**SEMANA //Blog **BO-TEKO DE POESIAS** - 18-24 DE NOVEMBRO DE 2016** - Manoel Ferreira
BALZAC – RICA FONTE DE CRITICA À SOCIEDADE BURGUESA
No que tange a este grande romancista francês,
desenrola-se volta e meia ruidosas controvérsias que, conforme nossa visão, tem
interesse superior ao simplesmente acadêmico. Referem-se a que tais disputas?
Referem-se a alguns dos mais importantes aspectos da nossa ciência e da nossa
literatura. Não obstante existir crítica literária relativamente ampla,
dedicada a Balzac, não estamos autorizados a dizer que tenhamos aprendido muito
sobre as suas obras. Deve-se isso não só à extrema complexidade do autor e à
falta de verdadeiro estudo da matéria, mas também, até certo nível, aos métodos
inferiores de in-vestigação que estão em moda entre a maior parte dos
historiadores literários que escrevem sobre Balzac.
Para nós, Balzac é significativo não só como
patrimônio histórico, mas, sobretudo, como vivo tesouro cultural, como fonte de
rica de experiência na arte e nas idéias. Aprendemos dos historiadores
literários que Balzac era o representante ideológico de tal e tal classe, da
burguesia industrial ou da aristocracia, ou de uma determinada parte de uma
classe, mas não explicam por que Balzac foi um grande artista. Historiador
literário, in-vestigador sociológico, dizer que Balzac foi um escritor burguês,
dando-se por satisfeito, presumindo ter dito a última palavra. A última
palavra! Que despautério! Quanto mais quando se diz respeito a este ícone da
literatura francesa e universal. Ao apreciar um autor, o “sociólogo”,
submergido inteiramente em investigações genéticas, foge ao assunto por
intermédio de generalizações as mais descabíveis, até mesmo imbecis. Se
con-templarmos de um ponto de vista sociológico comum, todos os grandes
escritores parecem iguais.
O estudo da literatura con-verte-se num ofício
cacete e improdutivo. Classificam-se os autores de acordo com a classe a que
pertencem da maneira mais automática. E a voz monótona do sociólogo explica
como um professor de etimologia: “Dostoievski pertencia a... Ibsen pertencia
a... Machado de Assis pertencia a... Goethe pertencia a...”. Enquanto a
conversação gira sobre um grande escritor, o sociólogo, para evitar situação
constrangedora, põe diante de nós o célebre quadro da “burguesia ascendente”
como “classe progressista”, etc. Método realmente muito cômodo para “tirar o
corpo fora” da necessidade de re-flexão e de in-vestigação histórica concreta.
Não é método original, visto que foi empregado primeiro pelos historiadores
liberais da literatura que, naturalmente, como burgueses, avaliaram todas as
grandes produções artísticas da sua época somente em relação ao “progressismo”
do dia. Para poder aplicar teoria os “sociólogos”, passando por alto os fatos,
empenham-se em vão a descrever a Balzac, defensor da aristocracia, como um
músico do capitalismo industrial.
A incompetência dessa classe de sociologia quando
aprecia Balzac não é de modo algum acidental, mas o resultado direto de um modo
de ver, incorreto e unilateral, a gênese de uma obra-de-arte.
Faz-se mister estudar a obra do autor de modo que
explicará a influência de sua época sobre o desenvolvimento e o progresso, e
quão profundamente refletiu em seus escritos. Nossos sociólogos perdem de vista
este aspecto e começam do lado oposto. Aos seus olhos a análise classista de
uma obra-de-arte depende automaticamente da posição imediata do artista numa
sociedade dividida em classes. Fogem por completo do método do artista, do seu
modo de reagir ante a realidade. Não se ocupam do fato de que um estudo profundo
e uma verídica descrição da realidade por um autor emprestam tremenda
significação ao sentido social da sua obra. Os sociólogos perdem assim o
conteúdo objetivo e o significado histórico da arte criadora.
Escritores, como Balzac, conservam sua significação
muito além dos limites do seu tempo e da sua classe, devido não tanto às suas
opiniões como às suas aspirações. É exatamente esta a diferença que os
“sociólogos” deixam de ter em conta. Não estão nada interessados no “porquê” e
no “como” da chegada de Balzac a certas conclusões políticas. Estão meramente
interessados nestas conclusões. Com esse método de in-vestigar Balzac, ou
qualquer outro autor, não se pode conseguir grande coisa, aliás nada se
consegue que tenha realmente valor inestimável.
A que época da história da sociedade burguesa a
literatura de Balzac reflete? À época em que esta última trocava a luta
revolucionária contra o feudalismo pela tarefa prática de realizar os preceitos
de 1793. A utopia de liberdade e igualdade converteu-se em realidade no
exercício do regime capitalista. O progresso burguês que os revolucionários do
século XVIII divisaram como um transição harmoniosa da humanidade para a idade
de ouro, revelou todas as suas profundas e insolúveis contradições. Este fator
decisivo determinou o caráter das tendências principais da vida espiritual dos
três primeiros decênios do século XIX.
Os escritores que sustentavam que a sociedade
burguesa era o ideal, uniram-se sob o estandarte do liberalismo. Exteriormente
pareciam seguir as pegadas dos discípulos do século das luzes; na prática,
porém, estes mesmos liberais se diferençam deles no essencial, não só no que
tange às idéias, mas também no juízo prático de suas perspectivas. Para os
discípulos da idade da razão a glorificação da civilização burguesa foi uma
ilusão, quimera sincera, em muitos aspectos até compreensível, se for
con-templada à luz das relações burguesas do século XVIII, ainda prematuras.
Mas a época pós-revolucionária destruiu rapidamente o fundo objetivo dessa
ilusão. A descrição da sociedade burguesa como uma “harmonia natural de
interesses” entrou em conflito objetivo com os fatos. Em conseqüência esta
glorificação feita pelos liberais toma um caráter hipócrita e egoísta.
Os românticos são os primeiros no século XIX a
descobrir a natureza antagônica da sociedade burguesa. Enquanto os liberais a
pintam como um progresso contínuo, os românticos, pelo contrário, negam toda
significação possível ao desenvolvimento burguês, encarando-o mais como um
regressão histórica e volvendo suas vistas saudosas aos “bons dias passados” de
uma sociedade patriarcal. Ao lado do liberalismo e do romantismo desenvolve-se
uma nova, uma terceira corrente, profundamente distinta, que supera em muito as
outras em significação e representa papel de imensa importância na preparação
histórica do marxismo. A esta escola, que se pode chamar “estóica”, tomando o
termo de Karl Marx, que o usou uma vez para caracterizar a economia política
clássica inglesa, pertencem homens como Hegel, Goethe, Saint-Simon e Fourier.
Estes homens formam uma unidade, não porque tenham um programa geral comum, nem
por suas conclusões políticas, nas quais amiúde se diferençam, mas em razão de
um ponto de partida comum em relação à civilização burguesa. Diferindo dos
românticos, os intelectuais da escola “estóica” de pensamento admitem a
necessidade histórica desta civilização e consideram-na um passo gigantesco no
progresso social. Em contraste, contudo, com a escola liberal, negam-se admitir
a teoria de que a ordem reinante seja o estado social ideal, o “melhor de todos
os mundos possíveis”. Mostram que os êxitos da civilização capitalista estão
inevitavelmente acompanhados de uma decadência em muitos aspectos importantes
da vida e da cultura social e pintam verídica e profundamente os traços
bárbaros desse “progresso”.
Observando a sociedade burguesa, concluem que no
processo histórico o bem e o mal estão inseparavelmente comungados e de que a
contradição é a lei básica da história, desenvolvendo assim sua natureza
dialética. Tal conclusão teórica levou muitos destes discípulos da escola
racionalista á convicção prática de que é essencial resolver essas
contradições, isto é, destruir o estado burguês. Se para a grande parte deles,
como, por exemplo, Hegel, esta resolução não passa de matéria de especulação
abstrata, recomendando reconciliação com o status quo, outros, como Saint-Simon
por exemplo, já procuram, ainda que de modo utópico, caminho para eliminar os
antagonismos da sociedade mediante mudança prática fundamental.
Balzac não pode ser classificado entre os autores
românticos nem entre os liberais. Sua reação agudamente negativa contra a
restauração da ordem patriarcal e sua aceitação da necessidade histórica da
sociedade burguesa distinguem-no definitivamente do primeiro grupo. Difere da
escola de romancistas liberais e apologéticos pela veracidade e coragem no
descrever os aspectos decantes do progresso burguês e, também por sua profunda
compreensão das suas contradições internas.
O mecanismo nivelador da civilização burguesa,
segundo Balzac, priva um homem de sua individualidade, converte-o num autômato,
encadeia-o à rotina monótona de um ofício, sufoca todas as suas capacidades e
energias.
Quando uma pessoa de talento não pode chegar a
converter-se num criminoso, torna-se um ser, até certo ponto, anormal. Quanto
mais fortemente o ambiente capitalista oprime os talentos e temperamentos
individuais, mais ruinosas e exageradas se manifestam estas energias
restringidas, uma vez que a pressão se alivia e o individuo recebe um pouco de
liberdade para seguir suas inclinações: frugalidade, amor, sensualidade,
ciência, etc. Nesta paixão libertada concentra o indivíduo todas as suas
energias, sua vontade e seu fervor; está completamente absorvido por ela.
A sociedade burguesa é o “reino espiritual dos
animais”, dos medíocres, da vulgaridade e da uniformização de tudo, desde os
costumes correntes até a moral e a psicologia. O mundo do “grande igualador”, o
dinheiro , sufoca todo o ímpeto extraordinário, viola todo o talento e toda a
habilidade individual.
Nos tempos que correm, dinheiro significa prazer,
consideração, amigos, sucesso, aptidões e até inteligência: esse doce metal
pode ser objeto constante de amor e respeito dos mortais, qualquer que seja a
idade ou condição, de reis a costureirinhas, de grandes proprietários a
emigrantes. No entanto, esse mesmo dinheiro, fonte de todos os prazeres, origem
de todas as glórias, é também objeto de todas as disputas .
Qual a contribuição de Balzac para o
desenvolvimento artístico da humanidade? Consiste exatamente em ter conseguido
no campo da prosa artística precisamente o que Hegel conseguiu no campo da
filosofia: apresentou um quadro universal e verídico, ainda que, às vezes, de
forma torcida e idealista, da natureza contraditória da sociedade burguesa em
todas as suas manifestações. Apresentando este quadro, mostrou excelente
compreensão da dialética social do ponto de vista de um pensador e
especialmente de um artista. Apesar de seu valor ao criticar as faltas,
mazelas, da sociedade, o realismo do século dezoito (Fielding e, às vezes,
Diderot) havia agudamente diferençado o bem e o mal, a luz e as trevas. Todo o
negativo na vida é conseqüência da barbárie da sociedade feudal. Em
compensação, os defensores da nova ordem social glorificam a razão e a justiça,
tudo o que é bom na natureza humana. Balzac está acima desse método artístico
abstrato e unilateral; reconhece como lei social básica a união orgânica entre
os lados positivos e negativos da vida e a ausência nela de fases absolutas.
Sua convicção fundamental é que “não há nada de absoluto na humanidade”
(Modesta Mignon); que a vida está dominada pela “lei das contradições e dos
contrastes” (Uma filha de Eva). Em Ilusões perdidas fala do papel predominante
da lei das contradições na vida humana.
O título Ilusões perdidas, segundo Wisnick, é uma
fórmula de amplo espectro. Em princípio, refere-se simplesmente às desilusões
individuais internas ao romance. Lukács, para quem o confronto com o
rebaixamento dos valores “autênticos” origina o gênero, viu neste romance
balzaquiano o próprio paradigma da destruição, pelo capitalismo, do humanismo
revolucionário das primeiras concepções burguesas da sociedade e da cultura,
assim como em D. Quixote o mundo dos ideais feudais cavaleirescos fora
destruído pela sociedade burguesa em via de formação.
A dedicatória de Ilusões perdidas, a Victor Hugo, é
indicadora de como o romance está situado num embate histórico onde se joga
implicitamente o futuro da literatura. Mais do que uma dedicatória, Balzac faz
ao outro escritor um pedido de aliança contra a potência nova, a imprensa, que
passa pela primeira vez a ser assunto de literatura, como os marqueses,
financistas, médicos e procuradores o foram em Molière. A inclusão é litigiosa,
porque a imprensa vem a ser assunto da literatura depois que a literatura já é
assunto da imprensa.
O conflito entre paixão e equivalência geral é a
hora da verdade em O Pai Goriot; encarna, monumentalizada, a contradição de
todas as personagens, que lhe dão atenção pois nele se reconhecem. Essa
verdade, entretanto, “é como um fruto saboroso, imediatamente devorado”, não é
mais que uma sensação. Balzac está formulando a teoria da arte maldita. O
citadino, desgastado e apatifado pelo dia-a-dia, experimenta com prazer insólito
a violência da verdade que lhe diz respeito.
A fórmula-título do livro, além de conter um
retrospecto histórico latente, parece ter também o poder de se realimentar da
própria história de maneira multifacetada e paradoxal.
A história moderna pode ser lida, a partir de seu
núcleo originário, como uma espiral de desilusões: do mundo feudal e
aristocrático evocado nostalgicamente pelos primeiros românticos, do humanismo
universalista burguês entregue aos especuladores (é o quadro de 1830) e rompido
pela fratura da luta de classes exposta em 1848, desilusões agravadas no século
XX pelo panorama das guerras mundiais, do nazismo, da desilusão do socialismo
pelo stalinismo e pela ruína do império soviético.
Há uma linhagem da arte que segue o caminho oposto do
qual Balzac desponta como um naïf, um “gênio ingênuo”, não só da economia
política como da literatura, com sua grandiloqüência apaixonada e muitas vezes
descalibrada de observador agudo e visionário romântico, arrastando tudo com a
energia do seu vitalismo universal. Na linhagem radical da poesia e da prosa
modernas, a arte empreende uma crítica das ilusões da própria linguagem, da
representação ficcional (o que lhe custa um preço em negatividade); mas na arte
a ilusão não pode deixar de ter assim mesmo um valor afirmativo, e essa
afirmação é um diferencial inequívoco, ao mesmo tempo que gerador de uma
seqüência infinita de mal-entendidos com a crítica jornalística.
A arte aceita a ilusão como seu bem de raiz, e isso
lhe permite desfaze-la, além de suportar a desilusão. O paradigma jornalístico,
tal como é percebido por Balzac, denuncia a ilusão que recusa no seu
nascimento, e se vê condenado a produzi-la e reproduzi-la ao infinito.
A sociedade burguesa, que exige, pela sua
existência, um macroromance das dimensões da Comédia Humana, onde se encerra o
seu grande teatro, parece inviabilizar, ao mesmo tempo, ou a médio prazo, a sua
mise-em-scène totalizante: a imprensa é o grande sintoma viral desse fato, no
romance de Balzac, pululando versões que pulverizam a aspiração à verdade em
verossímeis sem lastro. A expansão da indústria editorial cria o campo
litigioso em que se confrontam, no mesmo veículo, através da representação
literária e da representação jornalística, duas formas de ficção que disputam a
mimese da vida moderna. Balzac chamou para si, no corpo da própria obra,
tomando-o de certo modo como uma afronta pessoal em grande estilo, ou em
grandes proporções, o destino desse drama histórico-literário que ele percebeu
talvez melhor do que ninguém.
O cenário cosmopolita, com a trama dos movimentos
da ribalta e dos bastidores da vida parisiense, vem para o primeiro plano do
romance na segunda parte (“Um grande homem da província em Paris”), depois das
primeiras iniciativas intelectuais de Lucien Em Angoulême, onde freqüenta os
saraus provincianos de uma certa senhora De Bargeton, mulher casada com quem
acaba por fugir para Paris (adotando o sobrenome nobre decaído da mãe,
Rubempré, contra o plebeu do pai, Chardon). Ao lado dos arroubos líricos,
aventureiros e oportunistas de Lucien em busca do reconhecimento parisiense,
temos os esforços pacientes e generosos de sua irmã Ève e de seu cunhado David
Séchard para ajudá-lo entre dificuldades de toda ordem. David Séchard tenta,
paralelamente, de maneira desinteressada e empresarialmente ingênua, inventar
um processo novo de fabricação de papel que torne o produto mais barato para
atender às necessidades crescentes da indústria editorial e da imprensa
florescente na década de 1820 (quando se passa a narrativa), e na década de
1830, ao final da qual foi escrita.
As vicissitudes do inventor, às voltas com as
dificuldades técnicas e com as ciladas dos fabricantes que queriam se apropriar
de sua possível descoberta, são o assunto central da terceira parte (quando Lucien,
malogrado depois dos sucessos momentâneos em Paris, se vê obrigado a voltar a
Angoulême, na penúria). A história de Lucien de Rubempré prosseguirá, no
contexto maior da Comédia Humana, em Esplendores e misérias das cortesãs, com
complicações novas.
A relação entre Lucien e David Séchad não deixa de
remeter à infra e à superestrutura da indústria editorial, cujo nervosismo
atravessa o romance, indo, pois, da observação da produção artesanal e
industrial do papel à análise das condições de produção do discurso literário e
jornalístico, com todas as etapas intermediárias de quebra. Na segunda parte de
Ilusões perdidas está o nó das relações entre literatura e jornalismo,
anunciado e envolvido pelo contraponto que o livro estabelece entre esses dois
diferentes tipos de “poetas”: o jovem narcisista que, pelo triunfo e o fracasso
mundanos, perde os seus ideais literários e morais, e o anônimo e implacável
trabalhador-inventor que, moralmente avesso ao turbilhão da capital, e do
capital, luta pelo melhoramente técnico dos meios impressos. (A província tende
a ser, para o lado idealizante do antimodernismo de Balzac, o celeiro dos
“bons”: David Séchard não é movido pelo desejo do lucro nem da glória, embora
diretamente envolvido, pela natureza do seu trabalho, com os movimentos da
industrialização e do capital).
A história moderna pode ser lida, a partir de seu
núcleo originário, como uma espiral de desilusões do mundo feudal e
aristocrático evocado nostalgicamente pelos primeiros românticos, do humanismo
universalista burguês entregue aos especuladores (é o quadro de 1830) e rompido
pela fratura da luta de classes exposta em 1848, desilusões agravadas no século
XX pelo panorama das guerras mundiais, do nazismo, da desilusão do socialismo
pelo stalinismo e pela ruína do império soviético (apontando somente alguns
marcos da história política sem mencionar minimamente os naufrágios da história
cultural).
Assim, o mesmo Lukács, por exemplo, lido hoje, é
atingido por um novo efeito de “ilusões perdidas” quando diz que Balzac, no
crepúsculo de uma “época de transição”, faz a ponte entre “o sol do humanismo
revolucionário da burguesia” que “já se havia posto” e “o alvor do nascente
novo humanismo democrático e proletário” que “ainda não era visível”. No
pôr-do-sol atual de todo um ciclo da tentativa socialista, o processo das
ilusões perdidas entra em verdadeiro curto-circuito. Pode-se dizer que, se as
ilusões burguesas são destruídas pela idéia socialista, as ilusões do
socialismo são destruídas ainda pelas ilusões burguesas (que parecem extrair a
sua resistência, em grande parte, da própria capacidade de se alimentar da
corrosão). Todo esse panorama aceleradamente controvertido e especular nos
devolve, de alguma forma, ao romance de Balzac.
Balzac ataca também, do ponto de vista estético, os
apologistas do “progresso”, “curvados servilmente ante os rudes inventos da
tecnologia industrial moderna” (Os camponeses).
A crítica estética do capitalismo, expondo o
antagonismo que existe entre o modo burguês de viver e a arte e a poesia,
desempenha importante papel na Comédia humana. A classe média da sociedade
burguesa constitui uma massa inerte e insuportavelmente descolorida, de seres
indiferentes e insensíveis a todos os valores espirituais.
A arte também perece na sociedade burguesa porque
não pode encontrar material que seja digno dela. Um burguês não tem
necessidades artísticas.
Balzac pintará realmente na Comédie Humaine a
dinâmica das finanças e do capitalismo empresarial, apesar dos seus próprios
preconceitos e preferências políticas “reacionárias”? Certamente, a sociedade
do seu tempo é retratada na sua obra, mas a forma estética “absorveu” e
transformou a dinâmica social e fez dela a história de determinados indivíduos
– Lucien de Rubempré, Nucingen, Vautrin. Estes agem e sofrem na sociedade de
seu tempo, são, na verdade, representantes dessa sociedade.
Assim diz-nos Herbert Marcuse acerca da qualidade
estética da Comédie Humaine:
No entanto, a qualidade estética da Comédie Humaine
e a sua verdade reside na individualização do social. Nesta transfiguração, o
universal no destino dos indivíduos brilha através da sua condição social
específica .
Considerado do ponto de vista da feitura, O primo
Pons representa, de modo completo, os processos de arte de Balzac. Neste livro,
como em todos os outros, ele estabeleceu o interesse do drama sobre vários
temas, e cada um desses temas levanta uma questão de elevado alcance moral,
social ou psicológico.
Um dia, finalmente, a empoeirada vidraça se limpa,
o interior se restaura, o auvernhês abandona os trajes típicos de veludo,
enverga uma sobrecasaca! e aparece-nos como um dragão guardando seu tesouro;
cerca-se de obras-primas, torna-se conhecedor perspicaz, decuplica o capital e
não se deixa mais apanhar em nenhum logro, conhece todos os segredos do ofício.
O monstro está lá, como uma velha no meio de vinte moças que se oferece ao
público. A beleza, os milagres da arte são indiferentes a este homem ao mesmo
tempo delicado e grosseiro, que calcula bem seus lucros e trata rudemente os
ignorantes .
Nenhum romancista já foi mais penetrado do que ele
dessa doutrina da importância do assunto, sobre a qual Goethe volta constantemente
nas suas conversações com Eckermann. Há em o Primo Pons uma primeira tragédia
que exprime o título geral: Os parentes pobres. Em que se transformam as
relações de família, nos dados modernos da sociedade, entre as pessoas das
famílias que estão na penúria e das que se encontram na opulência? Eis um dos
problemas localizados pelo livro. Em que se transforma a amizade entre dois
velhos igualmente brutalizados pela vida e que encontram uma fraternidade de
eleição todas as doçuras de afeição de que os privou a sorte? Eis um segundo
problema. De que maneira os seres instintivos, tal como existem em abundância,
entre o povo, podem tornar-se, sob a influência de uma paixão inesperada, tão
criminosos de fato como eram honestos em aparência, eis um terceiro desses
problemas).
A diferença fundamental entre Balzac e os
escritores burgueses da escola liberal consiste não tanto na sua crítica da
sociedade como no caráter integral dessa crítica.
Balzac tira todas as fases negativas da sociedade
burguesa de seus princípios fundamentais, mostrando que está longe de ser
perfeita, que a ordem burguesa por sua estrutura interior está condenada ao
caos e a conflitos desastrosos. Para os liberais, a superioridade absoluta da
sociedade burguesa sobre a ordem antiga, o fundamento do seu direito de ser
chamada “modelo” e “exemplar” era visto sobretudo à luz da liberdade pessoal e
da independência de cada cidadão de qualquer coação externa. Para Balzac,
contudo, este principio fundamental da sociedade burguesa é um princípio
anti-social, fonte de inumeráveis desastres. Estabelecer o interesse próprio
como pedra de toque da sociedade é, segundo Balzac, um mandamento dos piores
instintos da natureza humana: o egoísmo e a cobiça. “A sociedade não tem outro
sustentáculo senão o egoísmo. Todo indivíduo crê em si mesmo...” (O médico
rural). “Apodera-se de todos uma esperança e uma ambição de chegar per faz et
nefas ao paraíso terrestre da luxúria, da vaidade e dos prazeres, matando a
alma e prejudicando o corpo só por uma breve possessão desta terra prometida.”
(Eugenie Grandet)). O mundo converte-se num campo de batalha sem misericórdia
onde cada um luta contra os demais, onde “o egoísmo mais selvagem e mais hábil
vence” (Uma filha de Eva), onde os homens “lutam e se devoram como as aranhas
num jarro” para citar Vautrin (Pai Goriot).
A exemplo de Homero ou Ésquilo, Dante ou
Shakespeare, Balzac foi o espelho móbil e profundo, onde vieram refletir-se,
infrenes e ululantes, todas as fatalidades humanas. Ele não pretendeu reformar
os homens senão reproduzi-los, transmitindo-nos, sem retoques infiéis, as suas
diferentes máscaras. Não há nos seus tipos uma filosofia preconcebida, um
sistema de idéias formado no raciocínio puro de Balzac. Há unicamente
exemplares humanos em face das contingências.
Desejoso de produzir efeito impressionante pela
evocação da realidade concreta, não teria obtido esse resultado senão por meios
abstratos, articulando todas as partes dessa realidade com uma armadura e
ligações conceptuais. Disso resultaria uma constante confusão entre a prosa
estética e a prova racional, de sorte que o leitor nunca saberia precisamente o
sentimento que tem da realidade de uma cena, afinal, não é apenas uma ilusão
devida à verdade do comentário abstrato que a enquadra.
Na posição e dedução abstrata dos casos
psicológicos, Balzac gasta tesouros de inteligência que lhe asseguram
incontestável soberania sobre todos os moralistas presentes, passados e, sem
dúvida, futuros. Ninguém conheceu melhor que ele a vida média e os mil aspectos
que pode revestir uma idéia social posta em contato com a experiência: vale a
pena reler estas admiráveis análises em que Balzac definiu as relações entre os
noivos e os esposos: Memórias de duas jovens esposas, Uma dupla família, O
contrato de casamento, Uma filha de Eva, etc.
O retrato de Natália Evangelista, por exemplo, é
uma obra-prima, e a atitude de Félix de Vandenesse em face de sua mulher
representa uma das situações mais profundas, mais delicadamente naturais já
concebidas. Mas, do ponto de vista que nos interessa, é essencial observar que
o acento, nessas narrativas, está na análise abstrata, concebida e executada à
margem da ação e antes dela; e que a ação representa aí apenas um papel
complementar.
A luta contemporânea entre as classes é a luta do
egoísmo, dos que não têm contra o egoísmo dos que têm; dos interesses materiais
do proletariado contra os interesses materiais das classes proprietárias: a
aristocracia e a burguesia. Que coisa melhor para a sociedade como entidade,
para seu desenvolvimento normal e feliz, a vitória do egoísmo do proletariado
sobre o egoísmo das classes proprietárias ou do egoísmo destas sobre o egoísmo
do proletariado? Este é o problema.
Que aconteceria se o proletariado se apossasse do
poder? Segundo a opinião de Balzac, isto seria um dos piores desastres para a
humanidade e não só para as esferas superiores, mas para as próprias massas. O
poder estaria nas mãos dos rancorosos, de uma plebe vulgar e morta de fome,
sedenta de vingança e de sangue.
O espírito de triunfo pessoal que penetra toda a
sociedade burguesa tem sua mais clara expressão no poder do dinheiro, porque
“amor-próprio e interesse nada mais são que duas manifestações do egoísmo”
(Eugenie Grandet). “Nossa época é eminentemente aquela em que o dinheiro é o
legislador, tanto social como politicamente” (ibid.) “O orgulho teimoso” é o
“princípio das finanças” (A prima Betty); “o princípio: dinheiro, dinheiro,
dinheiro, ao qual toda manifestação da vida na sociedade burguesa está
inexoravelmente subordinado”. Este princípio que perpassa toda a Comédia humana
como leitmotiv, é o ponto de partida de Balzac em sua análise e apreciação da
sociedade burguesa. Balzac quer demonstrar que a verdadeira causa das “úlceras
da civilização” encontra-se no princípio do “dinheiro”, que é ele que destrói
todas as fases da vida social e, finalmente, a humanidade mesma; que a
sociedade burguesa está levando a humanidade ao caos e á degradação.
O ataque de Balzac é dirigido antes de tudo contra
a vida econômica da ordem burguesa. Não nega suas vantagens técnicas ou
materiais, nem sua superioridade nestes aspectos sobre a ordem patriarcal. Mas
em constraste com o tema da “idade da indústria” cantado em coro pelos
liberais, Balzac destaca o lado destrutivo, depredatório do capitalismo, um
aspecto que assombra sua importância progressista. O capitalista industrial na
Comédia humana é pintado sempre como o tipo do pequeno comerciante provinciano
ou como um capitalista incompletamente desenvolvido (os irmãos Cointet, Du
Bousquier em A solteirona, etc.). Esse é “um dos menos importantes centros
nervosos) da economia capitalista (História dos treze). A esfera do capitalista
verdadeiro não é a produção, mas a Bolsa. A indústria só é para ele o meio
secundário de operações financeiras, como por exemplo no caso de Nucingen. Mas
que são as operações finan ceiras? Não a criação de valores materiais, mas a
manipulação de valores já criados. As atividades de um banqueiro não têm
relação com a esfera do trabalho coletivo, nem do desenvolvimento técnico; não
ajudam este desenvolvimento, mas, ao contrário, tornam-no mais lento. Um
banqueiro não produz; colhe para si o que os outros produzem, em troca de
valores imaginários de papel; é um parasita no corpo do povo.
O artista genuíno no mundo do “Pago à vista” é um
apóstata. A arte e a vida burguesa, os artistas e a burguesia são inimigos
natos. Os artistas são “impiedosos com o burguês e usam-no sempre como alvo de
suas zombarias” (César Birotteau). A burguesia, em troca, trata o artista com
crueldade, obrigando-o a levar a vida faminta, lastimável e agonizante da
boêmia. Em Balzac a história de um artista é sempre a história de uma morte
física e moral.
A sociedade burguesa, contudo, “isolou os seus
membros para melhor governá-los e dividiu-os para debilitá-los. O sistema
social rege sobre tantas unidades, sobre um agregado de tantos números que se
acham amontoados como grão de trigo” (O médico rural).
Para contrabalançar o egoísmo da família existe o
sentido da unidade da casta e das tradições, coisas que nascem do estado social
do indivíduo e sobre as quais está fundada a vida das próprias castas.
Para a nobreza, a honra e a galhardia; para a
burguesia, a honradez e a economia; para o povo, a humildade e a diligência.
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 22 de novembro de 2016)
Comentários
Postar um comentário