#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO VI - PARTE II...
No outro dia, os comentários acerca da morte da
autoridade, o artigo publicado fazia uns quinze dias. Todos diziam o mesmo. A
matéria publicada no tablóide dizia perfeitamente a razão e o motivo do crime.
Fizera acusações as mais evidentes possíveis. Não houve quem não dissesse que
em Atenas Atéia não há qualquer liberdade de expressão, uma única palavra é já
risco de morte.
Desejava o vereador ser reeleito; enfim, a sua
condição financeira modificara bastante desde que se tornara vereador, estava
conseguindo sustentar a família, estava cercado de pessoas, tinha todos os
privilégios e benefícios que um cargo político tinha a oferecer-lhe. Se não
fosse eleito, tudo isso seria coisa do passado, voltaria a ter dificuldades na
vida, a família reclamando das faltas disso e daquilo. Não podia ser. Precisava
ser reeleito. O que intriga na Câmara dos Vereadores de Atenas Atéia é que os
vereadores não são homens simples, humildes, a origem é ainda inferior a isto –
não será isto uma representação ou coisa que o valha? Inteligentes são. Há as
inteligências voltadas para o bem e há as para o mal.
- Tio, não vai mesmo ser possível ganhar as
eleições...
- Será sim... Compra-se os votos... – dissera Totó
Balsamão, dando uma daquelas gargalhadas que se ouvem a milhas de distância; o
fato é que em todos os gabinetes da Câmara se ouviu a gargalhada – O povo tem
preço, meu sobrinho... – com um sotaque nordestino para mostrar o seu poder.
Neófilo Balsamão fora eleito. Podia ele continuar a
desfrutar de sua importância social e econômica, sustentar a família de seus
caprichos e mazelas materiais. Entrara com um projeto na Câmara Municipal para
que se pagasse ao carroceiro dois salários, deixando assim de ser puxador de
carroça, o asno solto bem distante de Atenas Atéia, jamais sabendo como
retornar. Mas não houve consenso: o mínimo estava muito bom, quanto ao asno a
morte seria fundamental.
Impossível qualquer medida contra a “carroça-dos-sem-nome”
não passar pelas ruas. O carroceiro ficaria sem a sua sobrevivência. Os fretes
garantiam a alimentação, aluguel do barraco. Só se recebesse aposentadoria.
Como explicar a aposentadoria? Funda-se no fato de, passando nas ruas, algumas
pessoas se sentem deprimidas, têm crises sérias. Alguns vereadores passaram a
ausentar das reuniões da Câmara por estarem deprimidos, dor de cabeça, etc.,
etc. Aposentar um homem por sua carroça causar depressões nas pessoas. As
autoridades seriam vistas como perfeitamente ridículas. Se aprovassem na Câmara
a aposentadoria do carroceiro, toda a comunidade diria que isto fora feito por
os vereadores estarem tendo problemas, se fosse apenas o povo, nada seria
feito. Ficasse só dentro da cidade, vá lá, mas as cidades vizinhas iriam
comentar sobre isto, chegaria até em Brasília. Aí, a gozação, a mofa seriam de
toda a nação.
Noutro ângulo, poder-se-ia impingir o carroceiro a
tirar o varal e a cenoura. Caso resistisse, receberia intimação do delegado, os
soldados enviados tirariam o varal e a cenoura. Enfim, o Estado deve contribuir
para o bem estar da população. O asno não subiria as ruas desembestado. Os
fretes acabariam. Ambos morreriam de ociosidade e fome. Injustiça.
Beco sem saída. A “carroça-dos-sem-nome” tinha de
continuar a levar e trazer fretes, passando pelas ruas dos que se sentem
angustiados. Só uma saída viável, aliás, de grande benefício aos homens, à
comunidade: as pessoas não mais ficarem à janela, observando as mazelas
humanas, enriquecendo o repertório de fatos e boatos alheios. Os alcoólatras
comprarem suas bebidas, levando-as para casa, tomando na sala, sentados à mesa,
à poltrona. Janelas fechadas. No sábado, à tarde, a população pode se dirigir à
igreja, fazer suas orações, pedir a proteção de Deus, o asno não estará pela
rua até na segunda de manhã, aliás, o carroceiro vai para o seu barraco no alto
da montanha, debaixo de uma pedra enorme, onde passa o final de semana só
apanhando capim para a semana de Lúcifer Pernóstico.
Quem de modo sutil, perspicaz, teve a intuição da
intenção do carroceiro, mostrar aos homens a inutilidade da vida, escrevera
sátira, com linguagem chinfrim, erros crassos de estilo e gramática, dezoito
“que”, oito “seus”, “sua”, nove “uns” e ‘umas” num quarto de página de
tablóide, uma e meia de papel ofício, publicando, intitulado
“Carroça-dos-sem-nome”. Tirara um retrato subindo a rua das Biquinhas. O
editor-chefe anunciara o artigo na Manchete. Não sabe da veracidade das
informações, mas alguém da rua interpretou a atitude do tablóide e do cronista
como um acinte, inclusive não só a ele, mas a outros dois. Um deles está
esperando a melhor oportunidade para responder, não apenas por lhe jogar
indiretas – por que não é homem de chegar e dizer na cara o que pense e sente?
-, mas por agredir gratuitamente os seus companheiros. O outro tem certos
privilégios no méttier dos empresários, poderá dizer o que bem entender. Há
quem esteja sempre comentando que, se a oportunidade surgir, o melhor para ele
será participar sua mudança, pois jamais irá poder responder, a sua imagem será
a de um homem eminentemente ridículo e tolo.
Apesar do mau gosto da linguagem e estilo, a ironia
fora entendida por alguns. Proibido de voltar a escrever qualquer matéria em
tablóides da comunidade. Não se publica algo tão agressivo, repugnante. Há-de
se ter respeito pela condição humana.
Se o autor tivera a intenção de conscientizar os
homens de sua condição, assim se tornando escritor de renome por sátiras
inteligentes e perspicazes, só teve uma oportunidade. Em verdade, não são
apenas as sátiras inteligentes que são proibidas de publicação; qualquer coisa
que insinue a hipocrisia e a incompetência das personalidades e autoridades não
pode sair publicada. Não seria o caso de Credólio Cruzilis escrever um artigo
inspirado em Diógenes, quem saíra com uma lanterna à cata de um homem honesto?
Infelizmente, ele nada mais escreve em tablóides. Em qualquer tempo ou situação
alguém necessitasse de investigação de fatos históricos, abordados na edição,
depararia com a sátira. A alternativa fora no mínimo imbecil. Já eram história
aquelas palavras.
Não lhe é dado saber se teria o pesquisador as
mesmas reações tidas pela comunidade quando fora lançada a sátira. Quem sabe
teria daqueles sorrisos amarelos, dizendo: “O asno era um quadrúpede pensante.
Por isto subia as ruas desembestado. Desejava realizar as idéias e sonhos”.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 30 DE AGOSTO DE 2018)
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