#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO III - I PARTE
Bem... Sabe-se que o asno anda desembestado pelas
subidas e descidas de nossa comunidade, levando e trazendo fretes, a cenoura
dependurada numa espécie de varal. Sabe-se de sua vida ativa durante o dia.
O que faz o carroceiro, após o expediente de trabalho,
de cinco e meia da tarde até por volta das seis e meia, sete horas? O que faz o
asno em seu descanso noturno? Não havia pensado sobre. O importante mesmo era o
seu horário de trabalho, as situações em que se achava envolvido.
De madrugada, acordara e começara a sentir mal
estar, o estômago embrulhando. A esposa, Hécuba Cruzilis, sabia que nesses
casos era suficiente dar-lhe uma colher de açúcar e meio copo dágua, era queda
de glicose. Dormira outra vez. Pela manhã, não estava com vontade de tomar o café,
leite, comer dois pães, de doce e sal, com manteiga, acompanhados de ovo
quente, às vezes dois bifes com cebola e farinha bem saborosos: “Nossa,
Credólio!... Você come feito um cavalo”, dizia a esposa de quando em vez para
não ficar aquela coisa repetitiva todas as manhãs. Gostando tanto de cantar só
asneiras durante o banho matutino, cantaria: “Todo dia ela fala sempre as
mesmas coisas/Diz que como feito cavalo/Quando um crânio já não tem mais
cérebro
…Podeis de vinho o encher!/Bebe, enquanto inda é
tempo!" raça,/”, parodiando Chico Buarque de Hollanda. Hécuba Cruzilis
exigira que comesse alguma coisa. Fez-lhe a vontade. Comera apenas um pão com
manteiga e uma xícara de café.
Era-lhe comum, por vezes, não ter apetite algum,
ficando dois ou três dias sem comer. A mãe preocupava-se com isto, o filho
alimentava muito bem. Dirigia-se à farmácia, comprava algum remédio para abrir
apetite. Nunca soube explicar o porquê disto, o porquê de não ter apetite de
vez em quando. Sabe que não começara com isto na adolescência, é natural a
perda de apetite dos adolescentes, as mudanças físicas, psicológicas,
sensíveis, emotivas são constantes, muitas energias são gastas nestas
transformações. Não. Desde a infância perdia o apetite por vezes.
Decidira, após o café da manhã, dar uma caminhada,
quando, seguindo em linha reta, sem subidas, fora se dar nos arredores da
cidade, o asno relinchara e quisera saber a diferença entre ele e o burro.
Desde que vira, primeira vez, a carroça, não pensara sobre esta diferença. O
que importaria fosse o burro no lugar do asno a puxá-la? Dir-se-ia que nem
inconscientemente sentira a necessidade de saber a diferença. Olhando os dois
animais, após o relincho do asno, percebeu haver diferenças, a começar pelas
orelhas. Não era, digamos, “defeito de fabricação”. Eram duas raças. Aliás,
Credólio Cruzilis se lembra de alguém muito íntimo lhe ter dito: “Sua filha é a
edição bem melhorada”. E nunca se esquecera disto.
Retornando à casa, por volta das dez e meia,
pensando sobre a carroça e o asno que subia a rua, chegara à conclusão de que
muitas coisas seriam desvendadas. O que seria desvendado não sabia dizer. O que
provocaria o desvendamento com o saber a diferença entre as duas raças? Eram
indagações que lhe perpassavam a mente, sentia vontade de as saber responder
com categoria. Surgiam às dezenas num só jato. Uma espécie de excitação
percorria-lhe o corpo. Já havia pensado que para bem estabelecer uma
investigação das imbecilidades, mazelas, achaques do homem era preciso
compará-lo, mas com que? Isso de comparar um homem bom, honesto, sério e
sincero, acrescente-se a conduta moral e ética com outro cujas características
são contrárias, ainda não explica a contento. Só poderia ser com o asno?
Poderia ser com outro animal, o cachorro, por exemplo, mas é o maior amigo do
homem. Fora o asno que lhe despertara a atenção; crê ter sido a anunciação de
sua resposta, caberia agora desvendá-la.
Nada melhor que se dirigir à rua onde morava o
carroceiro. Começaria a investigação a partir de saber qual é o quotidiano de
ambos, após o expediente de trabalho. Não é essa a prática de alguém que deseja
a todo custo saber as coisas com razão: pesquisar antes de qualquer opinião a
respeito, antes de emitir as suas idéias? A especulação só iria prejudicar a
idéia. Ademais, não é homem de especulações. Preza os documentos comprobatórios
dos fatos e acontecimentos, idéias e filosofias.
Só escreve, quando pode comprovar. Envolver-se com
as pessoas reconhecidamente de bem, as autoridades e personalidades, por haver
dito um dislate, e a sua conduta ser posta em dúvida, quem sabe até ser preso
por difamação, não é o seu feitio. Não suportaria de tanta vergonha, passando
na rua, vendo os olhares, os sorrisos, as conversas em mesas de bares na
calçada, nas esquinas o grupinho, sendo ele o objeto de todos os olhares, o
extremo ridículo por haver dito algo que não procedia nem na mente de um
perfeito imbecil.
Fora justamente esta a razão de haver perambulado
por três capitais, algumas cidades do interior, antes de vir residir em Atenas
Atéia. Fora preso por, num momento de embriagues espancar uma prostituta.
Reconheceu a sua culpa, dizendo ao cabo, de cujo nome jamais se esquecerá,
Adelson, mas o policial começou a instigar-lhe com isto não é verdade, você
está é bêbado. Disse simplesmente que se gostasse de macacos com certeza
comeria muita banana. Preso por desacatado à autoridade. Na cadeia pública,
pediram-lhe os documentos jogando-lhes sobre a mesa. Levara uma pancada. Os
óculos caíram, quebrando as lentes, jogado dentro de uma cela. Saíra às onze
horas da manhã do dia de Natal.
Sabendo do horário do término do expediente do asno
e de seu dono, esperou uns vinte minutos, em pé à porta de um botequim,
conversando com Dánaos Méfis a respeito de suas intenções de saber algo mais
sobre o asno, seria muitíssimo interessante a pesquisa, iria ajudar-lhe e muito
a compreender a prática humana inspirado num asno.
- Você não está regulando muito bem, Credólio
Cruzilis – disse-lhe Dánaos Méfis, olhando-o fixo nos olhos, o que compreendeu
estar desejando ver neles algum brilho especial que identificasse grau de
insanidade – Interessar-se por pesquisar a vida de um asno e de seu dono é
realmente coisa esquisita de todo. Qual o objetivo disso? Onde quer chegar com
essa coisa toda? Isso trará algum benefício? Na minha opinião, o bom senso diz
que tudo tem de ter um objetivo, tem de trazer benefícios os mais variados; não
sendo assim, é despropósito deslavado.
- Pode ser. É a minha decisão.
Despediu-se de Dánaos Méfis, dirigindo-se ao lugar
onde lhe informaram moravam o dono e o seu asno. Ouviu Dánaos Méfis dizendo:
“Credólio não está bem. A solidão das pessoas faz coisas que até o bode-preto
desconfia. Para quem os homens nada mais significam senão neuroses e mazelas
nada mais óbvio que ser afastado do convívio”. Por que um homem que desejou ser
padre, não conseguiu, desejou ter uma família de bons princípios morais e
éticos, não conseguiu, quis matar um homem com quatro tiros, e ele ainda vive,
só que sem um rim, convive com Deus e o demônio? O que explica isto é somente o
dinheiro que tem.
Não acreditava ele, Dánaos Méfis, que Credólio não
havia ainda aprendido algumas lições por suas críticas diretas, tornou-se
persona non grata. Agora está escrevendo um livro sobre o asno-da-carroça, uma
comparação com os homens. Imagina as críticas ferinas, sutis, não havendo a
quem não sirva de imediato. Se não tomar cuidado, as conseqüências podem ser
muito sérias.
- Donde já se viu chamar as autoridades de “osso de
pescoço” num evento social abertamente – disse Beócio Neto, quem neste evento
esteve presente, sentindo o clima de insatisfação por todos os lados com as
palavras de Credólio Cruzilis – Se fosse ateniense ateu, haveria modo de
compreender; não o sendo, quem lhe deu o direito de criticar-nos? Tem
necessidade de ser mais importante que os outros. Só os seus valores são os
dignos. Não passa de um homem indesejável.
Sentou-se ao banco de uma praça frente à casa do
carroceiro. Um barracão de dois ou três cômodos, as paredes brancas carcomidas
pelo tempo, telhas quebradas, sem janelas de frente. Havia, mas do lado. Por
ser horário de verão, sete e quinze ainda está claro. O carroceiro estava
sentado à soleira da casa, mascando fumo de rolo. Cuspia a todo momento, aquela
poça de cuspe preto no chão. Passadas três casas, a nata da sociedade faz
exercícios físicos na academia. E se, após o trabalho, esses homens tomassem de
uma carrocinha e apanhassem o lixo do centro da cidade, levando para um terreno
baldio? Já que o prefeito é um incompetente e inútil, é tarefa da comunidade
trabalhar para a limpeza e higiene da cidade. Não iriam precisar gastar
dinheiro com academia. As subidas deixariam seus músculos um primor, diminuiria
o índice de enfartos, de vadios perambulando pelas ruas, de velhos embriagados,
dormindo nas calçadas, nos mercados, homens casados, pais de família.
Aliás, a avó paterna, Grácia Noreto Cruzilis, tinha
o mesmo hábito. Dava nojo ficar perto dela, olhar o chão da área onde ficava às
vezes sentada, às vezes deitada na rede. Por isto, observando o carroceiro
sentado à soleira da casa, mascando fumo de rolo, sentia um misto de náusea e
de repúdio à lembrança – a náusea provocou o repúdio ou este, aquela? A única
história que contava para os netos – e os filhos diziam não ser estória, mas
real – era ter visto a desgraça encarrapitada numa das galhas do abacateiro no
fundo do quintal. Real a partir das próprias palavras da mãe, descrevera ela a
cena tomada de pavor e medo, as mãos tremendo, o corpo sentindo um calafrio sem
fronteiras. Quem poderia ter essas reações, se não fosse verdade o que estava
descrevendo? Não por eles mesmos haverem com ela presenciado a cena da aparição
da desgraça. Ouvindo-a sempre, modificava os detalhes a cada vez que contava,
desejando que assim a tornasse mais real, pensava Credólio Cruzilis que, ao
invés de ser a desgraça, era ela própria: o seu desejo era ser a desgraça
encarrapitada na galha – assim todos passariam a ter medo dela, iriam
respeitá-la. A visão fora a revelação para a solução de ninguém a respeitar,
fazer menos dela, rir de suas palavras, gestos, atitudes. As crianças não iriam
ficar cochichando nos cantos sobre o seu hábito de mascar fumo. Elas também
veriam a desgraça, se não a respeitasse, tratasse-a como sua avó querida e
amada.
Manoel Ferreira Neto
(FEVEREIRO DE 2005
(#RIODEJANEIRO#, 29 DE AGOSTO DE 2018)
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