**SEMANA //Blog **BO-TEKO DE POESIAS** - 18-24 DE NOVEMBRO DE 2016** - Manoel Ferreira
FERNANDO
PESSOA E DOSTOIÉVSKI: DESDOBRAMENTO DE PERSONALIDADE
Arrostar
a questão da heteronímia em Fernando como a manifestação da multiplicidade do
Um, é inscrevê-lo num certo hegelianismo , numa filosofia da presença e da
totalidade, numa teologia. O múltiplo, como complementar do Um, constituiria
uma alteridade em relação que terminaria por assegurar a unidade do mesmo.
O
que se passa em Pessoa não é a multiplicação do mesmo em outros, mas o
des-encadeamento de uma alteridade tal que o retorno ao Um se torna impossível.
Nele, o Um se multiplica antes mesmo de se constituir como ser particular, num
momento em que ele ainda é indeterminação pura e puro vazio, difuso no Ser em
geral. A negação pessoana é, de certa forma, negação precoce (se continuarmos a
nos referir ao sistema hegeliano). Essa negação resulta não na determinação do
Ser (que seria o Um do Ser-para-si) mas na determinação do não-Ser (que é o
vazio, como o que ainda não é); por outras palavras, na indeterminação.
Efetuando-se antes da definição do particular, a multiplicação não é a do Um,
mas a do Outro.
Vale
ressaltar e sublinhar que, no que tange à obra heterônima, o processo de
relacionamento do Um com o Múltiplo segue o modelo hegeliano até certo nível.
Para Hegel, numa primeira instância, o Um se divide em múltiplos uns; na
instância seguinte, os múltiplos são arrepanhados para constituir o Um em sua
idealidade. O outro é assim suprimido, terá sido apenas um momento.
Em
Pessoa, assiste-se à multiplicação do Um graças à força de repulsão inerente à
própria essência desse Um (à medida que, para afirmar-se, o Um precisa de sua
negação: o outro). Dir-se-ia, então, que há desequilíbrio de forças, que o
mecanismo emperra em algum ponto do percurso, e que não há suficiente força de
atração para voltar a reunir os múltiplos no Um, para chegar àquela “reunião em
que um único de muitos Uns” . Falta aquele equilíbrio de forças que garantiria
ao Ser, no devir, “a infinita volta a si”.
Se
o mecanismo pessoano não pode executar o belo percurso hegeliano, é porque ele
se encontra emperrado já no ponto de partida.
Parece
haver, em Pessoa, uma simulação do processo hegeliano de relação entre o Um e o
Múltiplo. Uma simulação, porque esse “Um” e esse “Múltiplo” são apenas
simulacros, máscaras de um ser indefinido. O “Um” de Pessoa é a primeira
máscara do Vácuo-Pessoa: “Ficarei no Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta,
Expulsão-Ser do Universo longínquo! Ficarei nem Deus, nem homem, nem mundo,
mero vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem nome, exilado do
próprio mistério, da própria Vida”. Essa
máscara se multiplica em outras máscaras, provocando um movimento a vácuo, um
movimento em falso. Como as máscaras não são os outros do Um (já que o próprio
Um era apenas uma máscara do vazio), elas não podem contribuir para a
(re)-constituição do Um.
Nada
se passa entre uma máscara e outra, nada pode passar-se entre nada e nada. A
poética de Pessoa é uma poética do entre (Interlúdio, Intermezzo,
Interseccionismo – para privilegiadas em sua obra); esse entre não é o entre do devir hegeliano (passagem do Nada ao
Ser e do Ser ao Nada), mas o entre imóvel da indeterminação (Ser=Nada,
Um=Outro, presença=vazio). Não se trata de um entre histórico (no sentido de
passagem ou progresso), mas de um entre estacionário, da indecisão e do
impasse.
Esse
entre também não deve ser arrostado como o entre do atomismo: vazio, não-ser
entre os átomos, repulsão das existências distintas no interior do uno. Não se
trata de um vazio com relação ao pleno dos átomos; como, aqui, os próprios
átomos são lugares vacantes, só há vazio, não há mais do que entres.
No
sentido de possamos vir a compreender isto, precisamos colocar esse entre num
processo: um processo começado e detido. Pessoa está literalmente paralisado
entre o Sein e o Dasein: “Há entre quem sou e estou/Uma diferença de verbo que
corresponde à realidade”.
Estar
e ser. Estando (em momentos efêmeros e sucessivos), ele se proíbe de ser
(ontologicamente). Esse sujeito, mal acomodado em seu momento histórico,
refugia-se por vezes no platonismo: alhures, outrora, fui um Eu inteiro do qual
agora sou apenas a sombra, o emissário. Tentação do ocultismo, do espiritismo:
destino astrológico, reencarnação. Contudo, perguntamos: quem se deixa enganar
por essa duplicidade? No lugar Pessoa, o Outro já se prepara a sorrir, a
contradizer: Seu ocultismo é uma ocultação.
O
movimento circular das máscaras é um movimento fictício, igual à imobilidade.
Pessoa é o ser parado, o Ibis. Com efeito, ele gostava de brincar com seus
sobrinhos, chamando a si mesmo de Ibis, animal cuja atitude ele imitava, para
os fazer rir: “O Ibis, a ave do Egipto/Pousa sempre sobre um pé/O que
é/Esquisito./É uma ave sossegada,/Porque assim não anda nada”. O Ipse exigiria
um avanço, o Ibis é imóvel.
Toda
dialética, em Pessoa, é uma dialética fingida, na qual a tese e a antítese não
levam a nenhuma síntese, porque nunca há ultrapassamento: “Assim fico, fico...
Eu sou sempre o que quer partir,/ E fica sempre, fica sempre, fica sempre,/Até
a morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...”
Sendo a dialética o movimento do pleno, ela
não pode realizar-se no vazio. Sem devir, não há existência; compreende-se,
agora, a não vida do vivo.
Pensar
o circulo vicioso é mais inteligível fazê-lo a partir do último Nietzsche do
que a partir de Hegel. As perguntas que ele se faz, em seus versos, são
extremamente próximas das “perguntas capitais” de Nietzsche: “Somos autênticos
ou nada mais do que atores, autênticos como atores ou apenas parodiamos o ator,
somos o representante de algo ou aquilo que é representado?... ´Ninguém´ ou um
encontro de ninguém?” E a resposta,
apesar de todas as diferenças, é ainda a de Nietzsche: “Sou apenas um
fragmento, enigma e pavoroso acaso”.
A
abertura para o inconsciente desmascara o Um como logro: “O um que é
introduzido pela experiência do inconsciente, é o um da fenda, do traço, da
ruptura. Irrompe aqui uma forma desconhecida do um, o um como Unbewusste.
Digamos que o limite do Unbewusste é o Ungegriff – não um não-conceito, mas o
conceito da falta. Onde está o fundo? Será a ausência? Não. A ruptura, a fenda,
o traço da abertura faz surgir a ausência – como o grito que não se destaca
sobre um fundo de silêncio, mas, pelo contrário, fá-lo surgir como silêncio .
No
desdobramento de personalidade ou invenções de personalidades diferentes, há
dois graus ou tipos, que estarão revelados ao leitor, se os seguir, por
características distintas. No primeiro grau, a personalidade distingue-se por
idéias e sentimentos próprios, distintos dos meus, assim como em mais baixo
nível desse grau, se distingue por idéias colocadas em raciocínio ou argumento,
que não são minhas, ou, se o são, o não conheço.
Pessoa
se vê como qualquer um: “sou vil, sou reles, como toda gente”. E mesmo, mais
reles do que toda a gente, pelo menos mais reles do que os outros parecem: ?
”Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido
campeões em tudo. [...] Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,/Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”.
Pessoa
se engana ipsis litteris. Ele tem par sim, e um par que pode esclarecer o
desdobramento de sua personalidade. Este par é o Espírito subterrâneo, de
Dostoiévski, precursor do anti-herói da modernidade. O Espírito subterrâneo é
parente próximo do homem da mansarda, como este imobilizado pela excessiva
lucidez, destruidor do mundo e de si mesmo pela força corrosiva de uma
consciência monstruosamente atenta às contradições e às nuanças lingüísticas.
O
que diz Dostoiévski?
A
consciência, toda consciência é uma enfermidade. Eu o sustento. Mas deixemos
isso por agora. Respondei-me a isto: como era possível que sempre, no instante
mesmo – sim, como se fosse de propósito ,- precisamente no instante em que eu
era mais capaz de apreciar todas as nuances do belo, do sublime, como se dizia
entre nós há pouco tempo, me acontecesse não somente pensar, mas fazer coisas
tão incongruentes que... ações, para ser breve, que todos levam a cabo talvez
bem, mas que eu praticava justamente quando tinha a perfeita consciência de que
era preciso me abster? Quanto mais o bem e todas as coisas ´belas e sublimes´
se tornavam claras à minha consciência, mas eu me afundava em minha lama, mais
eu sentia prazer em me enterrar definitivamente (...) Isto ia tão longe que me
acontecia uma espécie de prazer secreto, vil, anormal, ao entrar em casa, no
meu buraco, por uma dessas noites petersburguesas sujas e frias, e repetindo-me
que tinha ainda cometido uma vilania, nesse dia, e que era impossível reaparecer
lá em cima. E inquietava-me então interiormente. Eu me atormentava,
despedaçava-me, bebia longamente a minha amargura, fartava-me tanto, que
finalmente sentia uma espécie de fraqueza vergonhosa, maldita, onde gozava uma
volúpia real. Sim, uma volúpia! Uma volúpia! Insisto nisso. Comecei a falar
disto, precisamente porque quero saber com justeza se os outros conhecem tais
volúpias
Em
Dostoïévski, a desejada consciência de si é também ruptura, desdobramento da
personalidade, o Outro fissura o mesmo da consciência que assim é vivida: o
outro que o chama e cujo apelo é mais profundo que ele próprio. É esta relação
com o outro eu, em que o eu é arrancado da sua primordialidade, que constitui o
acontecimento não gnosiológico, necessário à própria reflexão entendida como
conhecimento, e, por conseqüência, à própria Redução egológica.
A
consciência no homem, segundo Henrique C. de Lima Vaz, é essencialmente
anunciadora: ela proclama, invoca, define. Tal condição estaria condenada a uma
total ininteligibilidade se a face da consciência que se prolonga na
exterioridade do sinal não fosse voltada para outra consciência, não
projetasse, ao descobrir, o espaço humano da comunicação. Na verdade, o sujeito
é, desde sua gênese primeira, uma comunhão e a palavra de um diálogo.
Podemos
mesmo tentar a demonstração rigorosa da necessidade, para uma
consciência-no-mundo e que se exterioriza no sinal, de situar-se em face da
outra consciência, de definir-se como o singular “eu” na medida mesma em que se
insere no movimento que a conduz a afirmar-se no plural.
“Se
tudo o que pode ter para mim valor de ser é constituído no meu ego, então,
efectivamente, todo o existente parece ser, com certeza, um simples momento do
meu ser transcendental” , escreve Husserl. A objeção do solipsismo mais extremo
levaria a acusar a fenomenologia de impotência para resolver o problema do
conhecimento e do mundo objeto e, por conseguinte, a ser uma verdadeira
filosofia transcendental.
Para
compreender a existência absoluta de um outro “eu”, é preciso, desfazer uma vez
mais a experiência do “já aí” da facticidade e captar outrem, de algum modo, no
próprio momento em que surge na minha experiência própria.
No
sentido de compreender o que é isto – o homem, em Dostoïévski, procura a
verdade imediata de seu “eu”; o artista a essência imediata de tudo, tomando em
consideração a psicologia e o realismo, que estamos discutindo, fundamo-nos em
O idiota.
A
forma particular que o destino trágico do príncipe Michkin assumiu, totalmente
distante de seu paralelo geral com a Paixão de Cristo, vincula-se igualmente a
alguma outra das crenças mais reverenciadas e sacrossantas de Dostoievski:
“Amar o homem como a si mesmo, segundo o mandamento de Cristo, é impossível”,
ele havia escrito no velório de sua primeira esposa. “A lei da personalidade na
Terra é impositiva. O Ego posta-se no caminho”.
Mesmo
que o príncipe Michkin, o produto das ruminações teológicas de Dostoievski,
seja, sem qualquer sombra de dúvida, uma das criações mais originais do autor,
ainda assim podemos construir para ele uma genealogia sumária. Podemos
relacionar Michkin com todas as personagens românticas de Balzac que buscam o
absoluto – por exemplo, Louis Lambert – cuja assimilação com o infinito arruína
sua existência subliminar.
Poderíamos
prosseguir com Álvaro de Campos, cujo discurso parece fluir da mesma personagem
dostoiévskiana, que não é criminosa mas apenas vil: “Toda a gente que eu
conheço e que fala comigo/Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu
enxovalho,/Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida.../Quem me
dera ouvir de alguém a voz humana/Que confessasse não um pecado, mas uma
infâmia;/Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!/Não, são todos o
Ideal, se os oiço e me falam./Quem há neste largo mundo que me confesse que uma
vez foi vil?/Ó príncipes, meus irmãos,/Arre, estou farto de semideuses!/Onde é
que há gente neste mundo?/Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
[...] eu, que tenho sido vil, literalmente vil, /Vil no sentido mesquinho e
infame da vileza”.
Em
Pessoa, como no “homem do subsolo”, essa confissão não tem a pretensão de se
reverter em apologia de um herói do mal; também não tem o sentido purgatório de
um confiteor cristão; trata-se apenas do reconhecimento lúcido de uma vileza
reles, sem nenhuma exultação de tipo moral. O “homem do subsolo” começa sua
confissão com veleidades de qualificação: “Sou uma homem malvado”; mas depois
confessa que “nem ao menos” é esse ser positivamente mau: “Jamais consegui ser
nada, nem mesmo me tornar malvado. Não consegui ser belo, nem mau, nem canalha,
nem herói, nem mesmo um inseto. E agora, termino minha existência no meu
cantinho, onde tento piedosamente me consolar, aliás sem sucesso, dizendo-me
que o homem inteligente não consegue nuna se tornar alguma coisa, e que só o
imbecil triunfa”.
O
real empírico mistura-se, em Dostoïévski, ao simbólico; a realidade
aparentemente chã é, muitas vezes, paródia, estilização de uma outra realidade,
mas não apenas para iludir a censura, para se defender de conseqüências, e sim
num jogo de máscaras, de duplicação do mundo, de desdobramento da
personalidade, de fragmentação da imagem numa oposição de “espelhos”, enfim, na
inserção da novela ou romance numa totalidade múltipla e variada ao infinito,
dinâmica e fluida, em que o real é a máscara de outro real, em que nada é
definitivo ou estratificado.
Parece-nos
que no desdobramento da “dialética interior”, multiplicando-se, viram a luz, e
toda a vida delas seria a busca de vivê-la plena e absolutamente, conforme o
que lhes habita, trevas e luz, pecado e perdão, isto é, as dialéticas-moventes
se movem em busca da comunhão, koinonia, das trevas e luz, a espiritualidade.
Tomando
isto em consideração, a rede que é estabelecida ao longo da existência,
conscientes de nossa dialética-interior, é uma rede que se constrói nas
situações e circunstâncias do homem que é “sofrimento e dor”, estabelece-se,
fundamenta-se a Fé, Esperança, Amor, continuidade que faz o Ser, este se faz
continuamente. Nesse sentido, é que as dialéticas-moventes tornam-se
importantíssimas na construção do pensamento e idéia dostoievskianas, por elas
serem responsáveis pelo “ser” da fé; torna-se fundamental, então, que
com-preendamos, re-colhamos e acolhamos, a dialética interior e as
dialéticas-moventes no corpo da obra, para que possamos então com-preender a
vida e a obra de Dostoievski, a busca da redenção e ressurreição.
Compreende
que é preciso escutar o Espírito profundo, esse Espírito de morte e de ruína, e
para isto fazer, admitir a mentira e a fraude, conduzir cientemente os homens à
morte e à ruína, enganando-se durante o caminho todo, para ocultar-lhes para
onde os leva, e para que êsse lastimáveis cegos tenham a ilusão da felicidade .
Encontramos
em Dostoiévski formulações quase idênticas em Pessoa. Dostoiévski: “toda
consciência é uma enfermidade”; Pessoa: “Pensar é estar doente dos olhos”.
Dostoiévski: “só o imbecil triunfa”; Pessoa: “toda vitória é uma grosseria”.
Dostoiévski: “Jamais conseguir ser nada”; Pessoa: “Não sou nada./Nunca serei nada./Não
posso querer ser nada”.
Perguntar-se-ia
se seria mera coincidência de temperamentos, entre a personagem dostoievskiana
e as “personas” pessoanas? Evidentemente que não. Essa consciência é a do homem moderno, para quem os valores
morais e estéticos do passado, confrontados com a mediocridade e a brutalidade
da vida cotidiana nas grandes cidades (peters)burguesas, esgarçam-se como
diáfanas fantasias de outros tempos. E essa consciência se manifesta
precursoramente (como sempre) na literatura, e preferencialmente nesta porque é
o escritor (o artista) quem mais sente sua desqualificação, sua falta de função
e de lugar nessa sociedade pragmática. A falta de lugar para o “belo” e para a
consciência, nessa sociedade, é um privação que atinge todos os seus membros;
mas é o escritor (o filósofo, o poeta) quem mais rapidamente detecta essa
privação, porque o exercício de lucidez e a afirmação de valores autênticos era
o que, historicamente, justificava o seu oficio.
A
consciência dessa alta e misteriosa missão permite ao poeta um “desdém por este
humano povo entre quem lido” (novamente uma palavra com o outro e anômalo
sentido: o povo por quem sou lido, o que transforma o poeta de ativo em
passivo). O desdém do emissário é absurdamente pretensioso, já que: a) ele nem
sabe se existe o rei que o mandou; b) sua missão consiste, precisamente, em
esquecê-la: “Minha missão será eu a esquecer,/Meu orgulho o deserto em que em
mim estou”. Há uma evidente esquizo entre o emissário e a missão, entre o
emissor e a mensagem: “Inconscientemente me divido/Entre mim e a missão que meu
ser tem”. E o final do soneto soa como um delírio de grandeza, uma teimosia
irracional: “Mas há! Eu sinto-me altas tradições/de antes do tempo e espaço e
vida e ser.../ Já viram Deus as minhas sensações...”. (A palavra “viram” sugere
uma última e anômala leitura: inexistindo esse Deus, são as sensação que se
deificam, que viram Deus).
É
evidente que o sujeito pessoano não é mais o ego cartesiano nem o Um sintético
de Hegel. Na verdade, a crise do sujeito tal como ela se manifesta em Pessoa já
se prenunciava em Kant. Para Kant, o sujeito não pode ser objeto de
conhecimento; não é uma substãncia (como antes em Descartes) nem um devir (como
depois em Hegel). Hegel, de certa forma, devolveu ao sujeito uma segurança
ameaçada no kantismo. A síntese dialética hegeliana (paga com o evitamento da
questão da negatividade) restituiu ao sujeito a possibilidade de se pensar como
uno.
Ora,
Pessoa como outros pensadores e artistas da modernidade, desvenda o logro dessa
unidade subjetiva. Apesar de respeitáveis tentativas críticas de recuperar, em
Pessoa, uma unidade e um centro, o convívio com sua poesia revela, a cada
passo, que essa unidade e esse centro estão nele irremediavelmente negados.
Pessoa exige, pois, que o confrontemos com as mais recentes teorias do sujeito,
precisamente aquelas que apontam, como sua poesia, para a pluralização e o
esvaziamento do sujeito logocêntrico. Pessoa prenuncia as linhas gerais de uma
concepção do sujeito que se configurará, ao longo de nosso século, na
filosofia, na psicanálise e na lingüística. Por isso, parece-nos senão
descabido pelo menos ocioso analisar o “Dra em gente” à luz das antigas
filosofias idealistas da unidade do ser, de um velha psicologia da identidade
ou de uma concepção da linguagem como veículo dócil e transparente para a
expressão do ser.
O
que caracteriza o poeta moderno é, diferentemente, a consciência de uma
despersonalização substancial, inerente a seu ofício, da perda fatal do Eu na
linguagem. “Eu é um outro”, escrevia Rimbaud, anunciando a modernidade.
Numerosos poetas, mais recentes, confiram que a consciência do váculo subjetivo
se acentuou em nossa século. A linguagem foi deixando de ser experimentada como
instrumento, mediação, representação da presença, para ser arrostada como
falta-de-ser. Os postulados da ciência da linguagem coincidem com o progresso
ceticismo filosófico com relação às essências e à legitimidade de suas
representações: “O sistema da língua implica o não-ser da coisa”; “Há uma compulsão
de opacidade que faz com que aquilo de que se fala seja dado como perdido”
Manoel
Ferreira Neto
(*RIO
DE JANEIRO*, 23 de novembro de 2016)
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