**A RAIZ E O VÍNCULO COMUM DE CONTINGÊNCIA** - Manoel Ferreira
Re-interpretando A Náusea à luz do ato criador e
conceitualmente implicado pelo conceito de escrever: eis um pensamento notável,
mas não propriamente novo. Novo, em Sartre, é a idéia de que a leitura seja um
ato essencialmente livre, não mera resposta a algumas palavras, mas a
constituição de um objeto – a obra – que não existe anteriormente à sua
constituição e que não é idêntica às palavras, as quais não podem causar o ato
da leitura.
Considerando a raiz, fundamento da leitura, no
sentido de ser a origem, “o artista é a origem da obra...”, sua formação
familiar, social, intelectual, e “a obra é a origem do artista”, o que o homem
cria e recria com a sua experiência e vivência, a busca da totalidade que o
homem é na sua existência.
Transcendendo isto que, aliás, é um pensamento de
Martin Heidegger, “O artista é a origem da obra; a obra é a origem do artista”,
fundamentamos o nosso trabalho, nossa busca letras adentro, desejamos
fundamentar a realidade da existência, tendo como alicerce a vivência, a partir
da liberdade que tanto Sartre nos ensinou, sabendo as diferenças em todos os
níveis, desejamos com a análise de A náusea identificar a adesão a liberdade -
a experiência mística é a origem.
Então, o que é a VIDA...?
“Eu era a raiz da castanheira”, grita Roquentin, a
certa altura, no vernáculo empático do místico, mas imediatamente reformula-o,
“ou melhor, eu estava inteiramente consciente de sua existência. Embora
separado dela – já que estava consciente dela – e, no entanto, perdido nela,
nada além dela.
Heidegger fala de uma existência autêntica, que só
se torna disponível quando os homens interiorizam o pensamento da morte, quando
compreendem não apenas que todos os homens são mortais – não há ninguém que não
saiba – mas que têm de morrer suas próprias mortes e que ninguém o pode fazer
por eles; então eles podem ser livres para viver suas próprias vidas – não como
“um qualquer” mas como eles próprios.
Em A náusea, Roquentin decide-se escrever um
romance, um lanço pela redenção da inautenticidade, que, por si só, merece
alguns comentários. Saibamos o papel que a exaltação da arte representou na
consciência pós-romântica, a decisão de Roquentin é filosófica e pressupõe uma
tese acerca da ontologia da arte, sem a qual parecerá singularmente morna e
desproporcional à experiência à qual responde. Decisão que exige, para sua
apreciação, o aparato de essência e existência. As obras de arte não são
supérfluas porque não existem. E, assim, prometem via de escape da
superfluidade e da contingência.
“Caramba, sei muito bem que, em um romance, é
preciso mentir para ser verdadeiro” .
Sartre é mentiroso por gosto, caso contrário não
escreveria uma linha sequer.
Bouvier escrevia a respeito de Sartre: “Duvido que
o Sr. Sartre venha a ser um grande romancista, pois parece ter repugnância pelo
artifício; e no artifício está a arte”. Sartre ama esses artifícios. O objeto
do romance é irreal. No mesmo artigo de Bouvier, há uma censura: Sartre esquece
que o romance é “divertimento”. O objeto do romance é irreal. Considerar que o
romance é em si mesmo um divertimento é utilitarismo grosseiro.
No capítulo dos elogios, declara Bouvier que nos
livros de Sartre, “uma bela espessura de vida”. Isso incomoda Sartre. Por
pensar em Rabelais, no Tripes d´or, em Crommelynck. O seu impudor nada tem de
tranqüilo. Sartre é frio e amargo.
Roquentin chega a esta concepção da obra de arte ao
ouvir pela última vez um disco preferido num café, antes de abandonar a “cidade
da lama”, “Lamápolis”, Bouville. A voz de uma preta que canta Some of these
days •
Madeleine começa a rir. Gira a manivela e a música
recomeça. Mas já não estou pensando em mim. Penso naquele sujeito lá longe que
compôs essa melodia, num dia de julho, no calor negro de seu quarto. Tento
pensar nele através da melodia, através dos sons brancos e acidulados de um
saxofone. Ele fez isso. Tinha problemas, as coisas não lhe corriam como deveriam:
contas para pagar – e também devia haver em algum lugar uma mulher que não
pensava nele da maneira que ele teria desejado -, e havia também essa terível
onda de calor que transformava os homens em charcos de banha se derretendo.
Tudo isso nada tem de muito bonito ou de muito glorioso. Mas, quando ouço a
canção e penso que foi aquele sujeito que a fez, acho seu sofrimento e sua
transpiração... comoventes. Ele teve sorte. Aliás, não deve ter percebido isso.
Deve ter pensado: com um pouco de sorte esse negócio poderá me render uns
cinqüenta dólares! Pois muito bem, é a primeira vez, há anos, que um homem me
parece comovente. Gostaria de saber alguma coisa sobre esse sujeito. Teria
interesse em conhecer o tipo de problema que tinha, se tinha uma mulher ou se
vivia sozinho. Absolutamente não por humanismo: ao contrário. Mas porque ele
fez isso. Não sinto desejo de conhece-lo – aliás ele talvez já tenha morrido.
Apenas obter algumas informações sobre ele e poder pensar nele de quando em
quando, ouvindo esse disco. Acho que para ele não faria diferença se alguém lhe
dissesse que na sétima cidade da França, nas imediações da estação, há alguém
que pensa nele. Mas eu me sentiria feliz se estivesse em seu lugar; invejo-o.
Tenho que ir embora. Levanto-me, hesito-me por um momento; gostaria de ouvir a
negra cantar. Pela última vez.
Ela canta. Eis dois que se salvaram: o judeu e a
negra. Salvos. Talvez se tenham julgado perdidos de todo, afogados na
existência. E no entanto ninguém poderia pensar em mim como peno neles, com
essa doçura. Ninguém. Nem mesmo Anny. Eles são um pouco como mortos para mim,
um pouco como heróis de romance: purificaram-se do pecado de existir. Não
completamente, é claro – mas na medida em que um homem pode fazê-lo. Essa idéia
me perturba de repente, porque já não esperava nem isso. Sinto que algo me roça
timidamente, e não ouso me mexer porque temo que isso se vá. Algo que já não
conheço: uma espécie de alegria.
A negra canta. Então pode-se justificar sua
existência? Só um pouquinho? Sinto-me extraordinariamente intimidado. Não é que
tenha muita esperança. Mas estou como um sujeito completamente gelado após uma
viagem na neve que estivesse entrando de repente num quarto aquecido. Creio que
permaneceria imóvel perto da porta, ainda frio, e que arrepios lentos
percorreriam seu corpo todo.
Some of these
days
You´ll miss
me honey .
Anos mais tarde, nas entrevistas publicadas por
Simone Beauvoir, esta lhe lembra do final de A náusea, quando o herói ouve esta
música; Roquentin diz que gostaria de criar algo que se assemelha a isso. Ora,
isso o toca pelo que se pode chamar de sua beleza. Sim, mas se Some of these
days comove Roquentin, é porque é um objeto criado pelo homem, um homem muito
distante, que através de seus versos o atinge. Não que ele seja humanista; é
uma criação do homem que o mobiliza, que ele ama.
Quanto à pintura, Sartre viu reproduções. Não ia ao
museu quando tinha cinco, seis, sete anos, e via reproduções de quadros,
particularmente no célebre dicionário Larousse. Como muitas crianças, teve uma
cultura pictórica antes de ter visto um quadro. Mas nasceu no meio da música .
Houve uma obra de Albert Schweitzer escrevera sobre Bach.
Teve experiência de pintura sem relação com a
história da pintura. Viu um quadro que lhe pareceu que devia ser explicado. Foi
em Colmar. De Grünewald. Também gostava muito de Pietá de Avignon.
Na sua concepção há um escritor que fala bastante
bem de determinada obra musical: é Proust; mas é muito subjetivo. Escreveram-se
livros muito melhores, em sua opinião, sobre a pintura do que sobre a música.
Seu artigo sobre Calder deve ser de 1946, 1947.
Fê-lo para uma exposição de Calder em Paris. Calder não era inteiramente
pintura. Sartre preferiu escrever antes sobre a pintura do que sobre a música,
porque a música é o reflexo de seu tempo, da sociedade de seu tempo, mas de uma
maneira tão distante, tão indireta, tão difícil de captar, que parece quase que
independente dele; ao passo que a pintura é realmente uma imagem, quase uma
emanação da sociedade? Não será essa uma das razões.
A mãe era boa musicista. Tocava bem. Tomara lições
sérias de canto, cantava muito bem. Tocava Chopin, tocava Schumann, tocava
trechos difíceis; era menos versada que o tio de Sartre, Georges, mas gostava
muito de música.
A partir do quarto ano havia o piano de sua mãe que
ficava no salão em casa de seu padrasto; nas horas em que não tinha nada a
fazer, enfiava-se no salão e tentava tocar árias de que se lembrava; depois
comprara ou alugara operetas nos gabinetes de música de La Rochelle. De início,
aprendia lentamente e com dificuldade. Era sensível ao ritmo da música.
Para Nietzsche, o verdadeiro mundo é a música. A
música é o Inaudito. Quando a ouvimos, pertencemos ao Ser. Assim Nietzsche a
vivenciava. Não deveria cessar jamais. Mas cessa, e por isso temos o problema
de como continuar vivendo quando a música cessa. A 18 de dezembro de 1871
Nietzsche viaja de Basiléia a Mannheim, para lá escutar música de Wagner
dirigida pelo compositor. Voltando a Basiléia ele escreve a seu amigo Erwin
Rohde a 21 de dezembro: “Tudo o que (...) não se pode compreender com relações
musicais, produz em mim (...) realmente nojo e repugnância”.
O disco está arranhado. Mas a canção não tem
arranhões. Não pode ser afetada pela modificação acidental do grosseiro veículo
que a comunica. Posso queimar o livro em que está impresso um poema, mas os
poemas, como tais, são logicamente incombustíveis.
Por trás do existente, que vai de um momento ao
outro aos tropeções, sem passado e sem futuro, por trás desses sons que se
decompõem dia a dia, são falquejados e deslizam para a morte, a melodia
permanece a mesma, jovem e firme, como uma testemunha implacável.
Roquentin romantiza o compositor barato, autor da
melodia, e a intérprete negra que a canta, e conclui que através da música
superficial e viva eles foram salvos de algum modo, tiveram a existência de
algum modo justificada, pois produziram algo além da existência.
Assim também Roquentin será salvo e justificado –
se conseguir escrever seu romance: “por trás das palavras impressas, das
páginas, algo que não existe, algo que estaria acima da existência”.
“Todo ente nasce sem razão, prolonga-se por
fraqueza e morre por encontro imprevisto” , assim escreve Roquentin numa cena
anterior aquando se decide a escrever um romance. Ele se decide e para os
leitores o romance está escrito. A realização do que antes era irrealizável. O
romance é uma aventura. Em A náusea, Sartre parece afirmar que ela não existe.
É errado. É melhor dizer que é um irrealizável.
O que há de perturbador nesses irrealizáveis é o
fato de poderem ser pensados até o fim e com detalhes e, por meio das palavras,
serem realizados por outros. Ter uma aventura não é se representar, mas
“estar-na-aventura”. A arte é um dos meios que possuímos para fazer realizar
vivamente e “imaginariamente”, por outros, os nossos irrealizáveis. Os
irrealizáveis não são em absoluto da mesma natureza que os imaginários.
Tudo o que Sartre desejou em sua juventude ele
teve, não do modo como desejou. Isso ele pensa, comparando aquilo que se
lembrou de ter desejado com aquilo que obteve. Tudo o que Sartre desejou e
pro-jetou em sua carreira de escritor-filósofo ele teve, até mesmo a
notoriedade, apesar de que fora incompreendido, sabendo ele disso. Pensa, mas
não vê. Sartre deseja o sucesso. Assim, o sucesso, esse objeto comovente, entre
todos, e que se pode muito bem captar quando se trata de outra pessoa,
escapa-se por princípio. Aron diria que é uma ilusão, uma forma de reclamar
para si o ponto de vista de Deus (isto é, do ser para quem “os irrealizáveis
são realidades”).
Tomando em consideração isto, supõe Roquentin, ele
poderia ser capaz de aceitar-se a si mesmo. Considerando esse ponto de vista,
as obras de arte estão fora da realidade, como formas platônicas . Some of
these days é como a Urna Grega de Keats, uma coisa bela e uma eterna alegria;
aconteça-lhe o que for, nada poderá acontecer às figuras que mostra, logicamente
congeladas nas posturas e gestos que lhes foram dados pelo artista, para sempre
jovens e perpetuamente amantes.
Escrever um romance é o desafio de libertar-se de
todos os não, impostos pela presença da náusea: o não-saber, o não-sentido, o
não-ser.
Roquentin diz à medida que o tema se desenvolve,
primeiro, que a Náusea não está dentro dele, mas, ao contrário, ele é que está
“dentro dela” e, a seguir, que a Náusea é ele próprio. Uma transição como essa
parece, exteriormente, corresponder às etapas pelas quais (1) o homem entra em
contato com o mundo dos objetos e simplesmente os utiliza (ausência da náusea);
(2) percebe o caráter ameaçador dos objetos (a pedra, a náusea na mão); (3) é
envolvido e engolido pelo mundo dos objetos (está dentro da náusea); e (4) ele
próprio é reificado (ele e a náusea são uma só coisa, ele é “ela”).
A náusea, uma obra-prima e uma angústia sem
limites, devendo o homem aí, diante da obra, refletir-se, não há outra
escapatória, decide-se continuar o mesmo para sempre ou decide-se por se
transformar, apesar da angústia, ir à busca de sua essência.
A náusea estava um pouco aquém das próprias idéias
de Sartre. Ou seja, ele já não estava por criar objetos fora do mundo, belos ou
verdadeiros, como acreditava antes de conhecer Simone de Beauvoir, mas havia
ultrapassado isso. Não sabia exatamente o que queria, mas sabia que não era um
belo objeto, um objeto literário, um objeto livresco que se criava, era outra
coisa. Sob este ângulo de visão, Roquentin marcava antes o fim de um período do
que o começo de outro.
Qual seria a concepção de Sartre a respeito do
próprio artista? A esse tempo, era como a de Yeats em “Sailing to Byzantium”,
em que busca elidir a contingência, transformando-se em algo fora da natureza:
Once out of
nature I shall never take
My bodily
form from any natural thing,
But such a
for as Grecian goldsmiths make
Of hammered
gold and gold enamelling
“Uma pintura”, escreveu Sartre num de seus ensaios
sobre a imaginação, “não pode ser iluminada pela projeção de um raio de luz
sobre a tela: é a tela que fica iluminada, não a pintura” . A mesma coisa a
respeito das distinções entre as sentenças e as proposições que expressam.
Fazer um ensaio sobre Giacometti ou narrar Le mur
seria a mesma coisa? Não é a mesma coisa. Ainda assim é preciso um tempo para
entrar nos quatros de Giacometti. E o tempo da leitura não é inteiramente o
termo da criação, mas os dois se comungam. E quando o leitor ler o ensaio, ele
criará enquanto leitor, fará aparecer o objeto tal como lhe foi indicado pelo
autor.
As novelas mudaram de significação. Sartre quis
escrever novelas para transmitir, através das palavras, determinadas impressões
espontâneas. Perdeu Le soleil de minuit, eram impressões espontâneas. Seu
projeto tomou um caráter mais amplo; aquilo podia ser a visão de um momento
bastante forte para ele.
Uma sentença pode ser iluminada, mas seu
significado permanece tão obscuro quanto ele o achou, e o significado de uma
sentença impressa há muito tempo pode sofrer mudanças sem que estas se reflitam
na química da tinta da linha impressa.
O que Sartre exalta aqui é a diferença entre um
mero sinal e um sinal significativo e não está claro que estejamos tratando de
duas ordens de realidade complexamente inter-relacionadas, como as formas
platônicas e suas aparências no mundo sublunar, como é o caso da distinção
entre uma coisa e a regra para a sua interpretação.
As obras de arte, insiste Sartre, gozam de uma
espécie de realidade especialmente privilegiada e há por certo um sentido no
qual se pode traçar um paralelo entre elas e os círculos em que meditava
Roquentin. As obras de arte são totalmente determinadas, no sentido de que há
certas questões a respeito do conteúdo delas que não se pode propor.
A casa da tia de Proust em Iliers tinha certo
número de degraus, que podiam ser contados por um visitante, mas as escadas da
casa da Tia Leonie, em Combray, não tinham um número determinado de degraus, e
não há como saber quantos eram.
Não é pois o mesmo caso da raiz, que tem sempre
respostas a quaisquer perguntas que se façam sobre ela. É como se a obra de
arte fosse a interseção de dois mundos, um que ocupamos e outro que não podemos
ocupar; e a própria obra de arte está, mas não é do mundo ao qual nós estamos
sujeitos.
A visão hiperestética, preciosa, da arte e da
criatividade artística parece estar e está afastada da concepção, que
identificamos como de Sartre, da literatura “engajada” e dos artistas
“comprometidos”, a revelar a realidade em vez de criar uma realidade
alternativa, sendo a questão não ficar fora do mundo, mas transformá-lo.
A linguagem usada para fins literários e, nas
páginas finais e redentoras de A náusea, para propósitos transformadores e
salvadores, cabe na rubrica de poesia, em termos das distinções expressas nesse
ensaio, no sentido de que o seu produto é uma espécie de objeto verbal, em que
as próprias palavras são, por assim dizer, os objetos nos quais resulta o ato artístico.
No sentido generalizado em que podemos pensar as coisas como opacas, existentes
em si mesmas e sem referências ulteriores, a poesia é opaca.
A valorização do mito permite a Nietzsche combater,
ao mesmo tempo, em duas frentes: primeiro, contra uma concepção
“histórico-natural” da linguagem, esquecida de suas raízes míticas e, segundo,
contra a historiografia triunfante do XIX, que via um corte radical entre Mito
e Logos.
No que tange à análise originária, que problematiza
tanto a racionalidade como a irracionalidade, o interesse dos filósofos
existenciais pela verdade do mito brilha numa outra luz. Na luz de uma reflexão
em que seu pensamento procura, retornando à proveniência, recuperar as forças
de seu vigor originário.
A verdade do mito não é apenas uma verdade entre
outras verdades. É inseparavelmente o problema da filosofia e o problema da
verdade. O que o filósofo busca na verdade do mito é a verdade da própria
filosofia. O mito, as lendas, os sonhos, a loucura, a poesia, a religião, para
terem lugar no país da verdade, guardado pela filosofia, necessitavam das
credenciais da razão.
A obra literária é alguém que reconstitui o mundo
tal como o vê, através de um relato que não visa diretamente ao mundo, mas que
se refere a obras ou personagem inventados. E foi mais ou menos isso que ele
quis fazer.
O estilo é uma coisa estranha. Far-se-ia mister
discutir para saber se vale a pena escrever uma obra com estilo e seria preciso
perguntar-me se a única maneira de ter estilo é fazendo como Sartre o fez,
corrigir o que se escreve de maneira que o verbo corresponda ao sujeito e que o
adjetivo esteja bem colocado, etc.
No âmbito da atitude poética, permanecemos
preocupados com as palavras como palavras, e não com aquilo de que, no contexto
da prosa ou do discurso comum, as palavras tratam, ou com aquilo que elas
habitualmente se referem. Um poeta expressa emoção, mas, quando o faz, a emoção
é literalmente posta em palavras: as palavras não são acerca da emoção, mas a
própria emoção metamorfoseada.
Como em geral ocorre com a metamorfose, algo assim
como uma ordem mágica: os poemas são coisas, e não sobre coisas, mesmo se
feitos de palavras: e o poeta é uma espécie de transformador ou artífice, como
encarece o conceito etimológico de poiesis. Na prosa, as palavras são usadas de
maneira transparente – limpidez da linguagem, estilo, forma, busca da estética,
do belo, da beleza exigem a clareza das idéias, e a preocupação constante é com
a imagem que revelará transparência - transportando-nos a uma realidade além
delas, e nós as reconhecemos como não possuindo substância própria para atrair
a compreensão.
Assim concebidas, Sartre supõe que nada exista em
comum entre prosa e poesia. São tão díspares quanto o uso e a menção de um
termo. Mas é justamente essa disparidade em que habita o fascínio, a magia da
arte, o sonho de adesão às letras, a busca de síntese a partir de tese e
antítese. Até mesmo numa tese buscar a reunião da linguagem poética.
A diferença de função entre prosa e poesia no ato
literário está no seguinte: os poetas usam as palavras precisamente da maneira
errada de os poetas serem “engajados”, enquanto que o prosador as utiliza de
tal maneira que não pode deixar de estar engajado. Ao invés de colocar as
coisas em palavras, ele usa palavras, como os oradores, e por meio delas faz
alguma coisa: “designa, demonstra, ordena, recusa, interpela, suplica, insulta,
persuade, insinua” - “descasca os pepinos”, “destila o ácido crítico” -
palavras de Sartre à pág. 04 de As palavras . Na prosa, as palavras são antes
ação do que coisas.
Já que falar é agir, falar discursivamente é ipso
facto estar engajado e poder-se-á sempre suscitar a questão de o que alguém
pensa estar fazendo quando fala; que aspecto do mundo pretende revelar ao falar
dele – a linguagem desvendando o mundo de maneira muito semelhante à da
consciência. Revelar é mudar, mesmo que apenas à medida que tal revelação seja
ela própria uma mudança e, sendo assim, não existe de fato nenhum uso ideal
não-poético da linguagem talvez somente usos ineficientes .
Torna-se então realizável em A náusea a
fundamentação da linguagem poética num jogo interessantíssimo. Roquentin
decide-se a escrever o romance. Mas ele já o escreveu, o romance é a sua
experiência e vivência, os seus fracassos, frustrações, desilusões intimas e
emocionais com uma mulher . É o leitor quem intui e percebe a obra estar
pronta.
Assim, a poesia é um reflexo do real, mas um
reflexo revelador, se investigamos à luz de Marx. O real pode se olhar de
frente, vendo coisas que normalmente não vê, e, se prestar atenção, verá coisas
inusitadas, o incomensurável é captado e revelado no delimitado. Fora Marx quem
afirmou ter conhecido mais sobre a sociedade francesa da época da Restauração,
lendo Balzac, do que lendo os sociólogos que escreveram explicitamente para
mostrá-la.
Num tipo de frase que lhe é característico, Sartre
diz: “Seja qual for o ângulo pelo qual nos aproximemos, a obra de arte é um ato
de confiança na liberdade do homem”. Na verdade, toda a literatura o é.
Assim, quer seja ensaísta, panfletário, satírico ou
romancista, quer fale apenas de paixões individuais ou ataque à ordem social, o
escritor, homem livre que se dirige a homens livres, tem um único objeto: a
liberdade .
À luz do final de A náusea, quando Roquentin sai
definitivamente de Bouville “Demain il pleuvra sur Bouville”, “Amanhã vai
chover em Bouville”. A água, símbolo, imagem, arquétipo, metáfora da
“purificação”, sendo a fundamentação da cidade da “lama”, busquemos fundamentar
a estética, a beleza nesta novela, só superadas por As palavras.
A água é o grande poder da subtração. Por onde
passa, limpa. Imaginei, então, um ritual para a celebração, não da duvidosa
passagem de ano, mas para o alegre acriançamento do corpo: o mergulho nas
águas. As águas têm o poder de subtrair do corpo e da alma as coisas pesadas
que a passagem do tempo foi neles sedimentando. As águas nos reconduzem ao
esquecimento . Elas lavam o corpo envelhecido e ele volta a ser criança.
Criança é mistério humano vestido de ternura. É o
grandioso escondido no pequeno. O consistente abrigado na fragilidade. O longo
amanhã encolhido no hoje. O original ainda não visto, ainda não dito, ainda não
encontrado. O humano com mais interrogações do que respostas. O núcleo de vida
que vale mais do que todo o universo físico.
A criança condensa a essencialidade humana. Não é
apenas promessa de homem. O que lhe falta é desenvolver-se, é amadurecer. Toda
a densidade do homem está pulsando na criança. E, ontologicamente, ser pessoa.
Não bastam visão psicológica e percepção moral para compreender a criança. É
preciso vê-la como “clareira do ser”. Há que reconhecê-la como pólo do mundo,
centro da história. Não pode ser reduzida a elemento cósmico, o filamento
social, a objeto lúdico. É “Parousia” antropológica. É a manifestação do ser
que está chegando, no ser que já chegou.
De um lado, a criança é ser frágil, indefeso,
necessitada de ajuda e cuidados. Permanentemente exposta a riscos, é expressão
de fragibilidade humana. Por outro lado, é o universo repleto de
potencialidades insondáveis. Durante curto espaço de tempo, vive muitas fases.
É intenso e irrequieto dinamismo. Verdadeira precipitação ontogenética. A cada
momento, nova explicitação de seu ser, nova descoberta das referências ambientais.
Em relação à fase infantil, nova descoberta das referências monótonas. A
infância é pura originalidade. É o “ser repleto de efervescência utópica”
lembrando sentença de E. Bloch. A criança tem semblante de madrugada. É o
amanhecer antropossêmico. O “não-ainda-ser” vai despontando gradativamente, e a
criança desatasse em linguagem plurissignificativa, alastra-se em decisões
históricas, projeta-se em crescente criatividade.
Um mergulho nas águas: água do mar, água da chuva,
água de cachoeira, água de rio, água de lagoa, água de piscina, água da
banheira, água do esguicho, qualquer água – ou, se por qualquer razão esses
mergulhos não forem possíveis, o mergulho na água da imaginação.
É mergulhar no ser, captar a nossa sintonia com a
totalidade, é sentir que somos chamados ao ser pleno, e não ao pedaço do ser.
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 30 de novembro de 2016)
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