ESCRITORA E POETISA Ana Júlia Machado ORNAMENTA O ENSAIO /**FERNANDO PESSOA E DOSTOIÉVSKI: DESDOBRAMENTO DE PERSONALIZA**/ - Manoel Ferreira
Meu “Eu”
Amargura. Inquietude. Um símbolo de interpelação.
A injunção do ofício acossa-me como uma vil sem proprietário.
A evasão falaciosa que nutre-me
para mais uma adição de verbos contrafeitos,
Surde como um eflúvio de dubiedades, de interpelas, de perscrutações.
Mais símbolos de interpelação.
Creio excessivamente na execução, mas a corrosão trivial
Asfixia-me a todo ápice.
Não existe bases para esbanjar a respiração.
Não existe motivo para a privação de oxigénio.
Ergo a mente para resfolegar
E com o órgão essencial do mecanismo respiratório
Repleto de vigor, agrupo mais caracteres gélidos.
E perfilho em dianteira convencida
de que a vereda sinuosa não acarretara-me
Ao remate amplo da exultação
refreada que é o deparo com o meu “Eu”.
Ana Júlia Machado.
Todos já usamos máscara….
Deslindo que no fundo todas as criaturas servem-se de ante-faces,
Mesmo sem ambicionarem. Se alguém encontra-se transitando
Por um instante menos benéfico em sua existência
e , se por eventualidade uma pessoa chegada
a si indaga-a como acha-se,
a rebatida mais prudente a escutar –se é de que encontra-se bem,
Jornadeando na mais irrepreensível consonância.
Todas as criaturas protegem sigilos,
às vezes tenebrosos, outros triviais,
mas sempre protegem de alguém. Por muitas ocasiões,
esse sigilo perece com as mesmas,
mas para criaturas supérfluas,
Pensam que em seu tálamo de fenecimento
é a momenta de patentear
todos seus delitos diante Altíssimo e arquitectar
que Ele as haja absolvido para não enrubescerem-se
na labareda imperecível do érebo.
Existe somente alguns instantes da existência em que somos deveras
verídicos;
um deles é se andamos infelizes.
Quando tudo arbitrar estar sumido
e o padecimento amplia em sua alma, diligenciamos alguém para
desembuchar
e concluímos narrando o que deveras ensaiamos.
Mas, uma coisa é a ante-face que não apoquenta o próximo, outra,
são as dissimulações que se utilizam, para fins malévolos.
Mas todos temos uma máscara,
e há criaturas que não divulgam o segredo
Verbalizam que vai para a terra juntamente
com a terra que as há de comer.
Empregamos máscaras por dissemelhantes fundamentos,
arruinamos a nossa paridade, e a cada circunstância diferente aplica-se
uma máscara.
Às vezes empregamos a máscara da perfídia,
para amarrotar as criaturas,
originarmos com que elas aprovem na terra
de aspectos que gerámos.
Existe a Dissimulação de padecentes, que utilizamos para que todos
possuam tristeza,
porque pensamos que o planeta todo encontra obstáculo em nós
Muitas vezes pomos a Ante-face da sobrançaria,
para exibimos a todos que somos os superiores,
o que havemos ou o que somos motiva-nos experimentar que residimos além
do bondade e do infortúnio.
Tem a Ante-face do receio, essa utiliza-se todas as ocasiões que não
pretendemos adoptar as nossas deliberações e cedemos que as criaturas a
adquiram por nós, pois assim consegue-se acusar alguém.
Quem nunca usou uma máscara….?
Ana Júlia Machado.
**SEMANA //Blog **BO-TEKO DE POESIAS** - 18-24 DE NOVEMBRO DE 2016**
FERNANDO PESSOA E DOSTOIÉVSKI: DESDOBRAMENTO DE PERSONALIDADE
Arrostar a questão da heteronímia em Fernando como a manifestação da
multiplicidade do Um, é inscrevê-lo num certo hegelianismo , numa filosofia da
presença e da totalidade, numa teologia. O múltiplo, como complementar do Um,
constituiria uma alteridade em relação que terminaria por assegurar a unidade
do mesmo.
O que se passa em Pessoa não é a multiplicação do mesmo em outros, mas o
des-encadeamento de uma alteridade tal que o retorno ao Um se torna impossível.
Nele, o Um se multiplica antes mesmo de se constituir como ser particular, num
momento em que ele ainda é indeterminação pura e puro vazio, difuso no Ser em
geral. A negação pessoana é, de certa forma, negação precoce (se continuarmos a
nos referir ao sistema hegeliano). Essa negação resulta não na determinação do
Ser (que seria o Um do Ser-para-si) mas na determinação do não-Ser (que é o
vazio, como o que ainda não é); por outras palavras, na indeterminação.
Efetuando-se antes da definição do particular, a multiplicação não é a do Um,
mas a do Outro.
Vale ressaltar e sublinhar que, no que tange à obra heterônima, o
processo de relacionamento do Um com o Múltiplo segue o modelo hegeliano até
certo nível. Para Hegel, numa primeira instância, o Um se divide em múltiplos
uns; na instância seguinte, os múltiplos são arrepanhados para constituir o Um
em sua idealidade. O outro é assim suprimido, terá sido apenas um momento.
Em Pessoa, assiste-se à multiplicação do Um graças à força de repulsão
inerente à própria essência desse Um (à medida que, para afirmar-se, o Um
precisa de sua negação: o outro). Dir-se-ia, então, que há desequilíbrio de
forças, que o mecanismo emperra em algum ponto do percurso, e que não há
suficiente força de atração para voltar a reunir os múltiplos no Um, para
chegar àquela “reunião em que um único de muitos Uns” . Falta aquele equilíbrio
de forças que garantiria ao Ser, no devir, “a infinita volta a si”.
Se o mecanismo pessoano não pode executar o belo percurso hegeliano, é
porque ele se encontra emperrado já no ponto de partida.
Parece haver, em Pessoa, uma simulação do processo hegeliano de relação
entre o Um e o Múltiplo. Uma simulação, porque esse “Um” e esse “Múltiplo” são
apenas simulacros, máscaras de um ser indefinido. O “Um” de Pessoa é a primeira
máscara do Vácuo-Pessoa: “Ficarei no Inferno de ser Eu, a Limitação Absoluta,
Expulsão-Ser do Universo longínquo! Ficarei nem Deus, nem homem, nem mundo,
mero vácuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem nome, exilado do
próprio mistério, da própria Vida”. Essa máscara se multiplica em outras
máscaras, provocando um movimento a vácuo, um movimento em falso. Como as
máscaras não são os outros do Um (já que o próprio Um era apenas uma máscara do
vazio), elas não podem contribuir para a (re)-constituição do Um.
Nada se passa entre uma máscara e outra, nada pode passar-se entre nada
e nada. A poética de Pessoa é uma poética do entre (Interlúdio, Intermezzo,
Interseccionismo – para privilegiadas em sua obra); esse entre não é o entre do
devir hegeliano (passagem do Nada ao Ser e do Ser ao Nada), mas o entre imóvel
da indeterminação (Ser=Nada, Um=Outro, presença=vazio). Não se trata de um
entre histórico (no sentido de passagem ou progresso), mas de um entre
estacionário, da indecisão e do impasse.
Esse entre também não deve ser arrostado como o entre do atomismo:
vazio, não-ser entre os átomos, repulsão das existências distintas no interior
do uno. Não se trata de um vazio com relação ao pleno dos átomos; como, aqui,
os próprios átomos são lugares vacantes, só há vazio, não há mais do que
entres.
No sentido de possamos vir a compreender isto, precisamos colocar esse
entre num processo: um processo começado e detido. Pessoa está literalmente
paralisado entre o Sein e o Dasein: “Há entre quem sou e estou/Uma diferença de
verbo que corresponde à realidade”.
Estar e ser. Estando (em momentos efêmeros e sucessivos), ele se proíbe
de ser (ontologicamente). Esse sujeito, mal acomodado em seu momento histórico,
refugia-se por vezes no platonismo: alhures, outrora, fui um Eu inteiro do qual
agora sou apenas a sombra, o emissário. Tentação do ocultismo, do espiritismo:
destino astrológico, reencarnação. Contudo, perguntamos: quem se deixa enganar
por essa duplicidade? No lugar Pessoa, o Outro já se prepara a sorrir, a
contradizer: Seu ocultismo é uma ocultação.
O movimento circular das máscaras é um movimento fictício, igual à
imobilidade. Pessoa é o ser parado, o Ibis. Com efeito, ele gostava de brincar
com seus sobrinhos, chamando a si mesmo de Ibis, animal cuja atitude ele
imitava, para os fazer rir: “O Ibis, a ave do Egipto/Pousa sempre sobre um pé/O
que é/Esquisito./É uma ave sossegada,/Porque assim não anda nada”. O Ipse
exigiria um avanço, o Ibis é imóvel.
Toda dialética, em Pessoa, é uma dialética fingida, na qual a tese e a
antítese não levam a nenhuma síntese, porque nunca há ultrapassamento: “Assim
fico, fico... Eu sou sempre o que quer partir,/ E fica sempre, fica sempre,
fica sempre,/Até a morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...”
Sendo a dialética o movimento do pleno, ela não pode realizar-se no
vazio. Sem devir, não há existência; compreende-se, agora, a não vida do vivo.
Pensar o circulo vicioso é mais inteligível fazê-lo a partir do último
Nietzsche do que a partir de Hegel. As perguntas que ele se faz, em seus
versos, são extremamente próximas das “perguntas capitais” de Nietzsche: “Somos
autênticos ou nada mais do que atores, autênticos como atores ou apenas
parodiamos o ator, somos o representante de algo ou aquilo que é
representado?... ´Ninguém´ ou um encontro de ninguém?” E a resposta, apesar de
todas as diferenças, é ainda a de Nietzsche: “Sou apenas um fragmento, enigma e
pavoroso acaso”.
A abertura para o inconsciente desmascara o Um como logro: “O um que é
introduzido pela experiência do inconsciente, é o um da fenda, do traço, da
ruptura. Irrompe aqui uma forma desconhecida do um, o um como Unbewusste.
Digamos que o limite do Unbewusste é o Ungegriff – não um não-conceito, mas o
conceito da falta. Onde está o fundo? Será a ausência? Não. A ruptura, a fenda,
o traço da abertura faz surgir a ausência – como o grito que não se destaca
sobre um fundo de silêncio, mas, pelo contrário, fá-lo surgir como silêncio .
No desdobramento de personalidade ou invenções de personalidades
diferentes, há dois graus ou tipos, que estarão revelados ao leitor, se os
seguir, por características distintas. No primeiro grau, a personalidade
distingue-se por idéias e sentimentos próprios, distintos dos meus, assim como
em mais baixo nível desse grau, se distingue por idéias colocadas em raciocínio
ou argumento, que não são minhas, ou, se o são, o não conheço.
Pessoa se vê como qualquer um: “sou vil, sou reles, como toda gente”. E
mesmo, mais reles do que toda a gente, pelo menos mais reles do que os outros
parecem: ? ”Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos
têm sido campeões em tudo. [...] Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas
coisas ridículas,/Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”.
Pessoa se engana ipsis litteris. Ele tem par sim, e um par que pode
esclarecer o desdobramento de sua personalidade. Este par é o Espírito
subterrâneo, de Dostoiévski, precursor do anti-herói da modernidade. O Espírito
subterrâneo é parente próximo do homem da mansarda, como este imobilizado pela
excessiva lucidez, destruidor do mundo e de si mesmo pela força corrosiva de
uma consciência monstruosamente atenta às contradições e às nuanças
lingüísticas.
O que diz Dostoiévski?
A consciência, toda consciência é uma enfermidade. Eu o sustento. Mas
deixemos isso por agora. Respondei-me a isto: como era possível que sempre, no
instante mesmo – sim, como se fosse de propósito ,- precisamente no instante em
que eu era mais capaz de apreciar todas as nuances do belo, do sublime, como se
dizia entre nós há pouco tempo, me acontecesse não somente pensar, mas fazer
coisas tão incongruentes que... ações, para ser breve, que todos levam a cabo talvez
bem, mas que eu praticava justamente quando tinha a perfeita consciência de que
era preciso me abster? Quanto mais o bem e todas as coisas ´belas e sublimes´
se tornavam claras à minha consciência, mas eu me afundava em minha lama, mais
eu sentia prazer em me enterrar definitivamente (...) Isto ia tão longe que me
acontecia uma espécie de prazer secreto, vil, anormal, ao entrar em casa, no
meu buraco, por uma dessas noites petersburguesas sujas e frias, e repetindo-me
que tinha ainda cometido uma vilania, nesse dia, e que era impossível
reaparecer lá em cima. E inquietava-me então interiormente. Eu me atormentava,
despedaçava-me, bebia longamente a minha amargura, fartava-me tanto, que
finalmente sentia uma espécie de fraqueza vergonhosa, maldita, onde gozava uma
volúpia real. Sim, uma volúpia! Uma volúpia! Insisto nisso. Comecei a falar
disto, precisamente porque quero saber com justeza se os outros conhecem tais
volúpias
Em Dostoïévski, a desejada consciência de si é também ruptura,
desdobramento da personalidade, o Outro fissura o mesmo da consciência que
assim é vivida: o outro que o chama e cujo apelo é mais profundo que ele
próprio. É esta relação com o outro eu, em que o eu é arrancado da sua
primordialidade, que constitui o acontecimento não gnosiológico, necessário à
própria reflexão entendida como conhecimento, e, por conseqüência, à própria
Redução egológica.
A consciência no homem, segundo Henrique C. de Lima Vaz, é
essencialmente anunciadora: ela proclama, invoca, define. Tal condição estaria
condenada a uma total ininteligibilidade se a face da consciência que se
prolonga na exterioridade do sinal não fosse voltada para outra consciência,
não projetasse, ao descobrir, o espaço humano da comunicação. Na verdade, o
sujeito é, desde sua gênese primeira, uma comunhão e a palavra de um diálogo.
Podemos mesmo tentar a demonstração rigorosa da necessidade, para uma
consciência-no-mundo e que se exterioriza no sinal, de situar-se em face da
outra consciência, de definir-se como o singular “eu” na medida mesma em que se
insere no movimento que a conduz a afirmar-se no plural.
“Se tudo o que pode ter para mim valor de ser é constituído no meu ego,
então, efectivamente, todo o existente parece ser, com certeza, um simples
momento do meu ser transcendental” , escreve Husserl. A objeção do solipsismo
mais extremo levaria a acusar a fenomenologia de impotência para resolver o
problema do conhecimento e do mundo objeto e, por conseguinte, a ser uma
verdadeira filosofia transcendental.
Para compreender a existência absoluta de um outro “eu”, é preciso,
desfazer uma vez mais a experiência do “já aí” da facticidade e captar outrem,
de algum modo, no próprio momento em que surge na minha experiência própria.
No sentido de compreender o que é isto – o homem, em Dostoïévski,
procura a verdade imediata de seu “eu”; o artista a essência imediata de tudo,
tomando em consideração a psicologia e o realismo, que estamos discutindo,
fundamo-nos em O idiota.
A forma particular que o destino trágico do príncipe Michkin assumiu,
totalmente distante de seu paralelo geral com a Paixão de Cristo, vincula-se
igualmente a alguma outra das crenças mais reverenciadas e sacrossantas de
Dostoievski: “Amar o homem como a si mesmo, segundo o mandamento de Cristo, é
impossível”, ele havia escrito no velório de sua primeira esposa. “A lei da
personalidade na Terra é impositiva. O Ego posta-se no caminho”.
Mesmo que o príncipe Michkin, o produto das ruminações teológicas de
Dostoievski, seja, sem qualquer sombra de dúvida, uma das criações mais
originais do autor, ainda assim podemos construir para ele uma genealogia
sumária. Podemos relacionar Michkin com todas as personagens românticas de
Balzac que buscam o absoluto – por exemplo, Louis Lambert – cuja assimilação
com o infinito arruína sua existência subliminar.
Poderíamos prosseguir com Álvaro de Campos, cujo discurso parece fluir
da mesma personagem dostoiévskiana, que não é criminosa mas apenas vil: “Toda a
gente que eu conheço e que fala comigo/Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu
enxovalho,/Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida.../Quem me
dera ouvir de alguém a voz humana/Que confessasse não um pecado, mas uma
infâmia;/Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!/Não, são todos o
Ideal, se os oiço e me falam./Quem há neste largo mundo que me confesse que uma
vez foi vil?/Ó príncipes, meus irmãos,/Arre, estou farto de semideuses!/Onde é
que há gente neste mundo?/Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
[...] eu, que tenho sido vil, literalmente vil, /Vil no sentido mesquinho e
infame da vileza”.
Em Pessoa, como no “homem do subsolo”, essa confissão não tem a
pretensão de se reverter em apologia de um herói do mal; também não tem o
sentido purgatório de um confiteor cristão; trata-se apenas do reconhecimento
lúcido de uma vileza reles, sem nenhuma exultação de tipo moral. O “homem do
subsolo” começa sua confissão com veleidades de qualificação: “Sou uma homem
malvado”; mas depois confessa que “nem ao menos” é esse ser positivamente mau:
“Jamais consegui ser nada, nem mesmo me tornar malvado. Não consegui ser belo,
nem mau, nem canalha, nem herói, nem mesmo um inseto. E agora, termino minha
existência no meu cantinho, onde tento piedosamente me consolar, aliás sem
sucesso, dizendo-me que o homem inteligente não consegue nuna se tornar alguma
coisa, e que só o imbecil triunfa”.
O real empírico mistura-se, em Dostoïévski, ao simbólico; a realidade
aparentemente chã é, muitas vezes, paródia, estilização de uma outra realidade,
mas não apenas para iludir a censura, para se defender de conseqüências, e sim
num jogo de máscaras, de duplicação do mundo, de desdobramento da
personalidade, de fragmentação da imagem numa oposição de “espelhos”, enfim, na
inserção da novela ou romance numa totalidade múltipla e variada ao infinito,
dinâmica e fluida, em que o real é a máscara de outro real, em que nada é
definitivo ou estratificado.
Parece-nos que no desdobramento da “dialética interior”,
multiplicando-se, viram a luz, e toda a vida delas seria a busca de vivê-la
plena e absolutamente, conforme o que lhes habita, trevas e luz, pecado e
perdão, isto é, as dialéticas-moventes se movem em busca da comunhão, koinonia,
das trevas e luz, a espiritualidade.
Tomando isto em consideração, a rede que é estabelecida ao longo da
existência, conscientes de nossa dialética-interior, é uma rede que se constrói
nas situações e circunstâncias do homem que é “sofrimento e dor”,
estabelece-se, fundamenta-se a Fé, Esperança, Amor, continuidade que faz o Ser,
este se faz continuamente. Nesse sentido, é que as dialéticas-moventes
tornam-se importantíssimas na construção do pensamento e idéia dostoievskianas,
por elas serem responsáveis pelo “ser” da fé; torna-se fundamental, então, que
com-preendamos, re-colhamos e acolhamos, a dialética interior e as
dialéticas-moventes no corpo da obra, para que possamos então com-preender a
vida e a obra de Dostoievski, a busca da redenção e ressurreição.
Compreende que é preciso escutar o Espírito profundo, esse Espírito de
morte e de ruína, e para isto fazer, admitir a mentira e a fraude, conduzir
cientemente os homens à morte e à ruína, enganando-se durante o caminho todo,
para ocultar-lhes para onde os leva, e para que êsse lastimáveis cegos tenham a
ilusão da felicidade .
Encontramos em Dostoiévski formulações quase idênticas em Pessoa.
Dostoiévski: “toda consciência é uma enfermidade”; Pessoa: “Pensar é estar
doente dos olhos”. Dostoiévski: “só o imbecil triunfa”; Pessoa: “toda vitória é
uma grosseria”. Dostoiévski: “Jamais conseguir ser nada”; Pessoa: “Não sou
nada./Nunca serei nada./Não posso querer ser nada”.
Perguntar-se-ia se seria mera coincidência de temperamentos, entre a
personagem dostoievskiana e as “personas” pessoanas? Evidentemente que não.
Essa consciência é a do homem moderno, para quem os valores morais e estéticos
do passado, confrontados com a mediocridade e a brutalidade da vida cotidiana
nas grandes cidades (peters)burguesas, esgarçam-se como diáfanas fantasias de
outros tempos. E essa consciência se manifesta precursoramente (como sempre) na
literatura, e preferencialmente nesta porque é o escritor (o artista) quem mais
sente sua desqualificação, sua falta de função e de lugar nessa sociedade
pragmática. A falta de lugar para o “belo” e para a consciência, nessa sociedade,
é um privação que atinge todos os seus membros; mas é o escritor (o filósofo, o
poeta) quem mais rapidamente detecta essa privação, porque o exercício de
lucidez e a afirmação de valores autênticos era o que, historicamente,
justificava o seu oficio.
A consciência dessa alta e misteriosa missão permite ao poeta um “desdém
por este humano povo entre quem lido” (novamente uma palavra com o outro e
anômalo sentido: o povo por quem sou lido, o que transforma o poeta de ativo em
passivo). O desdém do emissário é absurdamente pretensioso, já que: a) ele nem
sabe se existe o rei que o mandou; b) sua missão consiste, precisamente, em
esquecê-la: “Minha missão será eu a esquecer,/Meu orgulho o deserto em que em
mim estou”. Há uma evidente esquizo entre o emissário e a missão, entre o
emissor e a mensagem: “Inconscientemente me divido/Entre mim e a missão que meu
ser tem”. E o final do soneto soa como um delírio de grandeza, uma teimosia
irracional: “Mas há! Eu sinto-me altas tradições/de antes do tempo e espaço e vida
e ser.../ Já viram Deus as minhas sensações...”. (A palavra “viram” sugere uma
última e anômala leitura: inexistindo esse Deus, são as sensação que se
deificam, que viram Deus).
É evidente que o sujeito pessoano não é mais o ego cartesiano nem o Um
sintético de Hegel. Na verdade, a crise do sujeito tal como ela se manifesta em
Pessoa já se prenunciava em Kant. Para Kant, o sujeito não pode ser objeto de
conhecimento; não é uma substãncia (como antes em Descartes) nem um devir (como
depois em Hegel). Hegel, de certa forma, devolveu ao sujeito uma segurança
ameaçada no kantismo. A síntese dialética hegeliana (paga com o evitamento da
questão da negatividade) restituiu ao sujeito a possibilidade de se pensar como
uno.
Ora, Pessoa como outros pensadores e artistas da modernidade, desvenda o
logro dessa unidade subjetiva. Apesar de respeitáveis tentativas críticas de
recuperar, em Pessoa, uma unidade e um centro, o convívio com sua poesia
revela, a cada passo, que essa unidade e esse centro estão nele
irremediavelmente negados. Pessoa exige, pois, que o confrontemos com as mais
recentes teorias do sujeito, precisamente aquelas que apontam, como sua poesia,
para a pluralização e o esvaziamento do sujeito logocêntrico. Pessoa prenuncia
as linhas gerais de uma concepção do sujeito que se configurará, ao longo de
nosso século, na filosofia, na psicanálise e na lingüística. Por isso,
parece-nos senão descabido pelo menos ocioso analisar o “Dra em gente” à luz
das antigas filosofias idealistas da unidade do ser, de um velha psicologia da
identidade ou de uma concepção da linguagem como veículo dócil e transparente
para a expressão do ser.
O que caracteriza o poeta moderno é, diferentemente, a consciência de
uma despersonalização substancial, inerente a seu ofício, da perda fatal do Eu
na linguagem. “Eu é um outro”, escrevia Rimbaud, anunciando a modernidade.
Numerosos poetas, mais recentes, confiram que a consciência do váculo subjetivo
se acentuou em nossa século. A linguagem foi deixando de ser experimentada como
instrumento, mediação, representação da presença, para ser arrostada como
falta-de-ser. Os postulados da ciência da linguagem coincidem com o progresso
ceticismo filosófico com relação às essências e à legitimidade de suas
representações: “O sistema da língua implica o não-ser da coisa”; “Há uma
compulsão de opacidade que faz com que aquilo de que se fala seja dado como
perdido”
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 23 de novembro de 2016)
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