#LÚCIFER PERNÓSTICO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto; ROMANCE
CAPÍTULO - IX
Não sabe se devesse chamar de expressão, de ditado,
de adágio. Contudo, a fim de superar esta dificuldade, prefere dizer “linguagem
de mofa”. Há inúmeras delas que são felizes, achincalham as pessoas,
mostram-lhes o lugar que devem habitar ou estar por longo tempo. Ademais, fazem
os presentes cair na gargalhada sem dó nem piedade. Esta então: “Se puser lona
por cima, é circo; se cercar, é hospício”, é comprometedor para uma comunidade
tão vaidosa e orgulhosa de si, e a sua liberdade está ainda por ser construída,
algemas e correntes são arrastadas pelas ruas dia a dia. Ninguém o sabe.
Andava devagar, subindo a rua do hospital, uma
ladeira difícil. Não há quem ao atingir o topo não pare por alguns instantes
até recuperar a respiração normal. Algumas pessoas dizem com as letras em
ordem: “Só falta o bofe sair pela boca. Está na garganta”.
Talvez por esta razão esteja andando devagar,
cabeça baixa. Não tem interesse algum de chegar ao fim da ladeira com um palmo
de língua para fora. Viu-o outras vezes desembestado nesta mesma subida. Só não
pôde saber se ao final colocou a língua para fora, empacando-se, recuperando a
respiração. Estava ele no início. Interessante, a carroça sempre, ao passar por
si, distancia-se; deveria ser ele a passar a sua frente. Contudo, não é puxado
a asno.
Interessante a ressaltar que, descendo as ladeiras,
em tempo algum andara desembestado, não só porque o seu dono poderia cair para
a frente, estar diante de seus pés, não iria conseguir conter os seus
instintos, o seu dono seria escoiceado, mas porque a carroça poderia virar-se,
o prejuízo seria enorme, ao final perderiam o frete, pagaram para trabalhar.
Isto não significa que andasse em passo de bicho-preguiça, andava rápido, mas
com precauções.
A curiosidade de imediato se apresentou. Surgiu-lhe
à mente que a cenoura estivesse murcha, não mais lhe despertando a vontade de
comê-la. Assim, não teria mais sentido algum andar desembestado com a esperança
de abocanhá-la. Olhou com bastante atenção. Não estava murcha. Ao contrário. O
carroceiro trocou a que estava velha por uma novíssima, o seu brilho natural
era intensificado pelos raios solares.
Quem sabe estivesse aborrecido por seu dono haver
trocado. Era com a cenoura velha que estava acostumado. A contestação com a
atitude arbitrária era andar devagar, cabeça baixa. O seu dono, ao final do
dia, sentado ao degrau da escada de seu barraco, iria despertar-se para a razão
de haver ele andado devagar desde às seis da manhã até às sete da noite.
Uma das duas alternativas explicaria a razão da
troca: primeiro, correu tanto no “beco do moinho”, outra ladeira que deixa os
transeuntes com o bofe na garganta, que o carroceiro fora jogado ao chão. Não
quebrou alguma parte de seu corpo por milagre – comeu terra, pois é poeira que
não acaba mais; dizem que Lúcifer Pernóstico, quando chega nas pedras, bate as
quatro patas para tirar poeira dos pelos, sente gastura indescritível, a
dignidade de um asno começa nos seus pés, pernas, mais precisamente no seu
casco; segundo, fazia uns três dias que andava devagar, de cabeça baixa. Era a
cenoura. Estava velha.
Intuição infeliz. Não era a cenoura. A velhice. È
um asno de muitas primaveras. Já se encontrava cansado de suas andanças por
toda a cidade levando e trazendo fretes. Estava cansado, necessitando de
férias. Aos domingos que todos tiram para descansar, visitar os parentes,
íntimos, divertir nalguma feira de artesanato, às vezes surge algum frete
extra, alguém está mudando de residência, há alguns móveis a serem
transportados. Não trabalha o domingo inteiro, mas surge algum afazer
extraordinário.
Curioso com a atitude do asno, veio-lhe à mente o
melhor teria sido se o carroceiro houvesse tirado a espécie de varal que
mandara colocar à frente do asno, com a cenoura dependurada. Assim, correria,
quem sabe até mais. Nalgum lugar da cidade, iria encontrá-la, abocanhá-la,
comê-la com maior prazer ainda.
A especulação fora infeliz. A ansiedade por
compreender o que estaria acontecendo fez-lhe pensar besteira.
Saberia a razão. Mesmo que tivesse que correr atrás
da carroça até alcançá-la. Perguntaria ao carroceiro o que estava acontecendo.
O seu asno só é visto desembestado pelas ruas. Naquele dia, ao contrário. Qual
seria a razão?
Já era demais a situação, a preocupação com Lúcifer
Pernóstico, o nome dado por Credólio Cruzilis, embora com letras sábias, as que
movem fáceis, constrói algum acróstico que no momento não lhe é dado saber, por
não estar escrevendo, esteja subindo a rua do hospital. Algo inconsciente, mas
em se tratando de Lúcifer Pernóstico acabou de crer tudo ser possível,
realmente lhe inspira e muito. É a oportunidade que tem de mostrar o lugar que
ele ocupa dignamente na história da humanidade, o patrimônio nosso de cada dia
que ele representa.
Ora, se desejava tanto saber tinha de adquirir
fôlego e correr atrás da carroça. Impossível. Se andando devagar, ao final, só
não coloca a língua para fora por precaução de comentários jocosos. “Nem
Lúcifer Pernóstico a põe”. Colocar-lhe-iam no lugar do asno. No sentido de
realizar a língua alheia, teria de arrumar uma carroça para puxar por todo o
dia, levar e trazer fretes. Pára. Recupera a respiração. Segue em frente. Às
vezes, passando no barzinho de um grande amigo, um poeta, com quem tem prazer
de alguns dedos de prosa.
Assim, diante de tanta curiosidade, só lhe restaria
uma alternativa. Perguntaria a algum transeunte que subia a rua junto consigo o
que estava acontecendo com o asno. Temeu a resposta. Poderia responder: “Por
que você não pergunta para ele?” Resposta malcriada, mas, em verdade,
inteligente: quem melhor sabe de seu estado de espírito é quem o vive na alma.
Quem sabe o melhor seria perguntar ao carroceiro.
Sabia. Para isto, teria de correr atrás da carroça. Não era possível. O hábito
do fumo está acabando com o seu fôlego. Isto é uma justificativa: em verdade,
tinha medo dos comentários dos transeuntes. O asno não corre mais, agora é ele
quem corre atrás dele. Poderiam até encontrar uma solução para o problema:
seria aconselhar o carroceiro a trocar o asno por ele.
Uma lembrança lhe surgiu, quase na metade da rua: o
que as pessoas dizem, quando alguém age de modo arbitrário, mostrando bem a
ausência de inteligência, a falta de estratégias para realizar os desejos mais
íntimos e ocultos. Dizem: “Aquele ali só falta as penas para burro”. A fala
contrária surge: “Mas burro não tem pena”. Conclui o outro quem disse: “Então,
não falta nada”.
Inclusive, não havia percebido algo diferente na
carroça, devido ao fato de se haver centrado no andar lento do asno. O
carroceiro a havia pintado de vermelho. Seria uma explicação. O cheiro forte de
tinta fresca incomodava Lúcifer Pernóstico.
Movido pela intensa curiosidade, não encontrou
qualquer outra alternativa senão a de perguntar algum transeunte. Olhou para
todos que subiam, observando a fisionomia, os traços. Desejava perguntar a
alguém que lhe inspirasse confiança, fosse educado, não lhe desse resposta
malcriada.
Uma moça de cabelos curtos, corte que muitos chamam
de “Joãozinho” por quase ser possível ver o couro da cabeça. Trajava uma blusa
“amarelo-cheguei”, decotada, sem soutien, via-se-lhe o biquinho do peito, calça
preta, olhos azuis. Pareceu-lhe alguém muito educada, gentil.
Aproximou-se, perguntando se poderia lhe dar uma
informação. Sorriu, dizendo que sim.
- O que desejaria saber?
- Você conhece aquela carroça?
- Sim. Esta carroça é famosa aqui na cidade. Quem
não a conhece?
- Por que será que o asno está andando tão devagar?
O costume dele é andar desembestado.
- Moço, aquele ali só falta a pena.
- Para ser burro!... Mas ele já o é.
- Não. Com a pena, escreveria a nossa História com
tanta dignidade e sinceridade que faria o queixo de muitos cair, inclusive
daqueles que se julgam os grandes conhecedores dela, mas outra coisa não
revelam senão a “tapadice” dela. Nada de interesses e ideologias chinfrins.
Deu uma gargalhada daquelas. Uma resposta
muitíssimo espirituosa.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 30 DE AGOSTO DE 2018)
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