#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO I - III PARTE......
“Asno das letras” significaria não ter ele qualquer inteligência, senso,
metendo-se a escrever, julgando ser o mais importante da raça humana? Não
saberia responder. Teria de perguntar, quando assim lhe dirigissem a palavra, e
isto não o faria, não estaria preparado para ouvir a resposta, sentir-se-ia em
demasia humilhado e ofendido.
Até o próprio animal se sentiria orgulhoso, se soubesse o que é ser das
letras, a importância disso no mundo e na comunidade, apesar de todas as
responsabilidades e compromissos que advêm daí; demorou séculos e milênios,
mas, enfim, um foi reconhecido; a tarefa é o trabalho mais digno para que os
outros sejam reconhecidos também. Ser o único digno de valores da espécie não é
agradável. Ser o único que não possui qualquer valor não é agradável também.
Um asno recebe o dom divino de ser o primeiro inteligente e culto da
espécie. Estava ficando doido, não havia outra explicação. Dava a sua
caminhada, descompromissado com tudo, até nada pensando. Um asno relincha,
lembra-se da diferença da carroça, do asno que a puxa num sobe e desce
ininterrupto...
Chamar-lhe assim seria motivo de risos de todos os que estivessem
próximos. Passado algum tempo, risos de toda a comunidade. Pensa é se alguém,
inteligente e perspicaz, dissesse com todas as letras: “Um asno pensante”. Não
haveria quem não ficasse em silêncio, questionando a ironia: “Se é asno
pensante, então, nós somos humanos sem razão”. O feitiço viraria contra o feiticeiro.
Questionando o nível de sanidade de quem dissera, se já era tempo de ser
internado na Casa de Orates, onde com certeza seria entendido, recebendo todas
as honras e méritos: “está passando da hora de ser internado; não se pode
deixar alguém tão louco pelas ruas da comunidade, com certeza, é um desrespeito
aos nossos valores”.
Tinha de se livrar desse pensamento, dessa idéia, dessa coisa ridícula
que se lhe anunciara num passo de mágica – na sacada de sua residência, deitado
na rede, vira carroça subindo a rua. A princípio, não dera qualquer atenção
àquilo: algo muitíssimo normal. Em sua terra-natal, Cachoeira dos Lobos,
vêem-se carroças por todos os lados, fazendo fretes, entregando leite na porta
das casas. À porta de sua casa, inúmeras, infinitas vezes recebera o leite das
mãos do leiteiro, a carroça parada, o burro ou o asno às vezes abanava a
orelha. Passara algum tempo; sempre via a carroça passar nas ruas. O carroceiro
tivera a idéia de fazer uma espécie de varal de ferro à frente do asno, cenoura
dependurada numa corrente de prata – por que a cenoura e não uma espiga de
milho bem seca e saborosa? -, não havendo modo de a abocanhar, qualquer esforço
seria impossível, a distância é considerável tomando em consideração o focinho
do asno. Atenas Atéia não é região de agropecuária, talvez seja a única carroça
da cidade, o que viria a saber que em verdade são três.
Atravessando a rodovia, descendo uma estrada de terra, lembrara-se da
mulher de Sócrates, Xantipa, considerada desde a Grécia antiga a mais
intransigente das mulheres. Se o filósofo tomasse um copo com água, achava
ruim. Meio copo, achava ruim. Água nenhuma, achava ruim. Isto em todos os
níveis. Sócrates andava irritado. Realmente, era mulher intransigente,
ranzinza. Em suas andanças, teve ideia genial. Se a esposa saísse às três horas
da manhã para comprar leite e pão na padaria, retornaria às nove. Não mais
estaria em casa. Estaria em companhia dos discípulos. Ao retornar, à noite, já
estaria dormindo.
O que tirava dessa lembrança, o que identificava ter algum sentido,
mínimo que fosse, era a ideia genial. O carroceiro tivera ideia genial em
colocar a espécie de varal à frente do asno. Não havia dúvida disso. A quem
perguntasse não receberia outra resposta senão ter sido uma ideia genial, não
bem a cenoura, mas a cenoura colocada a uma distância que o animal não a
abocanha, o varal – varal teria de haver; caso contrário, onde iria dependurar
a cenoura? Talvez a dependurasse na orelha do asno, uma espécie de “amuleto da
sorte” para ter fretes e mais fretes. Ficaria, então, o tempo inteiro olhando
para a orelha do asno, a cenoura dependurada – olha sempre para ela, estando a
puxar as rédeas, cabeça para a frente, cabeça para trás, seguindo os movimentos
dela, para frente, para em sua direção, mas é crido que isto é devido ao
movimento da carroça nas pedras.
Da casa de Sócrates e Xantipa à padaria gastavam-se três horas. Assim o
fez. Acordava a mulher às quatro da manhã para ir buscar pão e leite. Após
algum tempo, passando Sócrates nas ruas, alguém dizia: “Astronauta”. Não era
com ele. Passado outro tempo, muitos diziam nas mesmas circunstâncias. Com o
tempo, todos gritavam com a sua passagem.
Parou. “Astronauta vem de astronomia. Quem mia é gato. Gato gosta de
rato. Rato, de queijo. Queijo vem do leite. Leite, da vaca. A vaca é mulher do
touro”. Gritou: “Chifrudo é...”.
Não se sabe se após a resposta de Sócrates, tenham continuado a chamá-lo
de astronauta. Bem provável que apenas pensassem com a sua passagem sozinho ou
com os discípulos.
Depois daquela resposta, o bom senso dizia ser melhor nada dizer, não se
pode saber qual será a resposta, com efeito humilhante e ofensiva, e os risos e
comentários seriam todos para quem teve a ousadia de se dirigir ao filósofo.
“Isto é o que dá se meter com sábios... A resposta faz dormir pela eternidade,
pelo menos o desejo é de nunca mais retirar a cabeça de dento da terra.”
Aí está: isto não é coisa real na vida do filósofo, há muitas lendas,
mentiras, invenções, piadas. A vida de Sócrates fora bastante carnavalizada. A
ideia genial seria lenda, mentira, invenção, piada? Mas fora ideia do
carroceiro colocar a espécie de varal. Isso era real. Real não fora chamarem
Sócrates de astronauta, a sua resposta, seguindo o seu método de pensar.
Em Cachoeira dos Lobos, numa sexta-feira, estava Credólio Cruzilis
tomando uma cerveja, acompanhada de uma branquinha. Estava sozinho na mesa.
Estava, digamos, “curtindo a sua fossa”, enfim a primeira namorada, com quem
estava apaixonado, não quis continuar o namoro, alegando que estava um pouco
confusa em sua vida, não era nada contra ele, aliás, admirava-o muito,
inteligente, sensível, carinhoso. Ao seu lado, no interior do restaurante, um
grupo de rapazes, três, conversavam animadamente. Um deles contou uma piada sem
qualquer sal e tempero. O outro dissera-lhe rindo: “Diz aí, a sua mãe não vende
você? Você é muito engraçadinho!”. A resposta logo surgiu: “Vender-me mamãe não
vende, mas se você levar a sua lá em casa papai faz um igual”. O rapaz
levantou-se da mesa. Tirou o revólver. Credólio Cruzilis saiu correndo antes de
o tiro ser dado. Felizmente, não atingiu ninguém; atingiu a parede. Polícia
acionada. Um lero-lero na porta do bar. O rapaz fora preso. Não esperava, mas
alguns rapazes que estavam atrás, conseguiram segurar-lhe, tomando-lhe a arma.
A polícia não demorou muito.
Se, ao passar, alguém gritasse “Asno das Letras”, “Asno pensante”, qual
a resposta daria e assim silenciasse a todos? Não sabe. As respostas
espirituosas só surgem diante da situação, creio que em detrimento da
originalidade: nunca são esquecidas. Se soubesse, não seria tão inteligente e
perspicaz, estaria solidificado que sim, é um asno das letras; seria ridículo o
que dissesse. Entregar-se de bandeja, estar nas mãos de todas as galhofas e mofas
não era o seu feitio, o seu estilo é o de olhar para a pessoa bem fixo nos
olhos, indagando se as palavras lhe estavam sendo dirigidas, o que queriam
dizer, sinceramente não conhecia a língua com que se expressava.
Manoel Ferreira Neto
(FEVEREIRO 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 27 DE AGOSTO DE 2018)
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