#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO IV - I PARTE ...
Terá sido a intenção do carroceiro, colocando varal
com cenoura dependurada à frente da carroça, a uma distância em que o asno não
a conseguisse alcançar, modo de despertar no asno desejo de comer a cenoura?
Se fora a intenção, estaria o carroceiro castigando
alguma atitude do asno com que não concordara? Talvez a atitude do carroceiro
não tenha nada a ver com o asno; existe outra, digamos, “atrás dos coxos",
nas ad-jacências das "coxias" que intuíra e o tempo iria mostrá-la
com todas as empáfias.
Precisa não instigar a ironia dos outros, pode
causar-lhes sérias conseqüências. Imagina se alguém dissesse: “Só atrás dos
coxos se explica porque ele ganhou as eleições municipais”. Ao invés de dizer
“atrás dos panos”. Contudo, não estaria errado. Um prefeito que não tampa os
buracos da rua, deixa o esgoto a céu aberto que é pura merda, coisa tão
simples, só pode ter sido eleito atrás dos coxos. Os proprietários de veículos
estão com o orçamento mensal uma fortuna porque o carro está sempre precisando
conserto por as ruas estarem esburacadas. Isto sem contar a compra dos votos
com o dinheiro da prefeitura. Fora descoberta a sua falcatrua, mas atitude
efetiva alguma fora tomada. Aliás, havia um portal da Internet onde a
comunidade se expressava acerca dos políticos incompetentes, corruptos. Diziam
os maiores absurdos – aos olhos dos políticos e de seus cúmplices; não havia
única palavra que não fosse um despautério. O prefeito fora à emissora de
rádio, falou, falou, só lhe faltou derramar muitas lágrimas de tristeza por
tamanha injustiça. Tentou representar, mas precisava de chorar mesmo, e isto
ele não conseguiu. Proibiu o espaço do portal onde as pessoas estavam se
expressando. O advogado do prefeito quem endossara a proibição publicara sua
resposta num tablóide, diante das acusações da comunidade de ser cúmplice do
prefeito, dizendo que a proibição se fundamentou nas palavras de baixo calão,
nas ofensas à autoridade municipal. Chamar um Zé Mané de autoridade municipal,
que absurdo. Há quando se deve pensar em que lugar se encontra, no mundo ou
nalgum buraco.
Houve quem, neste portal, escrevera sobre o
prefeito, na adolescência, vestir-se de mulher, ir para a saída da cidade,
ficar em pé, esperando que algum carro passasse, o motorista parasse, era o
momento de seu programa, nalgum lugar do mato. Ganhava alguns trocados por
satisfazer os desejos sexuais de homens casados. Chegara uma moça à cidade com
a sua família, o pai iria trabalhar numa agência bancária. Conhecera Eleanora,
deixara de sua prática de satisfazer os homens casados. Eleanora soube disso,
mas nunca quisera acreditar: enfim, o marido nunca fora homem de relações
sociais com ninguém. Ouvira dizer, e isto não pode comprovar, mas há muitos
maridos sendo vistos nas estradas, com o carro parado, música tocando...
São questionamentos que faz para dar início. Antes
de a começar, esteve sentado na cadeira de sofá, cofiando o bigode, procurando
algo para escrever, pensando neste caminho dos escravos em noites sem estrelas,
a lua na sua cresc Há semana e quase meia nada escreve. O título nascera, deve
confessar, estando a procurar algo a ser escrito, pensando ser sugestivo,
causar curiosidade em saber que intenção fora a do carroceiro, despertar em
alguém o sentimento de ironia. Antes disso, fazer alguém chorar de vontade de
parar de rir. A arte mesma é aquela que faz alguém rir, mesmo que seja de
asneiras e jericadas: é dificílimo fazer alguém rir até mais não poder, é para
poucos essa arte. Mas o seu ácido crítico vai corroendo por dentro até que o
riso se transforme num choro convulsivo ou numa busca de sentido para a piada
que são a vida e o mundo.
Há quando asno empaca, não havendo surra capaz de
fazer com que o animal retire uma das patas do lugar. Morre de tanto apanhar;
não se move. Daí, crê, tenha nascido um dito popular acerca de pessoas que por
nada mudam de opinião, decidindo por algo. São os “burros empacados”.
Isto Credólio Cruzilis não pode de modo algum se
defender com justificativas ou explicações as mais engenhosas e inteligentes
que não convencem os ímpios, não persuadem os gênios: quando decide por algo,
não há o que possa mudar a sua opinião. A sua opinião no momento é que os asnos
são os mais importantes seres no mundo. É o seu gênio intratável, “cabeça
dura”, como a mulher diz sempre, sem mudar de letras, embora isso aí não seja
possível.
Talvez o asno deste carroceiro seja daqueles que
viviam a empacar, atrasando o trabalho, entregas em horas certas, tendo-o
prejudicado, perdendo fregueses, e este é o modo de trabalho. Teve a grande
idéia, a fim de despertar no animal o desejo de comer o alimento, sendo-lhe
impossível, pois que fora colocado a uma distância tal que não era nem possível
aproximar o focinho. Assim, não empacaria mais. O carroceiro não seria
prejudicado, não perderia os fretes.
Todos os esforços do asno seriam de alcançar a
cenoura, degustá-la com todos os prazeres. Com os esforços, faria a carroça
andar, não importando se estava numa subida ou ladeira. Atrás de si, moveria
tudo, menos alcançar a cenoura.Todos os esforços do asno para comer a cenoura
fazem avançar o veículo inteiro, incluindo a cenoura, que se mantém à mesma
distância do asno. Imagina quando estivesse com uma fome daquelas, a carroça
desembestada pelas ruas, o carroceiro se segurando para não ser jogado fora.
Caído, se não quebrara osso algum, teria de sair correndo atrás da carroça, e
ele que, além de mascar muito fumo de rolo, fuma muitos cigarros de palha
durante o dia, mais de vinte.
Fora idéia engenhosa. Modo inteligente que
encontrara do asno não mais empacar. Algo tinha de ser feito.
Imagina se este carroceiro não a tenha tido devido
às atitudes do asno de estar empacando em horas impróprias. Aliás, o asno era
trabalhador, pouco tinha de chicoteá-lo para andar depressa. Jamais tinha
perdido fretes, entregou-lhes no tempo e hora devidos. Os clientes estavam mais
do que satisfeitos com os serviços da “carroça-dos-sem-nome”. “Isto é que é
responsabilidade com o trabalho”, “Isto é que é respeitar as necessidades dos
outros”... Elogios e mais elogios à eficiência de Lúcifer Pernóstico.
Ao invés de despertar o desejo do asno de comer a
cenoura, tenha tido a idéia para suscitar nos homens algo que se negavam de pés
juntos a aceitar, admitir, enfim, assumir. Ele, o carroceiro, com toda a
simplicidade, tinha descoberto, de início, parecendo-lhe absurdo, julgando que
houvesse perdido os freios nalguma rua ou ladeira da cidade, julgando ter
perdido o juízo, mas o tempo mostrara-lhe que não.
Estava certo. Aliás, sentiu-se o mais orgulhoso dos
homens, carroceiro simples descobrira uma das maiores verdades do mundo, quando
existem homens importantes, doutores, cientistas, filósofos, estes que se
julgam os deuses da humanidade, nem de longe pensaram a respeito.
Mostrara à Hécuba Cruzilis o que conseguira
escrever a respeito do asno, como estava elaborando as suas idéias. E, com
certeza, não lhe sugerira quaisquer motivos de risos, nada daquilo iria fazer
alguém rir até quase perder o juízo das coisas e do mundo; se queria mesmo
saber a sua opinião, algo estava de acordo, as asnices chamavam a atenção, o
jogo com as palavras, a ironia. Mas restava saber o que o carroceiro queria
suscitar nos homens, qual a ideia dele que merecesse mérito e honra.
Certo não penso que há coisa impossível, de
qualquer maneira, que os fados o determinarem: assim podem vir aos homens todas
as coisas. Porque muitas vezes acontece para mim, o asno das idéias
estapafúrdias a si e a todos os homens vir coisas maravilhosas e que nunca
aconteceram, que se as contam às pessoas rústicas não são críveis. Mas, por
Deus, a este eu acredito e dou-lhe muitas graças que,
com a suavidade de seu gracioso conto, fez-nos
esquecer o trabalho; sem fadiga e irritação andamos nosso áspero caminho. Do
qual benefício, também acredito, que se alegra meu cavalo, porque sem seu
trabalho viria até a porta
desta cidade, cavalgando não em cima dele, mas de
minhas orelhas.
Estava ainda relendo os artigos que reunira num
texto só, começando a reelaborar. Não havia problema de a mostrar, a ideia,
pois as denúncias ainda apareciam muito distantes nas entrelinhas. Caso
contrário, não a mostra. Já está consciente de todas as palavras, do lero-lero
em seu ouvido por causa de suas críticas, de suas diatribes com a sociedade
ateniense atéia. Nem por isso ele deixara de fazê-lo. Publicado, não tem mais
jeito de des-publicar, se proibido hoje, amanhã inevitavelmente será colocado
no mercado literário com todas as empáfias e orgulhos.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 29 DE AGOSTO DE 2018)
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