**AS PALAVRAS, SARTRE** - Manoel Ferreira
EPÍGRAFE:
Conhecer profundamente As palavras é impossível se não se considerar de
modo sério a questão poética na obra – aliás, pouco se fala a este respeito na
obra sartreana. (Manoel Ferreira Neto)
Em 10 de janeiro de 1964, é publicado pela Gallimard, sob o simples
título Les Mots (As Palavras), um pequeno livro de Sartre, que suscita, desde
logo, um entusiasmo e euforia extraordinários, uma febre de encômios os mais
variados e esplendorosos. O diabo se tornou o “bom Deus”. A intelectualidade
literária aplaude, sente “água-na-boca”. A crítica se extasia. Os pedidos de
entrevistas, os contratos de tradução afluem dos quatro cantos do planeta. Até
o Nobel lhe é concedido, em recompensa.
Contudo, o que é esse pequeno livro para Sartre? Qual é o seu verdadeiro
sentido?
O que acontecera com o Prêmio Nobel? Sartre recusa recebê-lo sob todos
os protestos do mundo, dos franceses, para quem era atitude de não - como assim
ofender o orgulho da França, dos franceses?; dizendo, inclusive, que a Academia
Sueca não iria mais convidar outro escritor por atitude tão estapafúrdia.
Falávamos sobre “glorificar a salvação”, Rm 5 haver sido escrito com
esta intenção. As Palavras para Jean-Paul significava isto, glorificar a sua
salvação, liberdade e responsabilidade com o destino dos homens, consigo mesmo
que dentro trazia em si, com a existência? A glorificação de sua salvação, o
que ele fez de suas letras, o que contribuiu com as idéias, com as lutas por
ser quem é, por haver criado e re-criado a si , por haver lançado todos os
dados em muitas cartadas decisivas e polêmicas, haver enfiado as mãos na merda?
Lo que me gusta de mi locura es que me há protegido, desde o primer dia,
contra las seducciones de la elite; nunca he creído ser el feliz propietario de
um “talento”; mi único objetivo era ele de salvarme – nada em las manos, nada
em los bolsilhos – por ele trabajo e la fé. Como consecuencia, mi pura opción
no me elevaba por encima de nadie: sin equipo, sin herramientas, me he metido
entero em la tarea para salvarme entero. Si coloco a la imposible Salvación em
el almacén de los accessorios, qué queda? Todo un hombre, hecho de todos los
hombres e y que vale lo que todos y lo que cualquiera de ellos .
O que é, primeiramente, As Palavras? O que diz esse livro, de fato,
muito bonito, burilado, onde se contempla a dimensão estética, poética
sartreana, mas, a olhar mais de perto, bem mais estranho do que parece?
Sim, aparentemente é autobiografia. Narrativa de infância à antiga, com
exercícios de introspecção, nostalgia, cenas primitivas, confissões febris ou
laceradas, complexos de Édipo e de Anquise, pai morto muito cedo, mãe muito
tempo adorada, avô e avó, a descoberta decisiva da feiúra, essa “cal viva onde
a criança maravilhosa se desfez”, e até mesmo, em meias palavras, a tentação do
incesto .
A poesia em Sartre!... Alguns ingênuos declararam que ele era
“anti-poético” ou “contra a poesia”. Mais que natural, tanta estapafúrdia foi
dito a seu respeito – não fosse a seriedade de suas letras, tudo o que fosse
escrito a seu respeito só seria estapafúrdia, tudo nela fundado.
Impressionante!... Frase mais que absurda, mais que medíocre, significando a
mesma coisa que dizer que ele é contra o ar ou contra a água. A poesia para
Sartre é comparável ao ar e à água: ela está ao nosso redor, fora de nós,
respira-se poesia, toca-se, atravessa-se a poesia, ela é um elemento da
natureza. Na realidade, Sartre quer dizer que, se a poesia existe, o poeta está
ausente.
Conhecer profundamente As palavras é impossível se não se considerar de
modo sério a questão poética na obra – aliás, pouco se fala a este respeito na
obra sartreana.
Em sua entrevista com Pierre Verstraeten sobre O escritor e sua língua,
Sartre mostra como o desejo humano, o desejo profundo se exprime em poesia:
Dá-se o seu equivalente pela utilização de palavras enquanto não
articuladas por si mesmas, mas enquanto o inarticulável se apresenta na própria
realidade delas, isto é, na medida em que a espessura da palavra nos remete
exatamente àquilo que se indtroduziu nela sem a ter produzido: não há uma
vontade de exprimir o desejo. Não se faz a articulação para exprimir o desejo,
mas o desejo se introduz nessa articulação .
O que chama a atenção nestas linhas é que a carga poética nelas é
descrita como algo que não é “produzido”, que não é fruto de uma “vontade”, mas
que age pelo contrário de modo impessoal, que “se introduz” na espessura das
palavras, “se apresenta na realidade delas, articula-se na linguagem”.
É preciso que a vontade seja um ato volitivo. É o Kant percebeu na sua
autonomia da vontade: uma vontade que se julga boa na ocasião do ato de
vontade. Não serviria para nada, como ele também concluiu, derivar a vontade do
Eu, pois ela emanaria ainda de um dado (pouco importa que esse algo não seja
seja, mas que dure, como o eu profundo de Bérgson: de qualquer modo, a vontade
será uma emanação natural dele).
A vontade só pode derivar do Eu se o Eu deriva da vontade. Assim, a
vontade, como a consciência, volta a si mesma. E como acontece com a
consciência, a não ser que se despenque em sua cascata reflexiva de vontades,
desejosas e desejadas, é preciso admitir que essa volta a si mesmo corres0ponde
à infra-estrutura da vontade: a vontade desejando-se a si mesma como desejo de
X.
Se não nos contentamos com palavras, é impossível conceber a unidade
imanente da vontade e do seu objeto, seja ele um ato volitivo ou não. E isso
por uma razão evidente: o objeto da vontade é futuro.
Aconteceu o seguinte: a literatura de hoje submeteu-se cada vez mais ao
reinado do on (partícula que indica, em francês, o modo impessoal. Ex: on voit,
on sait (vê-se, sabe-se). A literatura a que o autor se refere é essencialmente
a que representa o “nouveau roman”, da qual Jean Ricardou é um dos expoentes),
da voz que fala sem que se saiba exatamente de onde ela vem, de palavras que se
ordenam, se combinam, se impregnam de desejo sem que se possa dizer com certeza
qual o indivíduo que as pronuncia. Quem fala? E onde? Esta dupla interrogação que
parecia reservada ao domínio poético tornou-se o leit-motiv da criação moderna
literária.
A análise de Sartre parece agora aplicável a toda linguagem
contemporânea. É o que Ricardou resume um pouco brutalmente ao dizer: “Vê-se
portanto que o que eu proponho chamar de literatura, Sartre chama de poesia”.
Sartre seria sem dúvida o primeiro a negar que a poesia possa nascer do
nada, suspensa no ar, no vazio. O que ele quer dizer é outra coisa. A ausência
do poeta intervem na ordem da comunicação. A poesia é uma parada, um alto! Na
comunicação. Esta idéia aparece sob múltiplas formas na entrevista que citamos
acima: “A poesia é o momento da respiração em que nos voltamos sobre nós
mesmos” ou então: “Para esta poesia (a que nasceu lentamente através do romantismo
e que se manifesta com Nerval e Baudelaire) creio com efeito que o momento
poético é sempre uma parada; muitas vezes mesmo desde o começo é uma parada de
piedade para si mesmo, de complacência para si mesmo enquanto exatamente
desejo; é o momento em que o desejo se objetiva através das palavras, mas para
além da articulação destas” ou ainda: “É, se quiserem, o momento da
interioridade. Ora, deste momento podemos dizer que ele é uma stase no caso da
poesia”. E Sartre acrescenta: “Sob este aspecto, a prosa é a superação da
poesia”.
Quando a parada (dada como uma etapa de um voltar-se sobre si mesmo, de
uma necessária solidão narcisista, de “verdadeira reconquista” de si mesmo)
termina, a comunicação de novo funciona, segue para frente, retoma seus direitos:
a prosa reencontra seu domínio.
A poesia foi não apenas uma parada, mas uma espécie de regressão para um
mundo inocente em que o escritor não se sente mais como usuário, mas como
proprietário da linguagem (mundo anterior á comunicação, mundo da
criação-apropriação, que é num certo sentido o da infância, como o cahama
Sartre a propósito de suas próprias relações com as palavras).
É marcante que Sartre tenha sempre se interessado por poetas que, de um
modo ou de outro, realizam uma certa forma de anulação de sua presença na
sociedade. Conhecemos a maneira pela qual ele colocou em evidência Baudelaire,
a tentação de esterilidade absoluta onde o culto do eu identifica-se com a
supressão do próprio ego. Sabemos também que a obra de Mallarmé lhe parece
reveladora de uma metafísica não apenas do sil~encio, mas do suicídio e da
abolição do mundo, na medida em que traduz “uma violência tão desesperada que
ele se modifica em calma idéia de violência” e exprime um “terrorismo da
delicadeza” que visa “manter o universo á distância por não poder faze-lo
explodir.
Enfim, o fato de ele louvar ponge desde 1944 deve-se a este ster sabido
“desnudar um objeto das significações demasiadamente humanas com que ele foi
vestido inicialmente”, ter “assimilado, digerido o mundo das coisas” para
descobrir “o grande espaço plano das palavras”. Esterilizar, abolir, digerir:
eis assim as palavras que aparecem sob sua caneta para definir a atitude do
poeta em face do mundo real que é o seu. A atividade poética, libertando a
linguagem das servidões da significação, tenderia a apagar o universo da
comunicação identificado de critérios do engagement.
Há o que diz o livro, o que realmente diz, explicitamente – há o seu
verdadeiro assunto, ora enfatizado, ora sugerido, ora insinuado, sendo difícil
acreditar que tantos comentadores, na época e em seguida, tenham se obstinado
em ignorá-lo: a literatura é uma quimera, um devaneio de criança, uma miragem;
a literatura é uma armadilha em que Sartre cai, por culpa de seu avô, com a
cumplicidade de Anne-Marie, sua mãe, e de alguns mais, por volta dos seus oito
anos.
Se Sartre escreve este livro, se se decide, ele que tinha jurado nunca
ceder à tentação, a abrir, como tantos outros, seu “sujo pacote de segredos”, é
para descrever essa armadilha, contar o nascimento dessa miragem, localizar as
“pressuposições” ou “investimentos” que a presidiram e tentar, sobretudo, se
desligar, romper o encanto, sair disso – “peço”, insiste Sartre, “que tomem
esse livro pelo que ele é: uma tentativa de desmistificação” .
Em que a literatura é uma miragem? O que quer dizer, exatamente, Sartre,
quando apresenta o fato de escrever como duradoura quimera que, durante trinta
anos, o atormentou? Quais censuras concretas, queixas, dirige ele a esse
trabalho de escrever, a que consagrou tanta energia, desde o tempo já distante
em que, como Rastignac, ele esperava a glória nos cafés do Havre? Ou seja, em
que, de que a literatura é culpada?
Definir a literatura como comunicação de homens a homens ou exercício de
uma liberdade para outra liberdade, é em primeiro lugar explicar as condições
históricas de seu funcionamento. Desde O que é a Literatura? até Flaubert,
Sartre se questionou sempre sobre as origens de classe do escritor e sobre a
natureza de seu público: a atividade significante não é então uma noção abstrata
como poderia fazer-se crer uma simples leitura metafísica, senão que remete ao
conteúdo social existente. Sem embargo, quando se trata de “aislar” o sentido,
este se escapa em uma série de transformações que delimitam as condições mesmas
da literatura. Causada por um sujeito (práxis individual do escritor) está já
na história (como totalização); mas essa relação de expressão dissimula um
terceriro momento – o verdadeiro a nosso critério – já que é o único que pode
definir a literatura como exercício de um universal concreto: o sentido está
postulado em outra parte que não é mais que a política. Isso é precisamente o
que a crítica de direita jamais perdoará a Sartre. Mas que Sartre tenha razão
contra toda teoria tendente a restabelecer a literatura como um puro exercício
de regras, como uma prática à Valéry da claridade francesa das formas, não
significa que lhe dê à literatura um status que permita pensá-la por sua vez em
uma especificidade e em seus laços com a história.
Seja que o escritor planteie o sentido em um projeto ou o realize
através das palavras, este nunca existe mais que por uma primeira contradição:
a consciência infeliz de sua própria existência (Baudelaire, Mallarmé) ou de
sua própria classe, que faz da negatividade e da infelicidade a condição do
sentido, mas também a da literatura.
A literatura é o efeito, em seu desejo, do desejo daquele Outro que era,
não o seu pai, mas o avô. Era ele, Karl Schweitzer, que, “estabelecido” em sua
alma, “apontava sua futura “estrela” de literato triunfante. Era a ele que
ouvia, era a voz dele que o acordava sobressaltado, despachando-o “para a
mesa”, toda vez que, naqueles anos e mais tarde, se punha a escrever . A arte,
um dos meios que possui para fazer realizar vivamente e “imaginariamente”, por
outros, os seus irrealizáveis.
Não teria, conclui Sartre, consumido tantos dias e tantas noites,
coberto tantas folhas com minha tinta, lançado no mercado tantos livros que não
eram desejados por ninguém”, não fosse “a única e louca esperança de agradar
meu avô..
Um Sartre possuído. Um Sartre despossuído de si mesmo, e do que
acreditava ter de mais caro. Ele se achava livre. Pensava que o gosto pelas
palavras fosse o sinal vivo de sua liberdade. Pensava, como seu duplo em negro,
Jean Genet, ter conscientemente feito a escolha de viver em um imaginário
tornado a sua “saída” e o seu “projeto”.
Haviam-lhe, de fato, “costurado” o mandamento de escrever, “sob a pele”.
Haviam-lhe depositado no cérebro “em envelope lacrado”, o falso mandato para
escrever. Ficasse um dia sem retomar a escrita, e queimava-lhe a cicatriz. E a
voz que se toma por sua, a voz que o leva a escrever e dita-lhe o que deve ver,
ouvir e contar, é a forma interiorizada da voz daquele grande Outro que dizia,
tocando-lhe a testa, “esse menino tem jeito para a literatura”. Sartre
ventríloquo. Um Sartre compreendendo que ser escritor é, no seu caso, a própria
alienação.
A literatura como hybris.
O homem é tentado a transformar-se existencialmente em centro de si
mesmo e de seu mundo. Olhando para si e para seu mundo, percebe sua liberdade,
e com ela, sua infinitude potencial. Percebe não ser preso a situação especial
alguma nem a qualquer elemento dela. Contudo, sabe que é finito. Foi essa
situação que induziu os gregos a chamarem o homem de “mortal” e a atribuir a
infinitude potencial do homem aos deuses, chamando-os de imortais.
Pode o homem criar imagens dos deuses imortais por estar consciente de
sua própria infinitude potencial. O fato de estar entre a finitude atual e a
infinitude potencial capacita-o a chamar os homens, e somente os homens, de
“mortais” (mesmo que todos os seres vivos tenham que morrer) e chamar as
imagens divinas dos homens de imortais.
Se o homem não reconhece essa situação – o fato de que ele está excluído
da infinitude dos deuses –, ele incorre em hybris. Eleva-se a si mesmo por cima
dos limites de seu ser finito e provoca a ira divina que o destrói. Esse é o
tema principal da tragédia grega.
Não devemos entender o trágico no sentido filosófico da tradição. Neste
sentido, tragédia é desgraça, a queda das alturas, a transformação súbita ou
paulatina da glória em sofrimento. Trágico é o abandono desesperado do homem às
forças da natureza, à vontade dos deuses, à fatalidade do destino. Onde impera
a desolação, onde não há salvação humana possível, há tragédia.
A situação de Jó, sentado num monturo de esterco a raspar as chagas do
corpo, não é trágica. Jó não é um aniquilado. Vive da fé no Senhor: “O Senhor
deu, o Senhor tirou, louvado seja o nome do Senhor”. Em sua atitude de confiança
não há tragédia. Tudo que lhe parece sem saída possui um desígnio de salvação
na sabedoria, na bondade e na justiça de Deus. Sempre que se crê numa salvação,
seja da parte da religião ou da filosofia, seja da parte da ciência ou do
trabalho, seja da parte do progresso ou da sociedade, a existência perde os
acentos trágicos, apesar de todo sofrimento, de toda desventura, de todas as
lutas. O sentido filosófico de tragédia se orienta pelo homem. Restringe-se a
determinada linguagem da condição humana.
Adequadamente, não há possibilidade de traduzir o termo hybris, apesar
de que a realidade à qual aponta seja descrita não só na tragédia grega, quanto
também no Antigo Testamento. É expressa mais claramente na promessa da serpente
à Eva de que, comendo da árvore do conhecimento, o homem seria igual a Deus.
Hybris é a auto-elevação do homem à esfera do divino.
A grandeza do homem reside no fato de ser ele infinito, e é nessa
tentação de hybris que ele universalmente incorre através da liberdade e do
destino. Portanto, não se deveria traduzir hybris por orgulho. Orgulho é uma
qualidade moral, cujo oposto é a humildade.
Hybris foi chamada de “pecado espiritual”, e todas as outras formas de
pecado foram derivadas dela, até mesmo os pecados sensuais. Hybris é o pecado
em sua forma total, a saber, o outro lado da descrença ou do afastar-se do
homem com relação ao centro divino ao qual pertence. É o voltar-se para si
mesmo como centro de seu eu e de seu mundo.
Se o problema de Sartre era só contar com ele, por não mais poder contar
com os outros, pelo menos, tratava-se de contar consigo mesmo, por ter sido
chamado a se tornar aquele com quem os outros terão necessidade de contar
(todos os outros).
Ocorre que ele “se deixou influenciar completamente” por seu avô e que a
literatura deixou de ser, a seus olhos, um meio clandestino de se arrancar do
nada.
A fase dos pequenos romances de capa e espada estava acabada, dos quais,
aliás, pouco lhe importava perder o sentido do princípio, antes mesmo de
escrever o final; igualmente excluída, para sempre, pela voz de um Moisés
provisório, a simples possibilidade do romanesco, onde a “criança imaginária”
tentava secretamente se reencontrar: “Eu pensava escrever para fixar meus
sonhos, quando, ao contrário, só sonhava para usar minha pena”. Pois que a Lei,
finalmente, se apresentava a Jean-Paul – enquanto lei “de verdade”: como
exigência de só escrever para tratar do real.
Assim, adquiria Sartre o hábito de levar a sério suas tentativas de
autojustificação, à medida que elas consistiriam, daí por diante, em salvar sua
própria verdade, salvando a verdade do mundo .
Quanto à salvação do mundo, ele a encarava de forma um pouco mais
complexa. Concebido como a totalidade dos objetos reais (árvores ou poltronas,
pouco importava) o mundo não tinha evidentemente nada a objetar às pretensões
do futuro escritor:
O universo se estendia a meus pés em planos sobrepostos e todas as
coisas humildemente solicitavam um nome: dar-lhes esse nome era, ao mesmo
tempo, criá-las e apossar-me delas. Sem essa ilusão essencial, eu jamais teria
escrito .
Considerando a relação entre o escritor e sua época, o problema a
explicar é duplo: individualidade e “autonomia”, por um lado, e determinações
sociais, por outro. Eis como Sartre formula a questão:
Gostaria que o leitor sentisse a presença de Flaubert o tempo todo; meu
ideal seria que o leitor, simultaneamente, sentisse, compreendesse e conhecesse
a personalidade de Flaubert, totalmente como indivíduo e contudo totalmente
como expressão de seu tempo
Em termos gerais:
[...] O indivíduo interioriza suas determinações sociais: interioriza as
relações de produção, a família de sua infância, o passado histórico, as
instituições contemporâneas e, a seguir, reexterioriza essas coisas por meio de
atos e opções que, necessariamente, nos remetem de volta a elas .
No desenvolvimento de um escritor, o fator essencial é a maneira como
ele reage aos conflitos e mudanças do mundo social em que está situado. Isso
pode ser discriminado em dois elementos básicos: sua própria constituição
(estrutura do pensamento, caráter, gostos, personalidade) e o grau relativo de
dinamismo com que as forças sociais de sua época se confrontam umas com as
outras, arrastando-o de um modo ou de outro para dentro de seus confrontos.
Descrever os intercâmbios entre um escritor e sua época em termos de
“rupturas” e, na melhor das hipóteses, extremamente ingênuo em ambos os casos,
pois nem o desenvolvimento sócio-histórico, nem o individual, caracterizam-se
apenas por “rompimentos”, mas por uma configuração complexa de mudanças e de
continuidades.
Trata-se de uma atitude de ordem puramente mística, em função da qual os
outros estavam destinados a permanecer como simples figurantes, uma espécie de
totalidade vaga e abstrata, um puro pretexto, enfim, para os exercícios
espirituais de nosso jovem Salvador:
Eu confundia a literatura com a prece, fiz dela um sacrifício humano.
Convenci-me de que meus irmãos só pediam que consagrasse minha pena à sua
reabilitação... Escreve-se para o próximo ou para Deus. Resolvi escrever para
Deus com a intenção de salvar meus semelhantes. Eu queria gente engajada na
minha obra e não meros leitores. O desprezo corrompia minha generosidade...
A literatura como demência. A literatura como estágio supremo da paranóia
e do orgulho. Com, além disso, a mania do sobrevôo ou da sobrançaria, essa
maneira de tomar, ao pé da letra, as coisas e as pessoas de cima, enfim, esse
exercício do menosprezo, fustigado já em Que é a literatura? e do qual refaz,
em As palavras, a genealogia vivida.
Momento de lembrar do nietzschismo de Sartre. De recordar haver nele,
mais insistente ainda pelo fato de nunca o ter reconhecido nem desmentido, um
muito antigo estrato nietzschiano, que vem do tempo da École Normale, de suas
conversas com Nizan, do período comum de “incubação na super-humanidade”, de
suas noitadas para os lados do Sacré-Coeur e ainda da redação de A náusea.
Andávamos, falávamos, inventávamos a nossa linguagem, um calão
intelectual, como todos os estudantes inventam. Uma noite, os super-hyomens em
disponibilidade subiram a colina do Sacré-Coeur e viram aos seus pés uma
joalheira em desordem. Nizan entalou o cigarro entre os lábios apertados e,
torcendo a boca num esgar terrível, disse simplesmente: “Eh! Eh! Rastignac”. Eu
repeti: “Eh! Eh!”, como era devido, e descemos, satisfeitos por termos marcado
tão dsicretamente a extensão dos nossos conhecimentos literários e a medida da
nossa ambição .
Ambos queríamos escrever, ele e eu. Ele publicou o seu primeiro livro
muito antes de que eu escrevesse uma só palavra do meu. Na época em que saiu La
Nausée, se nós tivéssemos apreciado estas apresentações solenes, deveria ter
sido ele a prefaciar-me .
Essa genealogia do escritor... Essas considerações sobre o humanismo de
prelado... Esse processo contra uma casta de padres laicos, vivendo na
alucinação de aqui estar para salvar seus semelhantes... O céu como pano de
fundo da terra e de seus sujos e míseros cálculos... A eterna e falsa divisão
entre “alto” e “baixo”... Tudo isso soa nietzschiano. Tudo isso não deixa de
lembrar o processo contra o que Nietzsche chamava de “o ideal sacerdotal”.
Tendo as palavras, não só uma história, mas uma lógica, tudo se passa
como se esse retorno nietzschiano, esses bafios de um nietzschismo que se
acreditava enterrado sob as milhares de páginas da sua obra militante,
irradiassem uma outra camada do livro e viessem instruir, na continuidade das
precedentes, uma outra queixa.
A religião literária, diz o texto, é uma “religião feroz”; alimenta-se
dessa mistura de “rancores” e “azedumes” típica das almas baixas; ela
“envenena” os homens; os “infecta” – e é toda a crítica nietzschiana do
ressentimento.
O escritor se pretende “amigo do gênero humano”; pretende só ter entrado
na literatura por “amor” a seus semelhantes; só que, sob essa “máscara” do
amor, por trás das declarações de “humanismo” do escritor dito engajado, o
terceiro ouvido sartreano, seu ouvido genealógico e materialista, o ouvido que,
agora, atrela-se à “desmistificação” das “palavras”, distingue o quase
imperceptível, mas, infelizmente, muito real guincho de um ódio ou, em todo
caso, de uma indiferença para com os homens reais – o altruísmo? que
brincadeira! A bondade? que impostura! Salvador de carteirinha das multidões?
que comédia! tal, ainda, o padre de Nietzsche, o escritor é um farsante, que,
na boca, só tem a salvação dos outros, ao passo que, na cabeça, só tem a sua
própria – é esse “impostor” que banca o mediador das almas, enquanto só pensa,
como todo mundo, em obter “na maciota e, como dizem os jesuítas, ainda por cima
sua própria salvação”.
E ainda, afinal, o gosto pela morte – esse tom fúnebre, mortífero, que
ele acredita entrever (dir-se-ia Aurora ou Ecce homo) no centro de todas as
tentativas literárias e da sua própria: “a tarefa louca de escrever para ser
perdoado por minha existência...”.
Já podemos propor, quanto ao horror da morte em Jean-Paul, uma conclusão
que as análises seguintes não se arriscam a invalidar.
A “vertigem” (grifo nosso), mencionada por Sartre em sua segunda
formulação, parece bem compreensível, em função desta procura “mística da
Salvação” (aspas nossas), como uma espécie de abismo sempre aberto, cujo vazio
não deixará de exercer sua própria vida uma atração decisiva.
Sob a aparência de inclinação em direção à morte, essa vertigem vai
assim constituir, para Sartre, a mais poderosa força de sua trajetória
existencial. E a ameaça de morte continuará presente a esse processo, mas para
lhe dar um sentido e não para representar-lhe o fim:
Eu quis morrer: às vezes o horror me congelava os nervos: nunca por
muito tempo; meu ânimo renascia, esperava o momento decisivo em que um raio me
consumiria até os ossos...
Está-se diante da descoberta de que, também em Literatura, é a morte que
ganha. Com a minha morte, que sentido terão estas palavras, esta tese que
elaboro a respeito de um de meus filósofos preferidos? Nada. Valem para o
outro. Todas as verborréias ditas e discutidas serão dos outros, não estou aí
para defender ou apoiar.
Eis o verdadeiro crime da literatura, a fonte dos seus outros pecados e
a razão mais séria para dispensá-la. A literatura é um engodo, porque é uma
mentira. E é uma mentira porque nos faz tomar palavras por coisas e as imagens
do real, esses simulacros, pelo real. O meu interesse pela literatura, pela
filosofia, pela teologia, nunca foi interesse acadêmico – “escritor de redoma”
-; foi sempre um interesse existencial. Jamais estive atrás de erudição quando
me pus a buscar contemplar a literatura, filosofia, teologia. Estava querendo
saciar minha própria sede de conhecimento. Encontrei Machado de Assis,
Dostoiéski e Sartre, e tantos outros nos caminhos do campo.
A literatura é mais que uma quimera, é uma neurose . É mais que uma
neurose, é um estado mórbido – fazendo jus, como toda verdadeira doença, a um
tratamento.
Sartre, por muito tempo, acreditou ser a literatura a resposta para a
doença, o tratamento, o remédio. Ele, inclusive, escreve, em A náusea: “estou
curado, desisto de escrever”. Ou: “acho que vou ter a náusea, e tenho a
impressão de atrasá-la escrevendo”. Não acreditar mais nisso. Inclusive, pensa
o contrário. Crê, na verdade, que ela é “uma longa, amarga e doce loucura” da
qual ele apenas começa a repertoriar os sintomas, sendo urgente curar-se.
Sartre escreve As palavras contra as palavras.
As palavras chama As palavras por causa do verso de Shakespeare: “Words,
words, words!” – não passam de palavras... é preciso se livrar do absurdo
fascínio por esse menos que nada que são as palavras...
Há os que compreenderam que a “palavra é silêncio” e que, falando,
calam-se, e crêem melhor se calarem assim do que nada dizendo: Blanchot; e há
os que, partindo do mesmo princípio de que o silêncio é aliado da palavra, é o
seu estágio supremo ou sua forma mais sutil, fazem o caminho inverso e,
calando-se, falam: Mallarmé de novo, esse mudo que não pára de falar, esse
volúvel que diz e repete que “compor” um silêncio não é “menos belo” do que
compor um verso.
Antes de ser a narrativa encantada dos primeiros anos de um escritor,
antes de ser o inocente exercício de autoficção, ou mesmo de ego-história, que
manifestaria a resipiscência (arrependimento de um pecado, com propósito de
correção) do mestre retornado de sua demasiado longa permanência na polícia,
para nos dar o romance-verdade de uma infância francesa, As palavras é uma
acusação contra o exercício mesmo da profissão literária, assimilada a um
extravio, uma perversão da alma, um crime contra a vida e o espírito ou,
simplesmente, um crime.
A teodicéia leibniziana, centrada na noção de harmonia preestabelecida,
tem pouco em comum com o ídolo polêmico que Voltaire erigiu como alvo das
próprias Setas. Como um Giobbe emperiquitado e perfumado, Voltaire viu-se
imprecando, erguendo o próprio punho esquelético contra o céu vazio de deuses e
sua indignação pela desarmonia irracional deste mundo descobriu na harmonia
preestabelecida de Leibniz a quimera metafísica sobre a qual descarregar todo o
próprio escárnio e o próprio desprezo.
O racionalismo voltairiano, disposto a aceitar as “grandes leis”
newtonianas que regulam o curso do universo com imutabilidade mecanicista,
ainda estava ligado a um ideal humanístico – leigo e terrestre – o qual não
podia submeter-se sem resistência à “cega necessidade” do grande mecanismo de
relojoaria: como observou Alain , Voltaire por um momento, refutou a razão de
Estado, disfarçada de razão universal que mata dez mil indivíduos [em Lisboa]
para o bem do conjunto.
Naquele dia amanheceu mal humorado, e fez do mau humor raciocínio.
Em seguida, As palavras é um livro político. Integralmente político.
Sartre diz: “loucura, neurose de caráter, quimera”. É uma vergonha, para a
literatura, ser isolada do “real” e do “mundo”. Mas o verdadeiro sub-entendido,
a mensagem tácita do livro, a que, no corpo mesmo do texto, se diz nas
entrelinhas, mas que, no paratexto, nas entrevistas concedidas por ocasião da
publicação, se expõe de modo muito mais franco, é que os escritores deveriam se
curvar à própria lei que Sartre, lembremos, recusava a todo custo na época de
Que é a literatura?, e que consistia em se submeter o trabalho, sujeitá-lo aos
imperativos políticos do momento.
Por trás de sua fachada terna e encantadora, As palavras era, já, um
livro perfeitamente político. Porque é o livro em que Sartre descobre, e narra,
o romance verdadeiro de sua conversão: como escolheu a política contra a Arte –
para sempre.
Que Sartre chame literatura ao exercício da prosa que nasce com a
aparição da burguesia, ilumina sua natureza. Na fase revolucionária, os
filósofos do século XVIII fazem coincidir a essência da história e a da
literatura, sendo a política a verdade da literatura. Mas a partir de 1848, o
escritor em seu “rechaço” da burguesia, não tem já uma apreensão direta da
história, única que pode dar um conteúdo à literatura. Há que destacar, assim,
que o que Sartre chama literatura comprometida não é qualquer literatura: nem
volve sobre si (poesia) nem simplesmente toma de posição política, ela é a
expressão dos valores contraditórios da burguesia e da classe trabalhadora,
literatura da práxis e da consciência infeliz. O significado da literatura é a
história, mas se Sartre a planteia como exigência, a relação do sujeito com a
história nunca é fundada.
Resta o essencial... Vitoriosa ou não, pela metade ou inteiramente, a
operação teve lugar, a guerra à Literatura foi declarada.
Que é um escritor? Quais são, no final dos finais, as verdadeiras
“razões de escrever”, ao invés de se tornar “campeão de boxe, jogador
profissional, açougueiro, almirante ou astronauta”?
A partir de As Palavras, inverte-se – o autor de As Palavras reata o fio
de outra questão, inversa, que ele havia aflorado em Os Caminhos da Liberdade,
através do personagem de Mathieu, o escritor que não escrevia ou, em L´Enfance
d´un chef, a propósito do escritor fracassado Lucien Fleurier: que é um
não-escritor? Quais são as razões de não se escrever? O que é um escritor que
descobre que a literatura, como a moral em Os cães de guarda, é nada – e como
fazer, então, para mortificar em si o nervo, a fibra, a mola literárias?
No que tange à moral, assim escreve Sartre:
Diziam-me que as objeções de Kant não atingiam a prova ontológica de
Descartes, mas tudo isso não me parecia mais interessante do que a discussão
entre antigos e modernos. Acho que devo contar tudo isso porque sou (...)
interessado pelo moralismo, e o moralismo muitas vezes tem sua fonte na
religião. Aliás, fui criado e educado por pais, parentes e mestres, quase todos
campeões da moral laica, e sempre tentado a substituí-la pela moral religiosa.
No tangente à Flaubert, escreve Sartre que “O que me interessa em
Flaubert é que ele se recusou a ir até ao limite”, indicando claramente o
sentido moral de seu envolvimento dolorosamente prolongado no tema. “Ir até o
limite” é pelo que opõe ele próprio e pelo que luta com determinação e
intransigência sinceras, insistindo que a questão é: “o que você fez da própria
vida” . O existo se mede pela habilidade de alguém estabelecer “a conexão real
com os outros, consigo mesmo e com a morte” , em oposição ao “mundo seguro e
estéril do inautêntico” , em que os homens são apanhados por “um alvoroço de
evasões de múltiplos tentáculos flácidos” .
A natureza da busca de Sartre é tal que “explorar os limites” significa
duas coisas: em primeira instância, uma avaliação e reavaliação intransigentes
de seus próprios limites internos – da “autenticidade” ou não-autenticidade de
suas próprias escolhas e decisões; e, em segunda, a afirmação de sua
subjetividade, de seu eu constantemente devassado, no mundo a sua volta, com o
propósito de aclarar a diferença fundamental entre a “estrutura ontológica do
ser” e a situação historicamente dada. (O problema da “interiorização” diz
respeito à intersecção das duas).
Ensinaram a Sartre a História Sagrada, o Evangelho, o Catecismo sem lhe
dar os meios para crer; o resultado foi uma desordem que se tornou sua ordem; o
sagrado, extraído do catolicismo, pousou-se no do cristão que ele não podia
ser. Seu único negócio era a salvação, sua estância neste mundo não tinha mais
fim que lhe fazer merecer a beatitude póstuma por meio de umas provas
dignamente suportadas.
Foram esse pequeno livro extraordinário e esse retorno ao aprisco
literário, esse livro de puro-escritor-renunciando-enfim-ao-engajamento, que,
juntos, lhe valeram a suprema distinção.
As Palavras era a salvação. O Sartre de As Palavras, aquele que reza
pela cartilha das conversões instantâneas e que vê no movimento, na lentidão
própria da escrita, não mais o tempo que leva o verdadeiro para ser verdadeiro,
mas um tempo para nada, um tempo perdido, um tempo em que, na realidade,
foge-se da vida e busca-se a morte.
As Palavras era uma cerimônia do adeus. Um desregramento de imagens e de
efeitos. Uma feira, uma última parada, uma revista, um buquê final, um
malabarismo, uma fogueira de festa, uma fanfarra. Que seja. Mas Sartre se dá
conta, dizendo isso, da incongruência do projeto? Sabe ter dado, com As
Palavras, o adeus mais deserto e, sobretudo, mais suntuoso da literatura
contemporânea.
As Palavras estabelece a relação da responsabilidade cumprida, a
liberdade vivida, o início de outra vida, em que a base, a pedra angular é o
estabelecimento da fé que dera origem à liberdade de se tornar
responsabilidade, desta se tornar a consciência de um tempo, de um século, à
busca da transformação, da mudança.
Sartre rompe, não só em As Palavras e depois em L´Idiot de la famille,
mas na vida, na alma, na imagem que cria para si e que, em parte, impõe com
esse mito do grande escritor.
O problema moral que preocupou Sartre foi o das relações entre a arte e
a vida. Ele queria escrever. Esse não era o problema, nunca o foi. Apenas, ao
lado dos trabalhos propriamente literários, havia o “resto”, isto é, tudo: o
amor, a amizade, a política, o relacionamento consigo mesmo, e tanta coisa
mais.
Pensava que uma vida é sempre falha e construiu uma moral metafísica da
obra de arte. No fundo, não ficou convencido: a verdade é que se convenceu de
que bastava dedicar-se à literatura para que a vida fizesse o resto, por si
mesma. No fundo, havia uma confiança mágica: para ter a vida de um grande
escritor, bastava ser um grande escritor.
È preciso reconhecer que a estatura de Sartre é tão elevada quanto o
vértice da pirâmede institucional: vários presidentes da República Francesa
dirigem-se a ele respeitosamente. Giscard d`Estaing faz questão de afirmar-lhe
que muito se abeberara e inspirara em seus escritos sobre a liberdade. E até
mesmo o orgulhoso General de Gaulle, que se considerava o próprio destino da
França, chama Sartre de “Mon Cher Maître”, ao que este retruca: “Isto, creio
eu, é para deixar bem claro que pretende dirigir-se ao homem de letras, e não
ao presidente de um tribunal [o Tribunal Bertrand Russell sobre o Vietnam – I.
M.} que está decidido a não reconhecer. Não sou “Mestre” para ninguém, a não
ser para o garçom do café que sabe que escrevo”.
Sartre procurava o absoluto, e o que ele chamava de moral era o que se
define como “fazer a nossa salvação (itálico nosso)”.
A moral é o sistema dos fins; portanto, a fim de que deve agir a
realidade humana? A única resposta: a fim de si mesma. Nenhum outro objetivo
lhe pode ser proposto. O problema moral é especificamente humano. Pressupõe uma
vontade limitada – não tem nenhum sentido fora dela, no animal ou no espírito
divino. Decorre-se daí que uma existência eterna e transcendente, como Deus ou
a vontade divina, não poderia ser fim por meio da vontade humana.
A realidade humana pertence a um existencial tal, que sua existência a
constitui sob a forma de valor a realizar, por sua liberdade. O ser-valor do
qual somos constituídos, enquanto valor dos nossos horizontes, não é você, nem
eu, nem os homens, nem uma essência humana feita sempre em movimento, da
própria realidade humana (simultaneamente e em toda indiferenciação, eu e você
e todos). A moral é uma coisa especificamente humana, não teria nenhum
significado para os anjos ou para Deus.
O homem não acredita que seria mais moral se fosse aliviado da condição
humana, se fosse Deus, se fosse um anjo. Não percebe que a moralidade e seus
problemas desapareceriam com sua humanidade.
Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 29 de novembro de 2016)
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