**ATEISMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO** - Manoel Ferreira


FInal do século XIX: o filósofo alemão Nietzsche anunciou às quatro estações do século a morte de Deus, “Deus está morto”. O mundo teria entrado num processo de ateísmo irreversível e nada poderia deter? O homem seria o único quem responderia por sua vida, morte, atitudes e responsabilidades? Seria o “homem-Deus”? Seria projeto tentador – quem conseguisse tal proeza, poder-se-ia sentir o “mais” realizado de todos.
Contudo, há caminhos a serem per-seguidos no sentido de nos tornarmos homens, seres humanos, conscientes de nossa vida, cientes de nossas responsabilidades, compromissos, missões no mundo. Nietzsche, ao longo de toda a sua trajetória de filólogo a filósofo, de filosófo, propõe-nos uma consciência de quem somos no mundo, nossa caminhada no mundo em busca de realização. Sugere-nos Nietzsche a “vontade de poder” como projeto e trajetória, objetivo, como passos a serem dados na vida, no mundo.
Baudelaire observou que, numa cultura cristã, é inconcebível e blasfematório que Deus seja representado rindo. Uma teologia cristã certamente não pode fazer da Criação os jogos e brincadeiras de uma criança. Os comentaristas tentaram encontrar o simbolismo dessas representações, segundo Gilles Deleuze: “A dança afirma o devir e o ser do devir; o rir, a risada afirmam o múltiplo e o uno do múltiplo; o fogo afirma o acaso e a necessidade do acaso”.
Nietzsche conhecia de perto o cristianismo. Neste sentido, os dados biográficos são inquestionáveis, vindo de uma família de luteranos praticantes. Recebeu a formação educacional e teológica necessárias para prosseguir na jornada de pastor. Estudou os evangelhos, revirou-os, observou aspectos linguísticos, literários, normativos e estruturais. Preocupou-se com a forma e o conteúdo da Bíblia. A obra nietzschiana se situa em oposição frontal ao cristianismo. E quando algo existe em contraste ao outro, é porque relevância deste outro é vital.
Zaratustra, quando substitui a Criança bíblica pelo “céu da contingência, o céu da inocência, o céu do acaso, o céu do capricho”, mistura a dança e o jogo.



Ó céu sobre minha cabeça, céu puro, céu alto! A pureza aos meus olhos é que não há mais eternas aranhas, eternas teias-de-aranha da razão .



Gazin, Recordações da casa dos mortos, cujo aspecto dava a Dostoiévski a impressão “de uma enorme, gigantesca, aranha do tamanho de um homem” (a aranha é uma imagem freqüente em Dostoievski como símbolo do mal absoluto) pertence à espécie de gente que fascinava o escritor por seu horror.
Quando “todas as coisas” preferem dançar com os pés do acaso, é que se trata exatamente de uma cosmologia, em constraste com a vontade do Criador bíblico, racionalizado pela teologia e pela metafísica. Nietzsche, com efeito, observou isso ao comentar o famoso fragmento de Heráclito sobre “isto não é um orgulho culpável, é o instinto de jogo incessantemente despertado que apela para o dia dos mundos novos”.



Pois o riso reúne em si toda a maldade do mundo, mas santificada e libertada por sua própria felicidade e se o alfa e o ômega de minha sabedoria é que tudo que pesa deve tornar-se mais leve, todo corpo tornar-se dançarino, todo espírito tornar-se dançarino, todo espírito tornar-se ave – está efetivamente aqui o alfa e o ômega de minha sabedoria .



Nietzsche faz alusões à lenda do pássaro alcião que faz seu ninho nas profundezas das ondas e amaina as tempestades. Alciônica é a sabedoria que supera a infelicidade trágica sem desconhecê-la nem negá-la. O deus terrível, o deus cruel, o deus destruidor é também o deus risonho, o deus que ri com um riso “sobre-humano e novo”.
A famosa fórmula “Deus está morto” à qual se reduz, discrimina, negligencia, subestima, nega com muita freqüência o pensamento de Nietzsche sobre a religião não pretende abolir todo o sentido do divino, ela não anuncia a inconsistência de toda crença, mas anuncia a possibilidade, além do deus cristão, de um retorno de Dioniso.
Nietzsche proclama de forma muito natural, bem lúcida, transparente e consciente que todos os valores até então pré-estabelecidos pela moral cristã devem ser mesmo extirpados, eliminados vez por todas, de modo que possamos abrir novos rumos aos novos valores. A percepção de Nietzsche é sua capacidade de verificar uma mudança no processo de desvalorização dos valores no qual se apoderou a moral cristã. Nietzsche nos fornece a primeira idéia de seu profjeto de transvaloração contra, especificamente, o cristianismo. “O cristianismo é entendido por Nietzsche como um substrato ético-religioso das mais importantes estimativas de valor do homem moderno” (Giacóia, 1997, p. 19), valores que representam a mais pura expressão da decadência do homem.
O projeto nietzschiano de transvaloração de todos os valores tem por objetivo fundamental operar agora no âmbito de tais valores estabelecidos pela Igreja cristã em dois milênios de história, ou seja, Nietzsche nos informa que os valores foram transvalorizados por completo e se esteabeleceram ao longo dos tempos e que agora esses mesmos valores deve ser também transvalorados, sob a forma de uma “vontade de poder”.
Para compreendermos melhor o significado desse termo atribuído por Nietzsche em sua filosofia, recorremos aos ensinamentos do célebre pensador Martin Heidegger: “Vontade de poder é, em suma, o nome para o caráter fundamental do ente e para a essência do poder. (...) essa expressão denomina aquilo de que parte toda instauração de valores e ao que todas elas retomam. (...) a vontade de poder enquanto o princípio de nova instauração de valores não tolera nenhuma outra meta estabelecida fora do ente da totalidade. No entanto, uma vez que todo ente enquanto vontade de poder, isto é, enquanto o superpotencializar-se que nunca se extingue, precisa ser um constante “devir”, esse “devir” jamais pode se movimentar progressivamente para uma “meta” fora de si mesmo, mas encerrado no círculo de elevação de poder, precisa retornar a essa elevação. (...) o caráter fundamental do ente enquanto vontade de pode determina-se, com isso, ao mesmo o eterno retorno do mesmo que diz como o ente dotado de tal essência na totalidade precisa ser” (HEIDEGGER, 2007, P. 25-26)
Um primeiro ponto que devemos considerar na obra O Anticristo de Nietzsche está relacionado ao “tipo psicológico do salvador”, ou seja, para o filósofo alemão não interessava o que Jesus disse, realizou ou a maneira como morreu, mas sim saber se foi possível imaginar seu tipo e se ele foi conservado pela tradição ou não. Nietzsche nos revela através de sua grandiosa filosofia uma mensagem interpretativa sobre uma diferença axiológica entre a moral cristã e a verdadeira práxis crística ensinada por Jesus de Nazaré (Jesus de Nietzsche). A tipologia psicológica de Jesus significa, para Nietzsche, a total superação dos valores morais e metafísicos atribuídos pela teologia cristã. Na verdade, o que o filósofo alemão intencionava era estabelecer um alerta contra a moral teológica estabelecida em Jesus Cristo. Com efeito, em uma dessas passagens, ele nos ensina que “no fundo só existiu um cristão, e esse morreu na cruz. O evangelho morreu na cruz” (NIETZSCHE, 2000. p. 73)
Se a conseqüência da morte de Deus é a irrupção do “niilismo”, quem é, exatamente, esse “mais sinistro de todos os hóspedes”? “Que significa niilismo? Que os valores supremos se desvalorizaram. Falta o fim; falta a resposta ao porquê”. Os valores supremos, a cujo serviço o homem consagrava a sua vida, foram criados, enquanto valores sociais, para o fortalecimento do homem. Enquanto tais, eram considerados como mandamentos de Deus, como “realidades”, como mundos “verdadeiros”, como esperança e vida futuras.
Para Nietzsche, o “pessimismo” de Schopenhauer era a expressão filosófica desse desalento: se os valores se desvalorizam, é a nossa “existência” que também perde o seu valor.
Em alguns fragmentos póstumos, Nietzsche dirá que o niilismo, enquanto “estado psicológico”, faz seu aparecimento em três situações:



1) quando se tiver buscado um “sentido” em tudo o que ocorre, sentido que não se encontra ali, até o ponto em que aquele que o buscava termina por abater-se. O niilismo é a tortura desse “em vão”. Esse sentido poderia ser o cumprimento de um cânone ético superior em tudo o que ocorre, ou a realização, mesmo parcial, de um estado de felicidade universal;
2) o niilismo faz sua irrupção quando o homem, que se acreditava parte de um todo organizado, um todo em que imperava uma unidade, em que ele se sentia em conexão profunda com esse todo que lhe é infinitamente superior, em que ele era um modo de divindade, descobre que não existe semelhante totalidade. Agora o homem perde a crença em seu próprio valor, visto que através dele não atua nenhum todo infinitamente valioso. O niilismo, enquanto estado psicológico, terá ainda uma terceira e última forma;
3) esta terceira e última figura do niilismo é a mais abrangente de todas e traz consigo a verdade das duas primeiras. É a figura mais abrangente: ela designa a condenação do “processo”, seja uma desvalorização do “homem”. Ela é a verdade das outras figuras, já que as demais tacitamente a supõem. A primeira figura a supõe enquanto decepção em face de uma suposta finalidade do vir-a-ser. Afinal, é a uma transcendência divina que devemos a mania de perguntar-nos pela finalidade dos processos. “A pergunta do niilismo, ´para quê?´, vem do hábito que houve até agora, em virtude do qual o alvo parecia posto, dado, exigido de fora – ou seja, por alguma autoridade sobre-humana”. A segunda figura do niilismo também supõe a terceira, assim como um todo organizado supõe um organizador. Assim, em Pascal, a incerteza cosmológica oriunda do fim do geocentrismo, o “silêncio dos espaços infinitos”, só encontra sua cura na certeza obtida pela fé. “Sem a fé cristã, pensava Pascal, sereis para vós mesmos como a natureza e a história, um monstro e um caos. Nós cumprimos essa profecia”. Sendo assim, a terceira figura do niilismo resume todas as demais e traz consigo a verdade destas, e por isso não é à toa que Nietzsche a chama de “forma suprema do niilismo”. Donde a origem do niilismo na negação do Deus transcendente e a correlação entre a morte de Deus e a desvalorização de todos os valores.



Esta ou aquela crença pode ser abolida. Poderíamos refutar o instante religioso? Nietzsche teve muitas vezes citada esta fórmula: “no fundo, só o deus moral é refutado”. Não devemos entender que Nietzsche propunha uma reconstituição, seja lá qual for, de um neopaganismo como foi tentado às vezes no fim do século XIX; é exatamente de uma filosofia que se trata, de uma filosofia trágica da qual a Antiguidade talvez só tenha conhecido um breve esforço, de uma filosofia que não poderia negar o divino (theion), sem desconhecer a própria vida, de uma filosofia sem teologia, mas não sem “theiologia”.



Partindo de um conceito geral, a idéia de Deus pode ser compreendida a partir de dois conceitos; primeiro o de causa, onde Deus é o princípio que torna possível o mundo ou o ser em geral; o segundo, atribui a Deus a fonte e a garantia de tudo o que há de excelente, eterno e imortal no mundo, a pedra angular do amor, compaixão, solidariedade, sobretudo no mundo humano . Temos, contudo, uma concepção geral de Deus, que só se tornará sólida a partir da perspectiva em que for engendrada.
Para compreensão precisa desta introdução – pedra angular em cujas linhas tencionamos de-monstrar o “espírito subterrâneo” na obra e na vida de Dostoievski, tendo como pedra angular de nosso ensaio esse capítulo, um dos pontos culminantes desse trabalho, e sobretudo o próprio Dostoievski, outro ponto que nos encaminhou no conhecimento de várias idéias e pensamentos, análises e interpretações de Joseph Frank -, faz-se necessário, de antemão, compreendermos o que entendemos por ateísmo, absolutização, niilismo; conhecermos o “niilismo europeu”; daí, transcendermos, de-monstrarmos a experiência mística, que está no princípio de toda experiência religiosa genuína e autêntica e é sua culminância e plenitude; porém, voltado para uma concepção teísta onde Nietzsche engenhará uma reflexão crítica.
Só a partir desta reflexão crítica torna-se legível e inteligível a perspectiva teísta e mística em que o universo dostoievskiano culminou, a partir da fé, liberdade, responsabilidade, da busca de comunhão do sofrimento, dor, vivência e experiência, e o desejo, a vontade, sabendo, tendo consciência, re-conhecendo, da redenção e ressurreição em nível da busca da espiritualidade, eternidade, imortalidade.
Há quem reclame por um encontro de ambos, já que estiveram na Basiléia na mesma ocasião, que não houvera, e estes quem reclamam dão muito a entender que seria uma rejeição mútua, quando se diz respeito às posições de cada um acerca de Deus, do cristianismo, não se suportariam mutuamente. Contudo, não há de se esquecer de citações de Dostoievski em O anticristo, haver Nietzsche confessado que fora quem o ensinou a psicologia, a quem devia muito as lições.
Ao tomar ciência da literatura do romancista russo F. Dostoiévski, Nietzsche ficou em absoluto extasiado. Passou-o imediatamente ao seu elenco de gênios e referências-chave. Na ficção de Dostoiévski, era o ceticismo, niilismo, o homem em confito com deus, que prendiam a atenção de Nietzsche, fascinado pelos cenários e personagens das obras primas Crime e Catigo (1867) e Os Irmãos Karamzovi (1879). Dostoiévski trazia as marcas de uma existência angustiada, atormentado pelas questões do bem e do mal, do pecado e da redenção, de modo que Nietzsche fundamentalmente interpretará a construção literária na prosa do escritor russo. Nas notas deixadas em rascunhos durante a internação de 1886-1887, Nietzsche chama Dostoiévski de “Único psicólogo com quem tenho algo a aprender” e o menciona como responsável pela sua descoberta de Stendhal. O niilismo é também um considerável elo.
Apesar de não concordarem em alguns pontos que analisaremos ao longo do trabalho. Dois monstros frente a frente, filosofia e literatura, de ambas as partes, outras experiências e vivências. Realmente, nesse aspecto há de se reclamar o não encontro dos dois: Dostoievski e Nietzsche.
Desde o início da primeira leitura de O anticristo, o questionamento presente e forte que se nos apresenta é o por quê de, exatamente, a morte de Deus deva implicar a desvalorização dos valores? Este questionamento perpassa toda a obra, é um dos temas mais importantes da filosofia, do pensamento nietzscheano, pressupõe alguns conhecimentos a priori acerca do pensamento dele, de seus passos. Nietzsche parece estabelecer entre os dois eventos uma relação de premissa e conclusão:
Que ingenuidade! Como se subsistisse a moral quando falta um Deus que a sancione! Um além é absolutamente necessário, quando se quer conservar sinceramente a fé na moral .
Ser necessário ter a certeza teórica da existência de Deus para que os valores morais sejam validados, esta é, sem dúvida, uma evidência imediata para o tomismo: ali só há “bem” referido ao Bem Supremo ou, como diria Nietzsche, não há valor sem uma instância legisladora que opera do exterior. Assim São Tomás estipulará que Deus, como projeção de todas as perfeições, é o Bem de todos os bens, e tudo o mais será dito “bom” por participação, isto é, por ter semelhança com a bondade divina.
Todo bem, enquanto apetecível, orienta-se teleologicamente ao Bem supremo; e como o supremo, em qualquer gênero, é causa de tudo o que está compreendido nele, o Bem supremo é o fundamento dos bens. São Tomás concordaria com Nietzsche: a morte de Deus traduz-se imediatamente na desvalorização dos valores, já que a certeza na existência do Bem supremo é a condição da certeza relativa aos valores morais.
Importantíssimo se torna a citação de Os irmãos Karamázovi seguinte,



Se não há imortalidade da alma, então não há virtude, o que quer dizer que tudo é permitido .



muitíssimo traduzido, divulgado, “sem Deus, tudo é permitido”, para compreendermos, nessa busca da comunhão do pensamento filosófico nietzscheano, literário dostoiévskiano, quando com essa comunhão, adesão, podemos contemplar o niilismo europeu, a obra de ambos, e repensarmos acerca de nossos valores, de nossas realidades, sonhos e utopias.
Se a correlação entre a morte de Deus e a desvalorização dos valores é convincente para o tomista, é porque ela apenas reafirma seus pressupostos. Essa correlação não seria convincente, por exemplo, para o leitor de Kant, e no limite só exprimiria a evidência de que quem a formula não meditou o suficiente sobre a Crítica da razão pura. Se ali se proibia todo e qualquer conhecimento teórico sobre a existência de Deus, isso não fazia de Kant um fanfarrão do niilismo, nem tornava a Crítica da razão prática um exemplo gritante de inconsistência na filosofia. Dúvida que não deixou de ser insinuada por Victor Goldschmidt. “Por que – pergunta ele -, se Deus estivesse morto, tudo seria permitido? Para acreditá-lo (e desejá-lo), é preciso nunca ter compreendido a Crítica da razão prática...” .
Num diálogo entre ambos, com efeito, Nietzsche relembraria que Deus, eliminado do conhecimento teórico pela primeira Crítica, permanece um “postulado” da razão prática, algo que o agente sempre deve supor para realizar a lei moral. Não nos esqueçamos de que Dostoievski lera Crítica da razão pura, Critica da razão prática, escrevera ao irmão, logo que saiu da penitenciária, tinha com esta leitura seus propósitos e objetivos. Excluído do domínio do conhecimento teórico, Deus subsiste enquanto “ideal” – e o ideal transcendental, não sendo objeto de conhecimento teórico, nem por isso deixa de ter uma “significação”. Eliminemos os postulados da razão prática, diria Nietzsche, e vejamos então o que acontece com a moral; eliminemos até mesmo a “significação” Deus, e verifiquemos o que resta do imperativo categórico...
Diante dessa apresentação, podemos compreender a correlação entre a morte de Deus e a desvalorização dos valores? Ainda não. Concedamos tudo a Nietsche: o Deus clássico não figura mais em nosso horizonte nem como existência demonstrada, nem como significação ou postulado.
Nem assim o niilismo parece ser a conseqüência necessária da morte de Deus. No sentido dessa compreensão suficiente consultar Sartre. Sartre situa o “ponto de partida” do existencialismo na evidência de que “se Deus não existe, então tudo é permitido”, é para concluir, aparentemente com Nietzsche, que com a morte de Deus “não encontramos, diante de nós, valores ou imposições que nos legitimem o comportamento” .
A libertação pela contemplação estética, pela moral da piedade, da compaixão, da solidariedade, pela abnegação da vontade por ela mesma, supõe que seja abolido o egoísmo do desejo individual e que seja reconhecida a unidade profunda da vontade de viver.
As formas do princípio de individuação, muitas vezes evocado no Nascimento da tragédia, são as do mundo fenomenal: espaço, tempo, causalidade. Schopenhauer admite que a individualidade tem raízes profundas no mundo da vontade, sem falar da multiplicidade das idéias. Sua metafísica sempre negou ser uma mística. Nietzsche adota uma interpretação da metafísica que é redutora, como já era a de Wagner, e dá prioridade à oposição entre o individuo e a vontade “universal”, isto é, entre a visão apolínea e o êxtase dionisíaco:
Poderíamos caracterizar o próprio Apolo como a magnífica imagem divina do princípio de individuação, cuja atitude e olhar exprimem aos nossos olhos todo o prazer e a sabedoria da aparência única à beleza.
De outro lado,
Transponde em quadro o Hino à alegria, de Beethoven, e não deixeis vossa faculdade de imaginar para trás, quando milhões de seres se prostram tremendo no chão: é assim que se pode aceder ao dionisíaco [...] O homem não é mais artista, mas tornou obra de arte; o que se revela aqui, no frêmito do êxtase, é a força artística da natureza inteira à busca do supremo apaziguamento voluptuoso encontrado no Um originário. Com a argila mais fina o mármore mais precioso, é modelado, é talhado o homem e, com os golpes de cinzel do demiurgo dionisíaco, retine o apelo do mito eleusiano: “milhões de seres, vós vos prostrais por terra? Mundo, pressente teu criador .
Como é possível o poeta lírico como artista? A resposta não pode estar numa dialética interna à poesia, mas na identidade, reconhecida na Antiguidade, porém esquecida desde então, do poeta e do músico – em verdade, uma de nossas intenções ao longo da leitura da vida e obra de Dostoievski é que a dialética interna habita na prosa de Dostoievski, dialética que se multiplica, dialéticas-moventes, como a concebemos, em busca da totalidade da vida, a Vida mesma, nossa intenção de demonstrar isso nas páginas que se seguem.
Nietzsche cita o testemunho de Schiller para quem um estado de “alma musical” precede a idéia poética. Poderíamos citar Paul Valéry dizendo do Cimetière marin: “Ele nasceu, como a maioria de meus poemas, da presença inesperada no meu espírito de um certo ritmo”, e ainda: “Do que me lembro é de ter tentado manter condições musicais constantes, isto é, que me esforcei para obedecer a cada instante à vontade ou à intenção de satisfazer o sentido auditivo” .



Manoel Ferreira Neto.
(*RIO DE JANEIRO*, 28 de novembro de 2016)


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