantosa amálgama de filosofia grega e judaísmo. Tudo isto era contrário ao
verdadeiro espírito de Jesus.
A crítica religiosa de Nietzsche está intimamente
ligada à concepção de vida e religião. Considerava a vida um valor máximo, por
outro lado, tinha a religião como destruidora da vida, como uma aberração à
mesma. A figura de Cristo em toda a obra dostoiévskiana é o símbolo, arquétipo,
imagem, signo, significante e significado, da construção da vida, a busca da
espiritualidade, a Vida, e Dostoiévski tinha Cristo como o Amor, Compaixão,
Solidariedade Supremos, a redenção e ressurreição é quando o homem vive na
carne e nos ossos, na alma e no espírito a mensagem de Cristo. Nietzsche
desenvolve com crueldade a crítica religiosa. Em dizendo que a religião é
tratada com crueldade, segundo Nietzsche, significa que a religião jamais
conteve uma verdade. A religião não deve vestir-se de ciência, e a ciência não
deve usar de linguagem religiosa onde não mais puder argumentar.
A vida mesma é, para mim, instinto de crescimento,
de duração, de acumulação de forças, de poder, onde falta a vontade de poder,
há declínio. Meu argumento é que a todos os supremos valores da humanidade
falta essa vontade – que valores de declínio, valores niilistas preponderam sob
os nomes mais sagrados .
Conforme Jung, o significado ou o objetivo do
instinto não é inequívoco, porque o instinto pode ocultar um sentido da direção
diferente do biológico, que só se manifesta à medida que se processa o
desenvolvimento. Na esfera psíquica, a vontade influi na função, em virtude de
ela própria ser uma forma de energia que pode dominar ou pelo menos influenciar
outra forma. Nesta esfera, que Jung define como psíquica, a vontade é motivada
pelos instintos – não, porém, de modo absoluto, pois do contrário nem seria
vontade, que, por definição, deve ter certa liberdade de escolha.
A vontade implica uma certa quantidade de energia
que fica livremente à disposição da consciência .
Segundo Nietzsche, a religião não tange uma
necessidade básica no homem, mas é fruto da própria causalidade humana. Surge
em nós decorrente das diferentes tentativas em busca de explicações para as
diversas questões que tocam a existência. Aqui, não nos remetemos tão-só à
questão existencial do homem enquanto tal, mas incluímos todo o mundo
fenomênico.
Essa idéia de religiosidade que o próprio Marx
definia como sendo um “soluço da criatura oprimida, coração de mundo sem
coração, o espírito de uma situação carente de espírito. O ópio do povo” , em
Nietzsche, ganha um estatuto não muito distinto. A religião surge no homem à
medida que transmite sentimentos inexplicáveis como fruto de uma potencialidade
extra-humana, pois “os estados da alma que lhe pareciam estranhos,
arrebatadores, apaixonantes, considerava-os obsessões, encantamentos provocados
pelo poder de alguém” , resultante da percepção de uma potência estranha que se
manifestava nas diversas realizações da vida humana, tida como força causadora.
Desta forma, atribuímos os estados de alma
existentes em nós a esta suposta força que se encontra num além-mundo, num
supra-sensível, chegando ser ela responsável por estas manifestações
arrebatadoras; criamos uma divindade sobrenatural que regula toda a atividade
aqui na terra, personificando-a.
Este sentimento de potência quando envolve o homem,
deixando-o dependente e subjugando-o, leva-o a desacreditar e conformar que
tais sentimentos não são causados por ele, mas por “uma personalidade mais
forte, uma divindade que o substitui” , reguladora de toda a sua atividade no
mundo.
É enraizado nestes pressupostos que começa a
despertar no humano a gênesis religiosa; “nos extremos sentimentos de potências
que surpreendem o homem por seu caráter estranho...” .
Mas, afinal, o que é religião?
[...] é um caso de alteração da personalidade,
espécie de sentimento de terror e de medo diante de si mesmo... Mas, ao mesmo
tempo, extraordinária sensação de felicidade e superioridade...
A religião percebe a presença de Deus nos diversos
acontecimentos; inicialmente como potência criadora, também como causa
intermediária entre o homem e os resultados daquilo que ele almeja atingir,
daquilo que busca realizar, para, enfim, tornar-se o para quê fora vocacionado
desde toda a eternidade. É um Deus que interfere na natureza. Agora, estamos
mergulhados num mundo onde o homem independe da causa, o homem não cria nada,
Deus é o autor de tudo; simplesmente sofremos a ação de uma potência causadora.
A partir deste espírito, o homem foi se definindo
em relação a Deus como criatura, rebaixando todas as suas potencialidades,
tornando-se insignificante frente a esta nova idéia regulativa. Definiu tudo
aquilo que é forte e surpreendente como sendo atributos de Deus; em
contrapartida, o homem é tudo aquilo de fraco e desprezível.
A religião tornou o homem criatura insignificante;
rebaixando-o às mais baixas categorias existentes, substituindo-o por um
sobrenatural que é bom e verdadeiro e que só poderemos chegar até ele pelo que
chamamos de graça .
Pensemos nos conquistadores da Renascença
abandonando a cristandade em busca de um novo mundo; mas também,
simbolicamente, no belíssimo frontispício do Novum organum, de Francis Bacon:
nos limites do mundo então conhecido, além das colunas de Hércules, algumas
caravelas se lançam a um mar encapelado, ao encontro de terras ainda ignoradas.
Esta imagem, que serviu em todo sentido, Nietzsche conseguiu renová-la, ao
impor-nos a absoluta prioridade de sua navegação além das colunas de Hércules
da moral, num mar que não é mais o do amor-próprio, mas da vontade de poder em
pérpetuo devir.
O Deus cristão é apenas uma de suas máscaras e a
“morte de Deus” deve ser compreendendida, antes de tudo, como o fim do
“verdadeiro mundo” instituído por Platão. Em vários de seus textos, Nietzsche
define sua filosofia a partir da idéia de uma “inversão do platonismo”. Desde
então, é daqui que se precisa partir para compreender a relação entre a morte
de Deus e a desvalorização dos valores.
Que é isto – “inverter” o platonismo? Não significa
colocar o platonismo “sobre os seus pés”, como um famoso ortopedista alemão
pensou em fazer com a dialética hegeliana. Sendo apenas assim, o ganho seria
bem magro: enquanto Platão valorizava o supra-sensível e desvalorizava o mundo
sensível, Nietzsche faria apenas uma mudança de sinal, mantendo uma hierarquia
que já é platônica.
A oposição – diz Nietzsche - entre o mundo
aparência e o mundo-verdade se reduz à oposição entre o mundo e o nada .
Nesse sentido, “inverter” o platonismo não é inverter
a hierarquia platônica e declarar amor ao mundo sensível. Mas, então, inverter
o platonismo seria recusar o dualismo ontológico? Se decapitamos o “verdadeiro
mundo”, sobre o mundo-aparência, e talvez permaneçamos platônicos desgostosos,
por não termos mais o mundo ideal.
Augusto Comte, depois de uma célebre refutação da
psicologia do espiritualismo eclético, acrescenta enfim às seis ciências
fundamentais uma sétima ciência do indivíduo humano, que ele denomina
significativamente de “moral”. Desenredemos aqui a extraordinária complexidade
das expressões que cercam uma psicologia que se pretende radicalmente nova: o
título de “rainha das ciências”, que lhe foi atribuído, pertence
tradicionalmente à filosofia; as ciências são suas servas como a filosofia
medieval pretendia ser a serva da teologia. Mas ela não implica nenhum
“sacrifício” da inteligência à fé, nenhum rebaixamento pascaliano da razão
diante do “coração”.
A moral de senhores nasce de uma consideração de si
mesmo, de um sim que o senhor dirige a si mesmo. Seu modo de valoração “age e
cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer sim a si mesmo ainda
com maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, o “comum”,
“ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao
conceito básico positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os
nobres, nós, os bons, os belos, os felizes” .
Nesse nível de análise nietzscheana, a oposição
entre senhor e escravo não se resume a uma diferença de valores, mas se traduz
também por dois momentos distintos de reconhecimento: o senhor reconhece a si
mesmo, enquanto o escravo, para reconhecer-se, precisa passar antes pela
mediação de seu oposto, o senhor.
A relação que Nietzsche estabelece entre senhor e
escravo nunca se confundirá com sua homônima hegeliana, ali na Fenomenologia do
espírito. O senhor hegeliano traz as marcas do escravo de Nietzsche, enquanto
ele é uma consciência que está em relação consigo mesmo apenas pela mediação de
seu outro. A dialética do senhor e do escravo consistira essencialmente em
mostrar que o senhor se revela em sua verdade como o escravo do escravo, o
escravo como o senhor do senhor. Como nota Hyppolyte, através disso a
desigualdade presente na forma unilateral do reconhecimento é ultrapassada, e a
igualdade é restabelecida. Se na dialética, como sempre, a oposição se revela
aparente, o senhor e o escravo de Nietzsche permanecem opostos tanto no modo de
reconhecimento quanto nos valores morais.
Como nota Hannah Arendt, o livre-arbítrio era uma
faculdade virtualmente desconhecida para a Antiguidade clássica e foi somente
com o cristianismo, com Agostinho, que a liberdade desprendeu-se de seu domínio
original, a vida política, para transformar-se em um fenômeno da vontade .
Nietzsche não nutria nenhuma simpatia pelo
“livre-arbítrio e o apresentava como um artifício, inventado pelos teólogos,
para tornar a humanidade “responsável” pelos seus atos. O sacerdote busca
responsabilidades para poder castigar e julgar, a teoria da vontade livre foi
inventada tendo em vista o castigo, por uma vontade de encontrar culpados. Para
que os homens pudessem ser culpáveis, era preciso imaginar que toda ação é
querida, que a origem de toda ação se encontra na consciência, no
livre-arbítrio.
Seja qual for a lucidez terrível de um La
Rochefoucauld ou de um Pascal, ela permanece tributária dos valores morais e
religiosos, e Nietzsche evoca “a fé de pascal que se assemelha de modo terrível
a um contínuo suicídio da razão” . Convém notar o protesto de Nietzsche antes
de tachar, como se fez muitas vezes, seu pensamento de irracionalismo!
O homem ainda não se deu conta de que possui um
sistema neurológico, aliás, poucos detêm tal conhecimento. Nietzsche não admite
no homem a existência de uma alma, mas tão somente um sistema nervoso que
integra todo o aspecto fisiológico.
Este mesmo homem acredita que os maus estados da
alma, como doença, enfraquecimento, pobreza são decorrentes de hesitação,
pecados, autocríticas. Para que o sofrimento oculto, não descoberto, não
testemunhado, pudesse ser abolido do mundo e honestamente negado, o homem se
viu então praticamente obrigado a inventar deuses e seres intermediários para
todos os céus e abismos, algo, em suma, que, também, vagueia no oculto, que,
também, vê no escuro, e que não dispensa facilmente um espetáculo interessante
de dor.
É do procedimento contrário que se origina a moral
de escravo, que nasce de uma consideração do outro, de um não dirigido ao
outro.
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante
Sim a si mesmo, já de início a moral escrava diz Não a um ´fora´, a um ´outro´,
um ´não eu´- e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que
estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, ao invés de
voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre
requer, para nascer, um mundo oposto exterior, falando fisiologicamente, requer
estímulos exteriores para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.
Todavia, nem sempre permanecemos em um dado estado
por toda a vida, após a tempestade vem sempre a bonança e, após muito
sofrimento e esgotamento, o homem se reergue, como uma fênix , e pergunta a/em
si mesmo: “como é possível que eu seja tão livre, tão libertado? É um milagre.
Só Deus podia fazê-lo por mim” .
Colocamos o nosso corpo em estado doentio e
atribuímos tal aparato aos próprios erros cometidos e, quando superamos esta
enfermidade, apontamos Deus como força interventora que agiu de maneira a
libertar-nos, perdoar-nos. Então, o homem se redime diante desta potência
estranha e passa a viver não por si, mas em conformidade com ela. A humanidade
viveu, até então, de práticas puramente psicológicas e religiosas, todavia “não
se cura um doente com preces e conjurações de maus espíritos” , eles não
inspiram confiança alguma.
Não se curar um doente com preces e conjurações de
maus espíritos é ironia sem precedentes – e Nietzsche, quando queria, sabia ser
irônico -, mas procurar servir-se da doença, como de mais um meio para agarrar
a vida, aí é sarcasmo dos mais geniais possíveis. É de se conservar sério,
caindo na gargalhada.
Se é normal a condição doentia do homem – e não há
como contestar essa normalidade -, tanto mais deveriam ser reverenciados os
casos raros de pujança da alma e do corpo, os acasos felizes do homem, tanto
mais deveriam ser os bem logrados protegidos do ar ruim, do ar de doentes. Isso
é feito?... Os doentes são o maior perigo para os sãos; não é dos mais fortes
que vem o infortúnio dos fortes, e sim dos mais fracos .
A inveja, por exemplo... Ninguém irá sentir inveja
de alguém vencido, fracassado, frustrado, traumatizado, inútil; sente do
vencedor, do realizado, do consciente e lúcido, do útil. O invejoso não sente
inveja do invejoso, eles são absolutamente iguais? Cremos só haver um modo de um
vencido, fracassado, traumatizado, inútil, sentir inveja de outro nas mesmas
circunstâncias: quando o fracasso de um for mais pujante, total. O próprio
Nietzsche diz que não se deve desejar filhos para um invejoso. Ele sempre terá
inveja do filho por não mais poder ser criança. Seguindo esta linha de
raciocínio, a criança também terá inveja, fruto da influência advinda da
convivência, do pai por não poder ser adulto, e adulto, terá inveja do pai por
ele ser velho, e velho terá ainda inveja dele por já haver morrido. Seria o
caso de o invejoso correr? De qualquer forma, os que lhe desejam estarão atrás
dele, pois que corre à frente, assim são os “animais de rebanho”.
Nessa expressão “animal de rebanho” Nietzsche visa
atacar o igualitarismo, o elogio à supressão das particularidades e à perfeita
absorção do indivíduo naquele “ser genérico” que povoa o imaginário socialista.
O enfraquecimento e a supressão do individuo está
entre as últimas “ressonâncias” do cristianismo na moral. Esta “correnteza
moral básica” de nossa época é expressamente censurada por Nietzsche. Exigir
que o Ego se renegue? Desde as Considerações extemporâneas, ele protestava
contra o culto democrático da espécie. E pior que o culto da espécie, a
ladainha secular contra o egoísmo, em benefício dos instintos gregários do
homem, terminou por fazer mal a esse sentimento, principalmente por tê-lo
despojado de sua boa consciência, ordenando-lhe que buscasse, em si mesmo, a
verdadeira fonte de todos os valores. Para Nietzsche, o egoísmo é parte
integrante da alma aristocrática, que o aceita sem problemas e acha natural
precisar que outros lhe sejam submetidos e se sacrifiquem por ela.
Tais práticas simplesmente modificavam os sintomas,
pois se considerava restabelecido aquele que admitia a cruz de Cristo e
propunha ser bom a partir daquele momento, arrependendo-se das faltas passadas.
O que mais o cristianismo ensinou à modernidade?
Nada mais, nada menos que a ´igualdade das almas´ ante Deus. Nela, encontramos
o protótipo de todas as teorias da ´igualdade de direitos´; primeiro se ensinou
à humanidade o princípio de igualdade de uma maneira religiosa, depois se
construiu uma moral sobre essa idéia. Desde então, não é surpreendente se, sob
a influência do cristianismo, as pessoas tenham terminado por levar a sério
essa idéia, querendo torná-la efetiva através das vertentes do “pessimismo por
indignação”.
Nietzsche sempre insistirá nessa tese: a idéia de
igualdade entre os homens, não tenho fundamento natural algum, é apenas
“interpretação” metafísica, que remonta ao cristianismo e tem neste a sua única
garantia. Por isso, a “Declaração dos Direitos do Homem”, ao proclamar a
liberdade e a igualdade, repousa inteiramente na idéia cristã de que todos os
homens, sendo criaturas de Deus, nasceram iguais e não têm privilégios uns
sobre os outros. É por esse caminho que a Revolução Francesa prolonga o
cristianismo: agora a cidade de Deus sobre a terra torna-se contrato social, o
cristianismo torna-se humanismo, a criatura de Deus torna-se homem natural, a
liberdade devida a cada cristão torna-se liberdade cívica no Estado.
Nietzsche considerava o arrependimento como espécie
de covardia para com o próprio ato, como que abandono de si mesmo. Jamais
conseguiremos anular uma ação cometida; cometida, cometida está; mesmo que seja
perdoado, jamais se desvanecerá. Não há potência que desfaça a culpa, aliás,
não existe culpa. As ações não são distintas umas das outras, possuem o mesmo
valor.
Precipitam-nos, às vezes, perturbações
intelectuais, tidas como espécie de hipnotização; todavia, é preciso
combatê-las, pois dizia Nietzsche:
[...] um simples ato, seja ele qual for, colocado
em paralelo com tudo o que se tem feito, é igual a zero, e pode ser deduzido
sem que a conta geral esteja errada .
Todas as nossas ações são acompanhadas de
conseqüências boas ou más que a sociedade, fazendo um juízo, determina-as como
certas ou erradas atribuindo uma série de perturbações cerebrais, causando esse
complexo de culpa.
O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora
alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. Supondo que
tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia
deduzir, considerando o irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já
agora se verifica um considerável declínio da consciência de culpa no homem;
não devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e
definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em
dívida com seu começo, sua causa prima [causa primeira] .
A Igreja acredita que o mau ato praticado pode ser
resgatado e o perdão pode anular a pena. Todavia, isso não passa de mera
superstição, pois o que já foi feito é irrevogável, já está feito.
Uma ação extrai suas conseqüências do homem e fora
do homem, pouco importa que passe por punida, expiada, perdoada, anulada, ou
ainda que a Igreja tenha promovido o culpado a santo .
.
A partir desse preceito, Nietzsche afirma que a
Igreja se encontrou mergulhada numa ilusão; fixa em coisas inexistentes, em
sinais exteriores, divindades eternas, efeitos improduzíveis, que, na
realidade, não passam de idéias fictícias que nos conduzem ao erro.
Coloca o cristianismo como uma das principais
fontes que levam o homem a renunciar sua condição de senhor, tornando-se
enfraquecido, inofensivo, abatido na humanidade, digno de dó, pena,
comiseração. Este cristianismo eleva o sacerdote à classe mais digna entre os
homens, um Deus humanizado, este ser que detém o conhecimento do verdadeiro, o
escolhido para guiar o rebanho de homens.
O sacerdote ascético é a encarnação do desejo de
ser outro, de ser-estar em outro lugar, é o mais alto grau desse desejo, sua
verdadeira febre e paixão: mais precisamente o poder do seu desejo é o grilhão
que o prende aqui; precisamente por isso ele se torna o instrumento que deve
trabalhar para a criação de condições mais propícias para o ser-aqui e o
ser-homem – precisamente com este poder ele mantém apegado à vida todo o
rebanho de malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda
espécie, ao colocar-se instintivamente à sua frente como pastor .
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 28 de novembro de 2016)
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