A PROPÓSITO DE UMA VIDA EM SEGREDO, DE AUTRAN DOURADO - Manoel Ferreira
Autran Dourado quer-nos fazer compreender existem
dois mundos, mais especificamente, a distinção no mundo: existe um mundo
“natural” e o mundo “cultural. Divide o mundo em dois como se estivesse
dividindo uma maçã para duas crianças. A faca cega faz a divisão e cada criança
sai para o seu lado, comendo-a. Autran Dourado coloca a faca sobre a mesa,
saindo, indo para o seu escritório com a intenção de ler ou escrever.
Um belo gesto de Dourado, querendo simplificar o
mundo, dividindo-lhe em “natural” e “cultural”. Assim, toda a complexidade
solucionada, os homens podem viver mais tranquilamente, sem grandes
preocupações. O mundo fica mais fácil de ser visto. Não significa ser mais
fácil. Jã não serão precisos olhos. Mas um gesto gratuito, de um homem que não
quer pensar muito, espremer os miolos, a fim de encontrar uma resposta, de
sentar em sua escrivaninha, gerar um romance, ver-lhe publicado, um sem-número
de pessoas lendo, sendo elogiado pela crítica, ganha o seu direito autoral,
dormindo perfeitamente instalado em sua cama, ou sentado confortavelmente em
sua cadeira de balanço. Um homem sem igual. Um grande escritor. E é assim que a
crítica o recebe. Não conhece a frase de Descartes: “Não me preocupa a fama.
Preocupa-me ter má fama”.
Preocupou-se com a fama. Adquiriu-a. Mas Uma vida
em segredo é um livro novo neste momento, presentando as suas situações e
circunstâncias, apresentando os acontecimentos, o estilo, a forma, o conteúdo,
suas novidades, suas maravilhas e esplendores, mas, em breve, será um livro,
sem letras, com apenas folhas secas, impermeáveis, duras. As situações,
circunstâncias, estilo, forma, conteúdo, novidades, maravilhas e esplendores
volatizaram-se. Tudo vazio. Um vazio em segredo? Não. Um livro do momento. O
momento não envelhece. O momento simplesmente passa. Não terá mais de se
preocupar com a fama. Tem-na. Tudo bem feito e consumado.
O que é o mundo “natural”? O que é isto – mundo
“cultural”. O mundo natural são os pastos, as montanhas, o gado, as galinhas no
galinheiro, os porcos no chiqueiro, um rio, as montanhas, o dia que amanhece
maravilhosamente, o friozinho, o lindo entardecer, com o sol escondendo-se, a
conversa no alpendre, fumando o cigarro de palha, escutando toda a espécie de
bicho com seu som peculiar, o lampião. A noite: um verdadeiro breu. Tudo muito
lindo numa fazenda ou numa roça ou num sítio. Um lugar espetacular e natural.
As pessoas são muito simples, gentis, carinhosas, receptivas, amáveis. Têm lá
as suas preocupações, mas não se desesperam. Têm lá suas angústias, mas a fé em
Deus dissipa esta angústia: trans-forma-a em cinzas. Não têm grandes
preocupações. A distinção entre o Bem e o Mal é um preocupação, mas a fé em
Deus, o falatório dos padres amenizam-na. Rezam e pedem desculpas por seus
pecados, suas ofensas, agressividades, incompreensão, maus pensamentos. Perdoam
a todos. Preocupam-se somente em fazer o Bem. A vida e a morte são
preocupações. A vida é somente uma passagem, uma passagem curta. Morrendo, irão
para o inferno ou para o céu. A morte é a passagem de uma existência para
outra, de um mundo para outro. Seus valores advêm todos da Dialética Bem x Mal.
Crescem, amadurecem, aprofundam, fundamentam-se. Um mundo maravilhoso e
esplendoroso. Um mundo para “além do bem e do mal”, como diz Nietzsche.
Autran Dourado não conhece a distinção em “sugerir
algo” e “presentar algo”. Através do nome mundo “natural”, ele sugere a vida
das pessoas que não habitam em cidade. Mas a sua sugestão está muito simplista,
ingênua, inocente. Podia ter sugerido – um direito seu -, mas aprofundado nesta
sugestão. Deveria ter ido à “gênese” deste mundo denominado “natural”. Mas é um
autor que gosta muito da superfície, vive à superfície. “Ir à gênese” é muito
profundo, muito culto, muito intelectual. A sua intenção é a mais simples possível.
O mundo das pessoas que habitam o campo apresenta complexidades,
hermeticidades, prolixidades. É um mundo difícil para viver, devido às suas
dificuldades humanas – refiro-me a “eidos” do homem.
O autor se esquece de tudo isso. Parece estar com
um binóculo olhando de longe para o campo, as pessoas que lá habitam. Vê o
mundo delas através de seu binóculo. E na mente, melhor dizendo, no imaginário,
vai criando a estória, enredo, situações, circunstâncias, acontecimentos,
drama, trama. Tem uma imaginação muito fértil. Mas fica só nela. Jamais
consegue chegar à consciência, presentando o que os seus olhos vêem, com que se
deparam, o que se lhes apresentam. Vê com o bago do olho. A retina está à
distância, bem longe, numa cavalgada pela inocência, ingenuidade. Devido à sua
imaginação fértil, não consegue chegar á consciência, a ponte da “sugestão”
para a “presentação” torna-se-lhe incomensuravelmente difícil, complexa,
impossível, e tudo fica à superfície. É lodo na superfície da água. Além de a
retina dos olhos estar à distância, bem longe, numa cavalgada pela inocência,
ingenuidade, os bagos dos olhos não conseguem delinear e burilar a estória está
sendo escrita. Não me refiro ao estilo e estética. Refiro-me à distância de Uma
vida em segredo. Melhor dizendo, Uma vida em segredo está bem distante de nós,
os leitores. Lemos a distância. É olhar para o sol se escondendo, e não estar
perto para presenciar o fenômeno. Estamos na Conchinchina e Uma vida em segredo
está no Brasil. Lemos de lá. Autran Dourado estava distante da folha de papel
em que registrava a sua estória. Tudo perfeitamente simplista, superficial,
ingênuo e inocente. Além do mais, a superficialidade é tão incomensurável, que
a sugestão escorrega pela mão, escola pelos dedos. A ingenuidade é uma bolha de
sabão que explode ao alcançar uma determinada altura. O simplismo são os passos
de um bicho-preguiça subindo um coqueiral da Praça da Liberdade. A inocência,
um casal de namorados olhando a lua cheia e contando as estrelas, fazendo
promessas de amor.
Mas e o mundo “cultural”, o que é isto? Há todas as
espécies de problemas sociais, políticos, financeiros. As pessoas são
completamente desajustadas moral, psicológica e existencial. Não se pode
pensar, ao menos, em haver um “valor” neste “mundo cultural”, pois os problemas
sociais, políticos, financeiros, o desajuste das pessoas volatizaram estes
valores. Não conseguem mais fazer distinção alguma entre o Bem e o Mal. Nem
mesmo sabem se estão ligados ou separados. A vida e a morte são preocupações
constantes. A vida está confusa, perdida, dilacerada, multifacetada, ceifada e
cifrada. Já não possui nenhum significado e sentido. A morte é medo constante.
Se a vida não tem significado e sentido, não tem significado e sentido morrer.
Além do mais, a morte não tem sentido e significado. Não são vidas vazias. São
o vazio. Por não terem mais condições de entender a vida e a morte, não têm a
mínima noção de moral. Por a vida ter perdido o seu sentido e significado, o
mesmo acontecendo com relação à morte, impossível a moral. Tudo está perdido
para o homem. Já não há mais preocupação em compreender e entender o sentido de
valor. Bem e mal, moral, vida e morte. Tudo reduziu-se a um materialismo.
A mesma afirmação anterior. Autran Dourado não
conhece a distinção em “sugerir” algo e “presentar” algo. Com certeza, o mundo
denominado de “mundo cultural”, que não é outra coisa senão a civilização, está
mesmo desajustado, desequilibrado. As pessoas convivem com os dramas a todos os
instantes. Estão perdidas, confusas, dilaceradas, multifacetadas, ceifadas, e
cifradas. Já não há mais distinção entre o Bem e o Mal, a Moral extinguiu-se. A
tecnocracia tomou conta de tudo. O homem é somente trabalho, exploração. Com
efeito, a civilização está apresentando tudo isto.
Neste ponto, Autran Dourado apresenta-se bastante
confuso. Não se trata apenas de não conhecer a distinção entre “sugerir” e
“presentar”. Não se trata apenas dos valores que se distanciam e contrastam
entre “mundo natural” e “mundo cultural”. Há uma grande confusão.
Ora quer fazer-nos acreditar que o verdadeiro
responsável pela não-distinção entre o Bem e o Mal, a falta de moral, a
ausência de valores são o materialismo que transformou o homem em algo que
produz. O materialismo engolfa e engole tudo. Transforma tudo num vazio
ilimitado. O materialismo delimita e demarca o homem. Tudo perde o sentido e
significado, devido ao materialismo. Com efeito, o materialismo extermina com
tudo. Mas é somente o que o autor diz, melhor dizendo, “sugere” ser a causa
sine qua non de toda a perdição do homem, ou seja, o materialismo. Há somente a
sugestão de o materialismo ser o responsável. Agora, Autran Dourado não se
preocupa em aprofundar a sua visão, fazer um estudo deste mundo perdido e
confuso, chegando à gênese dele, fundamentando ser o materialismo o verdadeiro
responsável. Não se preocupa também e aprofundar o materialismo, indicando a
sua responsabilidade, no sentido de chegar à gênese do materialismo, mostrando
todo o seu processo, as suas contradições, a sua dialética, e como as pessoas
se perdem, confundem-se. Um estudo aprofundado e fundamentado. Como sempre,
fica à superfície. A sua especialidade é a superfície. Vê o materialismo com o
bago dos olhos.
Ora quer fazer um estudo do existencialismo,
pretendendo pretensiosamente que esta doutrina olha o homem em sua superfície.
Mas não conhece o mínimo do existencialismo. Mas, ao mesmo tempo, embora com o
seu desconhecimento, mostra toda a angústia, desespero de Buda, o seu mundo em
conflito, sofrimento, por não conseguir encontrar o seu universo, que nãon é
outra coisa senão ela mesma. Inclusive, ele faz um estudo acerca desta rejeição
entre o “mundo natural” e o “mundo cultural”, mas na sua superfície. Faz um
estudo do “mundo interior” e do “mundo exterior”, mas na superfície. Quer
mostrar o existencialismo, mas dele nada entende. Tudo se transforma numa
abelha no fundo de um copo, contendo café. Na verdade, ele não conhece o homem.
O seu conhecimento é todo ele superficial e nem se interessa por conhecer o
homem em sua profundidade. Devido a isto, não toma partido algum entre o “mundo
interior” e “mundo exterior”. Quer ficar à margem. Quer ser neutro. Com a
intenção de o leitor tomar o seu partido. Se a obra não entra em nós, jamais
entraremos na obra. Como é possível tomar partido, se não entramos na obra e,
além do mais, ser ela muito superficial. Ademais, Autran Dourado não tem a
mínima noção de um com plexo existencial. Suas personagens vivem conflitos, mas
conflitos que estão no exterior, que o bago dos olhos vêem. Gostaria de
perguntar ao autor: “O que é isto, a existência?”, “o que é isto, o existente?”
Acredito não saberá dar-me a resposta. Caso o faça, será à superfície da
questão. Sua especialidade é a superfície. E dela demorará a sair.
Ora o autor quer fazer-nos compreender acerca do
“mundo perdido”, no concernente aos homens não conseguirem adaptar ao mundo
contemporâneo, devido aos seus enormes conflitos, tramas, angústias,
desesperos, perdições, confusões, complexidade, hermeticidade, prolixidade.
Tudo está perdido para o homem. Não consegue viver no passado, em que era o
mundo em que se adaptava, instaurava, instalava. Não consegue viver no
presente, pois não há possibilidade de uma adaptação, instauração, instalação.
Se menciona acerca de um “mundo perdido”, tem em mente um mundo a ser
procurado, encontrado. Mas ele não apresenta nada a respeito deste mundo a ser
procurado, encontrado. Além do mais, a questão se limita apenas a uma
instalação no mundo presente? Há muito mais a ser visto e analisado, observado
e descrito, acerca do mundo a ser encontrado. Não se infere ser a paz, a
harmonia, o amor, a consciência, a identidade, em suma, ou uma existência. Em
nossa existência, limita-se a fazer análises simples, supérfluas e
superficiais. Não há aprofundamento algum. Além do mais, Autran Dourado, não
conhecendo o homem em sua “eidos”, não tem a mínima condição de fazer um
contraste entre um “mundo perdido” e o “mundo-a-ser-procurado”. Fizesse um
estudo, tentando compreender o homem, ficaria à superfície. Em suma, o autor
não compreende que a toda busca implica uma perda, melhor dizendo, há a busca
por haver a perda. Por suas análises terem sido superficiais, não conseguiu
fundar o homem perdido e o homem a ser encontrado. Ademais, o autor fica
somente na imanência. Jamais consegue transcender-se. Em suma, o “mundo
natural” e o “mundo cultural” são vistos através dos olhos da unilateralização.
Tudo está unilateralizado. O homem mesmo está unilateralizado.
Em sua biografia, consta-se ter sido ele grande
leitor de Madame Bovary. Entre esta obra de Flaubert e Uma vida em segredo a
distância é grande. Não concordo com Diva Vasconcelos da Rocha, quando afirma
terem dito Madame Bovary ser o livre sobre o nada. Qual é a sua visão de nada?
Limitou-se a parafrasear o crítico francês, que fez a afirmação acerca de
Madame Bovary ser a obra-prima “sobre o Nada”, mas nada compreendeu da
afirmação do crítico francês, e nem mesmo do “Nada”. Tudo está a nível da
superfície.
Colocando-me completamente fora da opinião de Diva
Vasconcellos da Rocha a respeito de Madame Bovary de Flaubert, concordo
plenamente que Uma vida em segredo é uma novela sobre o “nada”, mas o “nada”
tem fundamento e Autran Dourado não fundamenta o “nada”. Este “nada” fica
apenas na superfície. Acerca de minha posição, acrescendo mais ainda: é um
livreto vazio. Não consigo ver senão a folha em branco, seca, impermeável,
dura.
Em suma, apresento duas sugestões: com efeito, a
vida é “segredo e mistério que só a arte é capaz de des-velar/re-velar”. Com
certeza, Autran Dourado não é capaz de “des-velar/re-velar” o segredo e
mistério da vida por ser superficial e ingênuo em sua visão-(de)-mundo.
Pergunto, em última instância: “Uma vida em
segredo, o que é isto?” Inverto o questionamento: “O que é isto: uma vida em
segredo”. O segredo continua a existir. A vida perdeu-se, confundiu-se.
Volatizou-se. Virou cinzas nas mãos de Autran Dourado. O único momento em que
conseguiu aprofundar e fundamentar: “Uma vida em segredo é um livro para
todos”.
Além da especialidade de Autran Dourado ser a sua
superficialidade, é também a não-compreensão da lógica hegeliana e nem a do
século XX. Não há lógica no século XX. Tudo se resume no
“homem-dentro-do-mundo” e o “mundo-fora-do-homem”. A questão é: o homem
con(des)figurado no mundo.
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 28 de novembro de 2016)
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