#AFORISMO 1020/ PROSCRITO DA RUA SANTO ANTÔNIO DA ESTRADA# - Manoel Ferreira Neto: AFORISMO/GRAÇA FONTIS: PINTURA
Epígrafe:
"É na prática de bons atos que florescem grandes virtudes."
(Graça Fontis)
O espírito humano, à imitação da planta que floresce do modo mais
esplendoroso entre os não-conformistas e anticristos, aliás, onde sempre
floresceu, na sombra, como a violeta, embora com outro odor, deve seguir uma
curva que o devolva ao seu ponto de partida, ao seu lugar de origem. No início,
falo deste estado maravilhoso em que se encontram os divinos proscritos, onde o
espírito se encontra, às vezes, lançado como que por uma graça especial; digo
que estes mesmos divinos proscritos anseiam incessantemente a reanimação de
suas esperanças e a sua elevação ao infinito; mostram um gosto frenético e
alucinado, muito embora em suas mentes e imaginações estas palavras suscitem
quase o mesmo sentido, por todas as experiências prazerosas e sublimes, mesmo
que perigosas, mesmo que em demasia ininteligíveis e portadoras de
conseqüências as mais desastrosas; ao exaltarem suas personalidades, suscitam
por um instante aos seus próprios olhos o paraíso de segunda mão, objeto de
todos os desejos, orgias, e digo, enfim, que este espírito arrojado, trigueiro
e levado, sem o saber, até o inferno, confirma assim a sua grandeza original.
Neste mar, neste mar tempestuoso do viver e do actuar, subo, desço, não
repouso, vou e venho sem cessar neste mar. Morredoiras vidas, mortes renascidas
em fogosas lidas, sem jamais parar... eis de que eu fabrico no imenso tear as
roupas fulgentes que o rico mais rico, que o Ente dos Entes se digna trajar.
Creio não ser necessário e nem conveniente transformar o espetáculo em
um comércio que visa apenas o lucro e o conforto, vender a alma para pagar as
carícias embriagantes e a amizade das parcas. Imagino um homem (um poeta, um
filósofo cristão, um anticristo, colocado no árduo Olimpo da espiritualidade, à
sua volta as Musas de Rafael ou de Mantegna, para consola-lo de seus longos e
invernosos jejuns e preces assíduas, observam-no com seus mais doces olhares e
úmidos lábios, os sorrisos mais iluminados. O divino Apolo, mestre em tudo
saber, afaga e acaricia com seu arco as cordas mais vibrantes. Abaixo dele, ao
pé da montanha, nas sarças e na lama, a multidão dos humanos, o bando dos
apátridas, simula os esgares da alegria e do prazer e solta urros provocados
pelas dentadas do veneno.
Entristecido com tamanho espetáculo de luzes e palavras, gestos e
insinuações, digo a mim próprio: “Estes infortunados que não jejuaram, nem
oraram e que recusaram a redenção pelo trabalho, enfim o trabalho enobrece o
homem, garante que o seu epitáfio seja por todo sempre iluminado pela luz
solar, buscam submeter-se aos escárnios e humilhações de toda sorte como alguém
se submete a um câncer, a uma aids ou à morte, com aquele impávido fatalismo
sem revolta, em virtude do qual os russos, por exemplo, ainda hoje têm vantagem
sobre nós, os ocidentais, no trato com a vida.
Isto, como agora sou bem autêntico e ousado em afirmar, é digno de um
grande trágico: o qual, como todo artista, somente então chega ao cume de sua
grandeza, ao ver a si próprio e à sua arte como abaixo de si – ao rir de si
mesmo.
Em face da velha senha mentirosa do ressentimento e da mágoa, a do
privilégio da maioria, enfim é mais fácil um proscrito adquirir o seu leito de
penas, diante da vontade de rejeição, preconceito, discriminação, de atraso e
ocaso do homem, ecoou forte, nítida, simples e insistente como nunca dantes
pensado e imaginado, a terrível e fascinante contra-senha do privilégio dos
raros. Farfalhices e guizalhada a bobos só pertencem.
Eis, portanto, homens supostos, divinos proscritos, o espírito de minha
escolha, chegado a esse grau de prazer e serenidade, onde sou levado a
admirar-me a mim próprio. Toda contradição desaparece, toda polêmica se resolve
com um aperto de mãos e três tapinhas nos ombros, como é sobremodo peculiar nos
mineiros, todos os problemas filosóficos e teológicos tornam-se transparentes,
ou pelo menos assim parece. Tudo é motivo de prazer, de júbilo, de ostentação.
Uma voz nele fala (infeliz! É a sua própria voz) e lhe diz: “Você agora tem o
direito de se considerar superior à raça humana, a toda a humanidade; ninguém
conhece ou poderia entender tudo o que você pensa e sente; seriam mesmo
incapazes de apreciar a benevolência que lhe inspiram. Você é um rei que os
passantes desconhecem, e que vive na solidão de sua convicção: mas que isto
importa? Aliás, nada disso importa realmente. Você por acaso não possui este
desprezo soberano que torna a alma tão humilde e boa, capaz de praticar as mais
perfeitas misericórdias e compaixões?”
De quantas ações tolas e imbecis não está cheio o passado, que são
verdadeiramente indignas deste rei do pensamento e que profanam sua dignidade
real e ideal. É só co’a inspiração própria, espontânea, que se domina a turba,
O chocho, o inerte, como de seu não tem, mas quer pôr mesa, pilha aqui, sisa
ali; mistura, assopra no seu fogareirinho um lumezito, e sai-se co’um pitéu de
mistifório que só porcos ou cães o tragariam. Mas banquete que seduza, e
convide, e preste aos homens, só dos miolos se pode guisá-lo. Quantos homens
encontraríamos no mundo tão hábeis e perspicazes para se julgarem, tão severos
para se condenarem? Com a horrível lembrança absorta, dispersa, desta forma na
contemplação de uma virtude ideal, de uma caridade ideal, de um gênio ideal,
entrega-se candidamente á sua triunfante orgia espiritual.
Agora, da contemplação de seus sonhos e desejos e de seus projetos de
virtudes, decidiu-se pela sua aptidão prática à virtude; a energia ao mesmo
tempo vigorosa, esplendorosa, resplendorosa, apaixonante com a qual ele abraça
este fantasma de virtude parece-lhe prova mais do que cabível e suficiente,
peremptória da energia viril necessária para a realização de seu espetáculo, de
seu ideal. Confunde ele, com toda a empáfia de sua personalidade, o sonho com a
ação, com a autenticidade, e com sua imaginação aquecendo-se mais e mais diante
do espetáculo encantador de sua própria natureza corrigida e idealizada,
substituindo por esta imagem fascinante de si próprio, divino proscrito, o seu
indivíduo real, tão pobre em vontade, tão rico em vaidade, termina por decretar
sua apoteose nestes termos nítidos e simples que contêm para ele todo um mundo
de abomináveis prazeres e contentamentos: “Sou agora o mais virtuoso dos
homens”
Logo de imediato este furação de orgulho e empáfia se transforma em uma
temperatura de êxtase tranqüilo, calmo, mudo, repousado, e a universalidade dos
seres se apresenta colorida e como que iluminada por uma aurora ácida e
sulfurosa.
Se uma ruminação selvagem, um grito rebelde, ardente, arrojar-se de seu
peito com uma tal energia, um tal poder de projeção que, se as vontades,
desejos, sonhos, e as crenças de um homem ébrio tivesse uma virtude eficaz,
esta ruminação, este grito reviraria os anjos disseminados nos caminhos do céu:
“Sou um Deus!” Qual é o filósofo francês que, para ridicularizar as modernas
doutrinas alemãs, dizia: “Sou um deus que jantou mal”? Esta ironia, ou cinismo,
ou sarcasmo não afligiria um espírito elevado ao nível de um proscrito, e ele
responderia com todo o carinho e ternura que sua alma fosse capaz de expressar
e revelar: “É possível que tenha jantado mal, rabada de boi com aipim não
caíram bem no estômago, mas eu sou um Deus”.
(**RIO DE JANEIRO**, 20 DE AGOSTO DE 2018)
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