**SEMANA //Blog **BO-TEKO DE POESIAS** - 18-24 DE NOVEMBRO DE 2016** - Manoel Ferreira
BENJAMIM E BAUDELAIRE: ESTRUTURAS DE SENTIMENTO DA MODERNIDADE - II
PARTE
O trabalho de Baudelaire confronta a história e o presente, e esse
confronto compõe sua idéia de modernidade – um núcleo de tensão –, conduzindo o
homem à consciência de que o presente está sempre ameaçado, de que a
modernidade é um esboço, um processo em devir que se funda como afirmação e
crise, e se reorganiza permanentemente. A consciência aguda da redução drástica
da experiência do tempo imprime, na modernidade, a característica da
constituição e da destruição, o que produz a paradoxal sensação de se estar
sempre à frente de seu tempo, mas também sempre atrasado em relação à novidade
que nos escapa. O paradoxo dessa modernidade consiste no fato de ela ser a um
só tempo obcecada pela memória, concebida como criação e conhecimento, e pelo
contingente efêmero; nesse sentido, busca aproximar o que está distante e
distanciar o que está próximo, retornando ao passado a partir do presente que
nos é próprio, ou seja, operando por anacronismo. Esse sentimento traduz a
consciência da perenidade do presente e demonstra a importância do trabalho da
memória, percebido e desenvolvido pelo autor de Salon de 1859 em sua obra.
Impressiona, em Baudelaire, a constante reflexão sobre a dualidade de
caminhos, da ascese e da dissolução, expressa em declarações como esta: Há em
todo indivíduo duas postulações simultâneas: uma em direção a Deus, outra a
Satã. Esse dualismo, levando-o a acender velas alternadamente a Deus e ao
diabo, justificava suas contradições e, mais ainda, sua célebre e reiterada defesa
do direito de contradizer-se. O certo é que essa polaridade aguda, essa intensa
vivência de antinomias, para ele dotadas de peso ontológico, impulsionaram sua
criatividade e estão na base de suas idéias e intuições. Arquétipo do poeta
maldito, curiosidade ou aberração para seus contemporâneos, hoje o autor de As
flores do mal pode ser examinado como um dos grandes revolucionários do século
XIX; um daqueles que mudaram nosso modo de ver o mundo.
A relação estabelecida entre o presente e o passado, à maneira de uma
construção, em Benjamin aparece-nos transfigurada por essa construção
alegórica. A relação entre presente e passado não obedece a uma conexão
necessária, submetendo-se à causalidade linear e aos critérios de uma seqüência
predizível, mas sim a outra ordem. A passagem benjaminiana, em que o autor cita
Proust, com a finalidade de dar conta dessa relação, parece lançar alguma luz
sobre o tema. Se partirmos da análise desta passagem, somos obrigados a
vacilar, perante o termo, utilizado por S. Mosès, de uma relação “escolhida”75.
Parece que, como Benjamin o nota, seguindo o texto proustiano, ela é menos
escolhida do que “reencontrada”. Está fora do alcance da memória voluntária ou
da nossa inteligência a possibilidade de uma reconstrução fiel e essa parece
ser a condição prévia da rememoração, mas o termo “escolhido” (bem como o termo
livre) também não convém inteiramente à rememoração, no sentido em que não se
escolhe, mas se “reencontra” (ou não) esse passado. O que fica bem claro, no
entanto, é que ela não obedece aos critérios, como bem o entende Mosès, de
causalidade e analogia.
No ensaio benjaminiano Zum Bild Prousts, Benjamin aborda o tema da
rememoração proustiana da seguinte forma: “Sabe-se que, na sua obra, Proust não
descreveu uma vida tal como ela foi, mas uma vida tal como ela permanece na
memória daquele que a viveu. E esta fórmula permanece ainda demasiado
aproximativa e grosseira. Porque o que desempenha aqui o papel essencial, para
o autor que se evoca as suas lembranças, não é de forma alguma o que ele viveu,
mas o tecido das suas lembranças, o trabalho de Penélope da sua memorização.”76
Mais próxima do “esquecimento” do que da memória, como nos adverte o
autor, o texto proustiano constrói-se como uma entretecedura, um tecido: “este trabalho
de memorização espontânea, onde a recordação é a embalagem e o esquecimento o
conteúdo.”77 A seguirmos o rasto do seu pensamento, poderíamos concluir, com
toda a legitimidade, que nesse tecido se entrelaçam esquecimento e memória
(lembrança), dando-se ambos numa relação dialética e dúplice, à maneira de um
rosto jânico. Mais, poderíamos acrescentar que se trata de uma relação dúplice,
também no sentido em que não poderíamos retirar a envoltura sem destruirmos o
seu conteúdo, ou melhor dizendo, sem destruir o tecido, na sua constituição
intrínseca e essencial, como tecelagem ou entretecedura. Ele nasce de uma
convergência, que tem a sua origem numa heterogeneidade essencial, a dos fios
que o constituem. Essa heterogeneidade é-lhe, em absoluto, fundamental e, se
quisermos entender as palavras de Walter Benjamin, deveremos, antes de mais,
respeitar a metáfora, aceitando todas as suas implicações e características que
lhe são próprias.
Podemos ainda concluir que essa relação, entre presente e passado, relação
dialética que pode, ainda, ser vista à luz do seu desdobramento ínsito
(esquecimento/memória), adquire a sua máxima tensão em textos particulares,
determinadas passagens (aqui referidas, tais como o efeito da “madalena” sobre
o narrador ou, ainda, as passagens sobre o despertar noturno e o esforço
conseqüente de reencontrar os lugares, como poderíamos, ainda, falar do caso
paradigmático da memória de Balbec e de Combray), daí que a essa tensão
dialética apenas possa corresponder, com efeito, a sua concentração - à maneira
benjaminiana, entendida como símile - numa imagem de caráter alegórico.
Trata-se de ver, como Benjamin o entendeu e como já o dissemos, o mesmo
princípio construtivo (e alegórico) em Proust, constituindo-se a alegoria como
modus operandi, transfigurando a experiência vivida do choque através da
rememoração, apresentando-a mediante imagens, constituindo-se a rememoração
como um elemento verdadeiramente inovador, que estabelece uma relação
totalmente diferente entre presente e passado, tal como ela é pensada natural e
habitualmente.
Assim, a noção de rememoração adquire um caráter verdadeiramente
incomparável na obra benjaminiana e, em especial, na análise do mundo moderno
alegórico, justamente porque ela se configura como o paradigma por excelência
do despertar, elemento antitético (como o seu aspecto dialético) da noção de
fantasmagoria ou de “sonho coletivo”: “De fato, o despertar é o paradigma da
rememoração, o caso em que chegamos a rememorar o que é mais próximo, mais
banal, mais manifesto.”
Do que nos fala Benjamin? O que se entende aqui pelo “mais próximo” ou o
“mais banal” ou, ainda, o “mais manifesto”? É possível, com efeito, avançar com
algumas explicações, mas o próprio Benjamin adverte- nos, nessa mesma passagem,
para o saber-ainda-não-consciente do Outrora. A história irrompe numa
semi-obscuridade que se encontra latente na nossa experiência do dia-a-dia,
ainda que oculta, disfarçada ou mascarada pelas fantasmagorias coletivas da
sociedade. Os sonhos fantasmagóricos do flâneur, do jogador, do colecionador
constituem-se como esse saber inconsciente, um “saber sonhado” (permitam-nos a
expressão) que procura constantemente esquecer-se, evitando, ele próprio, o
momento doloroso do “despertar”. Doloroso porque a história aparece sempre
marcada pela morte e pela ruína, pela “catástrofe em permanência”. Essa
catástrofe (característica de uma concepção barroca da história) ressurge com
outros aspectos na modernidade: sob a forma de choque, de repetição infernal ou
de eterno retorno, despoletadores da melancolia do homem moderno e, por
conseguinte, da visão alegórica, tão próxima do barroco.
Benjamin foi mais longe ainda, designando o século XIX, não apenas como
um espaço de tempo, mas como um “sonho de tempo” [Zeit-traum], ou seja,
entendendo esse espaço de tempo como uma fantasmagoria coletiva, toda ela
decorrente entre espaços e arquiteturas fantasmagóricas (essa é, sem dúvida, a
função própria das galerias parisienses no tecido urbano), expressão do sonho
coletivo, ou melhor, do pesadelo profundo do qual partilha toda a sociedade
burguesa.
Esta passagem deve obrigar-nos a refletir no paradoxo por ela enunciado.
Se, por um lado, a consciência coletiva parece, cada vez mais, embrenhar-se nas
suas fantasmagorias, por outro, como o próprio autor nos diz, a consciência
individual parece, numa relação de pura contraposição, afundar-se cada vez mais
no ensimesmamento. Cada um dos pólos decorre justamente um do outro, numa
relação a que convém chamar dialética, com todo o propósito. Num esforço de
clarificação, devemos retomar o tema, já atrás abordado, do saber alegórico
como aquele que corresponde ao saber do cismativo ou do ensimesmado (utilizando
para este efeito o próprio termo benjaminiano de Grübler). Os pólos dessa
contraposição aparecem-nos, então, duma forma mais clara, no sentido em que,
se, por um lado, se reconhece na fantasmagoria a expressão do sono coletivo,
por outro, reconhecemos no outro pólo o saber ensimesmado, imerso no desespero
do reconhecimento da catástrofe em permanência. Essa é, sem dúvida, a
consciência individual a que Benjamin se refere, referindo a consciência do
indivíduo que mergulha, cada vez mais no tédio e no mal-estar e que se afunda
no “abismo das significações” ou no “abismo sem estrelas” de Blanquis,
obrigando-nos a reencontrarmo-nos, novamente, com o paradoxo da situação do
homem no século XIX. O sentimento de catástrofe em permanência, o
“enfronhamento” cada vez maior no sono coletivo da consciência (vítima das
fantasmagorias do mundo capitalista), exige a sua antítese, remetendo-nos
naturalmente para a exigência duma ruptura brutal com esse estado de coisas, pois
o adormecimento natural exige como a sua conseqüência mais inevitável o
despertar, enquanto condição dialética que lhe é inevitável.
A experiência de particularização da vida privada conformou o
individualismo, em que os objetos de consumo são resguardados, migrando do
controle público para o privado. Além disso, a normatização da vida privada,
através das redes de controle dos indivíduos perante a massa, proporcionou
novas experiências de uniformização dos sujeitos. Algumas medidas técnicas como
a identificação das casas, por números e por registros, ajudou no controle
administrativo. Assim também aconteceu com a fotografia, a qual passou a reter
os rastros dos indivíduos, facilitando, por exemplo, o trabalho dos
criminalistas.
O isolamento do indivíduo proporcionou uma série de novos sentimentos e
experiências perceptivas do sujeito, em relação a ele mesmo e dele perante a
multidão. Na cidade grande, diante desta última, o indivíduo tem suas pegadas
apagadas e foi esse o principal conteúdo social que possibilitou o surgimento
do gênero da história de detetive. A multidão ansiava por um texto que
abarcasse os aspectos de sua vida cotidiana em um contexto real e, assim, é
conformado esse novo gênero, que teve como um dos principais representantes
Edgard Alan Poe. A dificuldade de reencontrar a donzela desconhecida na
multidão é o tema de um dos mais famosos poemas de As Flores do mal, intitulado
A uma passante. Nesse contexto, o destaque está no amor à última vista e, não
mais à primeira.
Benjamin cita um texto de Engels sobre as ruas londrinas (1848), o qual
verificava a incrível massa passante de indivíduos isolados, que era exatamente
o mesmo que acontecia na Paris durante o mesmo século XIX.
(...) essas centenas de milhares de pessoas de todas as classes e de
todas as camadas sociais, empurrando-se umas às outras, não são todas elas
seres humanos com as mesmas qualidades e capacidades, e com o mesmo interesse
de serem felizes? (...) E, mesmo assim, passam apressados uns pelos outros,
como se não tivessem nada em comum, como se não tivessem nada a ver uns com os
outros, como se houvesse um acordo tácito entre eles de que cada um fique do
lado da calçada direita, para que duas correntes da multidão não detenham uma à
outra; e, mesmo assim, a ninguém ocorre sequer dignar-se olhar por um instante
para o outro. A brutal indiferença, o insensível isolamento de cada indivíduo
em seus interesses privados surgem de modo tanto mais nojento e assustador
quanto mais estes indivíduos estão espremidos num espaço diminuto (ENGELS apud
BENJAMIN, 1985, p. 84-85).
Com a introdução tecnológica na modernidade do século XIX, Benjamin
verifica que os indivíduos e suas formas de experiências não estão preparados
para recepcioná-la. Conseqüentemente, ocorrem rupturas nos modos de vida, no
que diz respeito ao ritmo, à sensorialidade e à nova dinâmica social e pessoal.
A tensão gerada pela introdução das novas formas traumáticas de experiência
privada (“Erlebnis”) e pela perda da experiência coletiva tradicional
(“Erfahrung”), assim como a tentativa de recuperá-la, proporcionaram uma nova
experiência perceptiva: a de choque. As experiências de choque se transformaram
em mercadoria nas mãos do poeta e, em Baudelaire, como destaca Benjamin, ela
foi determinante em sua estrutura poética.
De fato, como identifica Ben Singer, “a metrópole sujeitou o indivíduo a
um bombardeio de impressões, choque e sobressaltos” (SINGER, 2004 p.96). O
rápido ritmo dos transportes e do trabalho da vida capitalista estão
diretamente ligados ao novo ritmo de atenção e desatenção, imposto pela
modernidade. Fala-se, aqui, tanto do choque que impacta os estímulos e a vida
psíquica, como o choque que provoca risco e possibilidade de morte ou mutilação
dos indivíduos, por atropelamento ou por acidente de trabalho. A modernidade
dos novos meios de trabalho e de transporte se relacionava aos indivíduos como
um jogo de azar.
Benjamin sugere que “a multidão metropolitana despertava medo,
repugnância e horror naqueles que a viam pela primeira vez” (BENJAMIN, 1994, p.
124). Dessa forma, a experiência do transeunte em meio à multidão é tão
traumática como a do operário em meio às máquinas. No entanto, esse choque do
novo é amortecido por meio de um treinamento no decorrer da experiência vivida,
quando incorporado ao indivíduo. De acordo com o autor, cada vez mais os
choques devem ser mais intensos para serem percebidos. De fato, o hiperestímulo
causado em decorrência da modernidade - industrialização, capitalismo avançado,
urbanização e rápido crescimento populacional, aliado às novas tecnologias,
materiais, transportes e mercadorias - sujeitou o indivíduo a um bombardeio de
choques cada vez mais intensos.
De acordo com Leo Charney, o conceito de choque nas obras benjaminianas
se relaciona também à mudança constante e repentina, proporcionada pelo cinema
e pela vida moderna (CHARNEY, 2004 p. 323). Quanto mais sensações efêmeras e
acentuadas atingem intensamente o indivíduo moderno, mais ele se sentia
esvaecido de sua força inicial, visto que seu aparato perceptivo era cada vez
mais exigido para um trabalho mecanizado e operativo.
Na obra artística de Baudelaire, Benjamin identificou, analisou e
interpretou as experiências vividas, as representações, as emoções, as
dimensões subjetivas das práticas individuais e sociais da sociedade
parisiense, do século XIX. O trabalho de historiar a materialidade, realizado
por Benjamin, permitiu a descoberta de outras formas de experiência, vivência.
Benjamin interpretou a experiência vivida da cultura moderna ao desvelar
o contexto em que o texto de Baudelaire foi escrito. É a experiência que dá
sentido a cultura. Por isso, o interesse, aqui, em se empenhar nos caminhos que
delineiam a cultura, nesse caso, a moderna.
Traçado o paralelo, ainda que anacrônico, com o materialismo cultural de
Williams - que via nas obras de arte e na literatura a formalização das
experiências vividas em um determinado tempo histórico e, assim, o processo de
incorporação dos modos de vida – elegeu-se a categoria “estruturas de
sentimento” para se analisar a obra de Benjamin acerca dos textos de
Baudelaire. A centralidade da cultura e a proposta de uma teoria da cultura
foram a base para a formulação do que se concebeu como materialismo cultural.
Essa posição teórica valorizou a cultura como a chave para o entendimento do
funcionamento da sociedade e para sua transformação. Nesse contexto, Williams
enxergava a cultura como produto, mas, principalmente, como produção material.
Ao cunhar a noção “estruturas de sentimento”, Williams pretendia definir
as experiências vividas e os seus significados e valores tal como foram
vividos, sentidos e experimentados ativamente, em um determinado tempo e
momentos históricos. Assim, a categoria “estruturas de sentimento” é uma forma
de incorporar as experiências e os processos sociais ao estudo da cultura, de
modo a analisar as condições das práticas sociais em um determinado momento
histórico. E, segundo Williams, as obras de arte são objetos importantes de
análise do materialismo cultural, uma vez que a experiência pode ser registrada,
paralisada na arte e, assim, as “estruturas de sentimento” vividas podem ser
analisadas, compartilhadas, examinadas, identificadas e generalizadas.
Acredita-se ter sido justamente essa a intenção de Benjamin ao examinar a Paris
dos textos de Baudelaire. Por meio da dialética da paralisação, em que o
momento presente é fotografado e entendido ao longo de um processo, Benjamin
analisava as imagens sincrônicas, imersas nas experiências urbanas e, assim,
mapeava “as estruturas de sentimento” da modernidade.
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 23 de novembro de 2016)
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