#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO VI - PARTE I
De início, lastimou o homem não ser quadrúpede.
Poderia plagiar Aristóteles, ao dizer: “O homem é um bípede implume”. Não sabe
se lhe atribuída por ser modo de ridicularizar a filosofia. Quanto à frase, não
sabe afirmar se ipsis litteris foram as palavras.
Diria: “O homem é um quadrúpede...” Com o que
completaria a idéia, conservando a ironia? Saiu pela manhã para comprar
cigarros, pensando o que deveria ser. Não encontrou. Tratou de imaginar outras
situações para empreender o desejo de algo escrever. Surgiu-lhe o interessante,
conservando a ironia atribuída a Aristóteles, seria substituir “homem” por
“asno”: “O asno é um quadrúpede pensante”.
Se alguém manifestava necessidade de frete, a
carroça-da-cenoura era indicada. Muito poucos sabiam o nome do carroceiro –
lembrar exigiam esforços. O asno não tinha nome. A única vez que necessitou de
frete, pensou na “carroça-dos-sem-nome”. Dirigiu-se ao lugar onde ficavam
carroças de aluguel. Perguntou pela “carroça-dos-sem-nome”, não sabendo os
carroceiros informar. Dissera o que a comunidade dizia: “carroça-da-cenoura”.
Havia saído para um frete. Não iria demorar. Esperasse uns dez minutos.
- Não vai demorar, senhor... Espera uns dez
minutos.
- Tudo bem. Vou tomar um café na padaria. Volto
daqui a pouco.
Passando pelas ruas, havia por parte de uns e
outros comentários jocosos. Por que a idéia da cenoura colocada a uma distância
que o asno não é capaz de abocanhá-la? Suscitar nele o desejo. Fazendo-o,
subiria as ruas sem qualquer empacamento. O esforço continuaria vigente. Não se
poderia imaginar o que era mais “tapado”, se o asno que corria desenfreado ruas
acima, à busca de comer a cenoura, se o carroceiro por realizar a genial idéia
tivera.
Havia quem, ao detectar a carroça subindo ou
descendo, estando à janela, olhando o movimento, observando as mazelas humanas,
acontecimentos diários, tendo o que conversar sobre a vida alheia, súbito saía
da janela. Até mesmo os velhos que ficavam sentados na calçada na esquina da
Praça dos Alcoviteiros – alcovitar próximo a unidade do exército não é
perigoso; não se corre o risco de cadeia? Ainda bem que não, não é verdade? -
despediam-se e iam embora. Só retornavam quando não mais havia qualquer
resquício da passagem da carroça. Se fregueses de bares, tomando a branquinha,
cerveja, viravam de um só gole. Pediam outra branquinha, enchiam o copo de
cerveja. Até desaparecer de vista, duas ou três branquinhas. As farmácias
estavam ganhando um dinheiro extra por não haver quem não comprasse cartelas e
mais cartelas de “dramin” para dormir – não é calmante, não sendo necessário
prescrição médica para a aquisição. Dormiam, ficavam livres da depressão devido
à passagem de Lúcifer Pernóstico. A secretária de saúde desconhece a questão,
os médicos nada dizem; quando alguém faz menção a isto, dizem que a droga não
causa efeito colateral algum, não causa nenhum vício.
Passada a “carroça-dos-sem-nome”, as pessoas não se
sentiam bem, nó górdio na garganta, aperto no peito. Deprimiam-se. Se de manhã,
só pelo final da tarde conseguiam libertar-se um pouco do mal-estar. Se à
tarde, não importando o horário, só no outro dia, após o sono. Algumas velhas,
após a passagem, corriam para a igreja, rezavam dois ou três terços; se não
corriam para a igreja, trancavam-se no quarto, punham-se a rezar euforicamente.
Por que não se sentiam bem? Alguma razão teria.
Qual? Sentimento de pena, dó, por o asno ter vontade de comer a cenoura, não
podendo abocanhá-la? Quem sabe o sentimento fosse tão presente levando alguém a
pular frente à carroça, abocanhando a cenoura! Sentimento de revolta por virem
o animal subindo as ruas desembestado? Comentários nas esquinas, portas de
igreja, repartições públicas, pessoas esperando na fila a oportunidade de serem
atendidas.
Respostas as mais irônicas. Sem explicações
racionais ou viáveis. Dentre elas que asno não tem vontade; quem a tem é o
homem. Asnos agem por instinto, o homem, por razão.
Ninguém sabia explicar o motivo de algumas pessoas
terem crises emocionais com a passagem da “carroça-dos-sem-nome”. Alguém,
perspicaz, levantou a hipótese de o carroceiro haver tido a idéia para mostrar
aos homens os esforços contínuos, dilacerantes ou prazerosos, dependendo da
condição psíquica de cada um, eram inúteis; estavam condenados desde a Grécia.
O Ser nunca seria realizado.
O que explicava as crises de algumas pessoas de
nossa comunidade era o esforço por felicidade, paz, embora ser inútil. A vida,
inútil. Preguiçosas, parasitas acostumaram-se com o que o passado lhes legara,
não precisavam trabalhar. O que faziam no mundo? Quem eram? Nada. Não tinham
consciência de as depressões estarem fundamentadas nisto. A angústia era
inevitável. E se se tornassem conscientes? Quais seriam as conseqüências? No
mínimo trágicas ou drásticas, dependendo das interpretações. E se não
dependesse delas, no máximo conseqüências gratuitas e sem senso. Daí se vê com
nitidez a coisa era impossível de ser explicada; talvez por não haverem
inteligências capazes disso.
Terminando a explicação, sentado à mesa de
botequim, tomando a branquinha, em presença de alguns colegas, soltou as
palavras derradeiras: “A vida, a carroça da cenoura”. Ouvindo-lhe, alguém de
outra mesa replicou ou interferiu, não lhe é dado definir: “O que está dizendo
é sério. Sugiro guardar a explicação. As conseqüências serão drásticas se
tomarem consciência da inutilidade da vida”. Tratava-se de um vereador.
Magricela, olhos fincados nas órbitas, cabelos
crespos, chinela de dedos, calça de moleton com um buraco no joelho esquerdo.
Quem quiser encontrar-se com ele suficiente dirigir-se ao “bordel da lapa”,
onde se encontra jogando “pif-paf”, a prostituta Myriam Fumaça que lhe dá
beijinhos na face esquerda para lhe dar sorte, a mulher e os filhos esperam por
ele, chega às onze, embriagado, cai na cama e dorme. Quem olhasse e não
soubesse ser um vereador, diria ser um mendigo. Dizer assim categoricamente
pensa-se logicamente em algo radical, paradoxal, discriminação, preconceito.
Mas há padre que não saía do prostíbulo, jogando baralho, rodeado de
prostitutas, lera isto numa revista ainda quando residia em São Paulo. Quem não
conhecesse, diria que o prefeito é um peão que veio à cidade e vestiu a sua
roupa melhor, embora sem qualquer grife, comprada numa lojinha muito das
simples. Aliás, o vereador vai ao trabalho na Câmara de chinela de dedos. Ao
final do expediente, só retorna a casa encostando-se nas amuradas das ruas,
isto quando não dorme na calçada, no chão do Mercado Municipal, no “bordel da
lapa”. Fora reeleito por seu tio lhe haver posto em mão uma soma altíssima em
dinheiro para comprar os seus votos.
Dias antes, se não se engana, quinze, saíra matéria
num dos tablóides da comunidade, uma denúncia de uma das autoridades acerca de
todas as falcatruas, corrupções, mazelas, irresponsabilidades da atual
administração pública, matéria esta comprometedora em todas as dimensões que se
imagina, que se pensa. A comunidade mesma não dera muita atenção à matéria:
primeiro, o editor-chefe não era pessoa de confiança, amava os
sensacionalismos, segundo, já estava consciente de que a administração pública,
suas mazelas eram da pior qualidade possível, “escroque”, para bem dizer a
verdade; não se cansa de denunciar-lhe em seus editoriais, na maioria das vezes
coisas completamente sem senso, e nunca um e outro tomam as devidas vergonhas,
e se tornem ao menos seres humanos, em verdade, são ângulos obtusos.
Alguns dias depois da matéria publicada, esta
autoridade estava sendo esperada à porta de sua casa por dois homens vestidos
de modo muito simples, camisas de manga curta, encardidas pelas constantes
lavações, sapatos sujos. Alguém que esperava a autoridade para lhe pedir alguma
ajuda, para reivindicar algum benefício. Sentaram-se na calçada, acenderam o
cigarro de palha, conversavam tranqüilamente.
Após uns vinte minutos, a autoridade descia a rua
de sua residência, apressado por estar com muita vontade de tomar café, o dia
fora realmente muito atarefado. Ao chegar à esquina de sua residência, vira os
dois homens sentados quase próximo ao portão. Continuou andando. Já havia
chegado a casa, estando pessoas esperando por ele para reivindicar algum
direito, pedir alguma oportunidade de emprego. De repente, um deles se
levantou, sacou a arma e disparou dois tiros, o outro, levantou-se e também
disparou dois tiros. Quatro ao total. A autoridade não teve tempo para nada.
Morreu imediatamente. Os dois homens saíram andando com naturalidade. Eram onze
horas da noite. Ninguém passava. Se alguém houvesse ouvido os tiros, não se
manifestaria. Ao contrário, sairia correndo com medo de bala perdida, ficar sem
vida por estar passando na rua, indo para casa, nada sabendo de coisa alguma,
morrer de graça, isto não.
(#RIODEJANEIRO#, 30 DE AGOSTO DE 2018)
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