#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO I - I PARTE
“De ordinário, mesmo para as mais íntegras pessoas basta uma pequena
dose de agressão, malícia, insinuação, para lhes fazer o sangue subir aos olhos
e a imparcialidade sair dos olhos”.
(Nietzsche)
"Se me perquirisse um entrevistador diante das câmaras de televisão
quem afinal sou eu, responderia com todo orgulho e felicidade: SOU O ASNO DAS
LETRAS"(Manoel Ferreira Neto)
Asno das letras.
Há dias, não mais que duas semanas, estava passando próximo a lugar
cercado de fios de arame, plantação de eucaliptos, contou oito cortados: “As
autoridades deveriam cuidar da natureza, não permitir o desmatamento”, dissera
a si próprio; ao fundo destas árvores um campo a perder de vista gramado e de
pedras, várias bifurcações de rodovias que levam a regiões diferentes, e um
animal, digamos, relinchou; olhando, ficou na dúvida se se tratava de asno ou
burro – para Credólio Cruzilis, há diferenças que os identifiquem, não há mais
que ter dúvidas, a ciência os define com categoria. A uns cinqüenta metros, o
esgoto a céu aberto. Há vários rios e córregos na cidade que se tornaram
esgotos. Crê que o odor fétido afastou até os urubus do céu ateniense ateu:
difícil ver urubu em Atenas Atéia. Em Paris, no século XVIII, havia urubus
sobrevoando o céu ou eles também se distanciaram da cidade devido ao odor
fétido? Jamais lera isto de urubus em Paris no século XVIII. Não tem a ciência
do olfato dos urubus, crê que há limites para eles, a carniça podre não, a
carniça saborosa.
“Como definir”, perguntou a si mesmo, ouvindo o animal relinchando,
parecia intensificar o relinchado, olhando se não havia alguém quem pudesse lhe
responder se se tratava de “burro” ou de “asno”. Chegara o momento de sabê-lo –
uma oportunidade assim não se deixa perder; acaso aconteça, crê não surgirá
outra vez. Algumas vezes tivera a curiosidade, mas não dera qualquer atenção.
Há momentos que é necessária a ciência dos asnos – se tivesse alguma, teria
logo reconhecido. Por que esse interesse? Não sabia responder.
Estava passando um rapaz de bicicleta, empurrava-a, lentamente, cabeça
baixa – a de quem vai pensando o que acontece na vida, frustrações e fracassos,
um “mindinho” de alegria, uma “unha” de prazer, as decepções com os amigos,
dificuldades financeiras. Talvez nem estivesse pensando coisa alguma, nada
estivesse sentindo, apenas empurrava a bicicleta, tinha um trajeto a ser
percorrido, lugar a chegar. Não era subida, era reta. Subir rua, conforme a
inclinação, é já difícil, resfolega-se, as pernas doem; subi-la empurrando
bicicleta é ainda mais difícil e penoso, ao final resta apenas sentar e esperar
o cansaço passar. Para quem acá nasceu, a maioria das vezes pouco se dá se o
morro é íngreme, se mais fácil de subir, está-se acostumado a fazê-lo desde a
mais tenra infância. Há quem tenha dificuldades, resfolegue-se, tenha de parar,
sentar um pouco, recuperar o fôlego, vezes tantas quantas necessárias; há os
idosos. De qualquer modo, os morros estão aí para serem escalados. “Em Atenas
Atéia, paga-se táxi apenas para subir”, dizem alguns, “As descidas ficam à
custa do ponto-morto”.
- Por favor – gritou alto para que fosse ouvido. A dúvida que se lhe
surgira no instante: se iria parar e olhar quem estava chamando. Há quando se
chama alguém, e este finge nada ter ouvido, seguindo o trajeto. A desculpa para
disfarçar a “vergonha” de o outro não haver dado atenção ao chamado é a mesma:
“Não ouviu”, em voz alta para quem estiver passando, ter ouvido o chamado, a
fim de não pensar coisa alguma. Sabe até mais que as ferinas línguas insinuam,
e não têm como provar, a razão do fingimento de não haver ouvido, sabe o coelho
que está atrás do mato. Anda de cabeça baixa, ninguém o chama, cumprimenta-o.
A pessoa parara a bicicleta, olhara de lado e outro quem havia gritado.
- Você... – disse Credólio Cruzilis, apressando os passos, caminhando em
direção ao rapaz – Você pode me dar uma informação? – indagou, dando longo
trago no cigarro, passando a mão esquerda no cabelo. Não se tratava de
encenação estes gestos, demonstravam a ansiedade em logo saber a diferença dos
animais.
- Sim... – respondeu, quando Credólio Cruzilis ficara a alguns
centímetros da bicicleta, fumando, olhando-o fixo no rosto, fisionomia
estranha, olhar profundo, olhos brilhantes, tinha espécie de carne vermelha no
olho direito, estava irritada. A fisionomia denotava frieza e sequidão. Chinelo
de dedo, calça marrom desbotada, um pequeno furo no joelho, camisa azul
encardida, faltando botão, o primeiro de cima, uma corrente de prata, duas
imagens de Nossa Senhora das Graças, escondidas nos pelos, dependurada numa
corrente de prata. Não a tira nem para dormir, tomar banho.
- Vê aqueles dois animais além cerca... Pode me informar se são asnos ou
burros?...
Que pergunta mais descabida... Sem sentido... Se os dois animais são
burros ou asnos? Por que alguém iria gritar alguém para perguntar as diferenças
de dois animais que se parecem? Nada verossímil, apenas criatividade. Em Atenas
Atéia, há sempre homens importantes de toda parte do mundo perguntando isto e
aquilo; são cientistas, pesquisadores, historiadores. Os atenienses ateus
mesmos não se interessam por nada, nada sabem de coisa alguma, com a boca
aberta esperam a morte com volúpia e devassidão.
Manoel Ferreira Neto
(FEVEREIRO 2005)
(#RIODE JANEIRO#, 27 DE AGOSTO DE 2018)
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