#AFORISMO 996/ CARTA À HUMANIDADE** - PROJECTO #OS 22 QUE ANTECEDEM O MILÉSIMO# - Manoel Ferreira Neto: DESENHO/GRAÇA FONTIS: PINTURA/AFORISMO: Manoel Ferreira Neto
Pedra Branca, 18 de julho...
À humanidade,
Rua do Desterro, s/nº
Mundo Inteiro - CEP: 66.666.66
Dirigir-vos a palavra: não é tão fácil quanto alguém possa imaginar!...
Se imaginar, só fazê-lo: verbalmente, sentir-se-á falando com o vento, se
escrito, haverá o instante em que as palavras não se re-velarão.
Quem não gostaria de vos dirigir as palavras, confessando pecados e
pecadilhos, tramóias e sandices, tripúdios e culpas, chantagens e remorsos, ter
vendido a alma a Mefistófeles, saído da Igreja Católica, enchafurdado num
templo crente, evangélico, orado com fervor, doado o surrado salário, todos os
bens, inclusive as cuecas ao corrupto dirigente - hipocritamente chamado Pastor
ou Condutor de Ovelhas - para ganhar um caldeirão no inferno, os momentos
felizes e tristes que tivera em vida, até o momento que começou de desejar essa
conversa? Muitas vezes para se sentir importante, tentou dirigir-vos a palavra
numa cartinha. Olhe que alguns, apesar dos pesares, souberam dizer qualquer
coisa, os prazeres e alegrias que sentiram com amigos íntimos, pessoais, quem
realmente amaram na vida, desejaram estar ao seu lado. Não há quem não tenha
imaginado, desejado, tentado, conseguido. Servindo-se da fala – sozinho no seu
canto, o medo do sentimento de vergonha de ser tachado louco, doido, varrido.
Servindo-se das letras, através de missiva, sem dúvida escondida dos
familiares, o maior amigo não sabendo; através de romances, novelas, contos,
poemas... Todos nós os homens desejamos nos dirigir à humanidade.
Os caminhos foram muito diferentes?!
Posso garantir-vos que muitos tentaram dizer-vos algo, as palavras faltaram
ou começaram a dizer-vos, mas sentiram que era inútil, não sentia ninguém
ouvindo senão ele(ela). Acharam fácil, mais fácil até que se aproximar de
alguém, mas não conseguiram fazê-lo. Estava falando consigo mesmo e era o que
menos desejava, queria ver-se o mais distante de si, não queria ouvir a própria
palavra. Pensastes o que é isto alguém não querer mais ouvir a própria palavra?
Como aquele sujeito que diz falar para dentro, está avesso! Quando os grilos
cantam, sento-me aqui na rampa de entrada do casebre, bebo café requentado,
acendo um cigarro. Às vezes as idéias não vem, ou vem numerosas - e a folha
permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me
desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel. As minhas
palavras são apenas palavras, reprodução imperfeita de sensações, sentimentos
de medo, insegurança. Para senti-las melhor, apago as luzes, deixo que as
sombras nos envolva até ficarmos dois vultos na escuridão. Criaram-me um mito
de facilidade, agilidade e habilidade com as palavra - puro mito, em verdade,
indecente e insolente. Diante de todas as dificuldades, obstáculos, não luto,
contorno-lhes, porventura haja aprendido este segredo com as águas.
Meu Deus! O que é isto, a humanidade? Tinha de deixar disso de vos dizer
algo, se houver quem o saiba será objeto de chacota, conversar com a
humanidade, só mesmo na cabeça de insano isso é possível. Rides. Mas não é
verdade? Ou não? Não estou sabendo de muitas transformações e mudanças. São
considerados, os que vos dirigis a palavra, gênios, homens de grandes virtudes,
os monstros sagrados. Realmente está diferente hoje, na minha época não era
assim.
Desistiram do desejo, perguntando para que isso de conversar com a
humanidade, dirigir-vos a palavra, o que poderá ganhar com isso é nada. Não se
vive de nada. O maior sofrimento se anuncia: será que tenho algo a dizer? Será
que serei ouvido, aclamado, reconhecido por isso? Nada. Isso é o que não queria
se tornar.
Deus meu!... É muito difícil dizer-vos qualquer palavra, aproximar-me de
vós, diria até ser complexo e complicado olhar-vos de esguelha – rides;
olhar-vos de esguelha, o que vem nessas letras, não é mesmo? -, e eu, extasiado
com a anunciação de uma luz no subterrâneo das almas, dirijo-vos essas
palavras, registradas na folha branca de papel, o que diria senão um dedo de
prosa nascido de nossas conversas, nossos diálogos ao longo de tantos anos.
Alguns acreditaram que lhes fosse possível dirigir-vos algumas palavras,
não iniciando com aqueles patrimônios da humanidade, “Como vai? Tudo bem?”, e
entrando no assunto que é o mais importante, sem devaneios. “A minha vida está
uma coisa de louco. Queria conversar com todos os homens, ver o que pensam de
tudo. Peço que todos se unam e rezem por mim, quem sabe Deus possa ouvir”.
Escreve muito bem até. O que de imediato disse na “lata”, revelou, anunciou,
manifestou? Está angustiado, desesperado, fracassado, triste, abandonado,
exilado, ressentido, magoado... – meu Deus, a relação não teria fim; está nas
últimas de sua vida, quer que alguém o salve, que a humanidade lhe dê a mão
para se levantar. E só. Não continuam, e se continuam são os primeiros a
reconhecer que foram asnices que escreveram na folha branca de papel. Imaginais
vós que os papéis estão em reunião a porta e janelas fechadas, estão decidindo
se ausentarem do mundo, estão exaustos de tantas asnadas neles escritas... - em
que mundo estão vivendo?
Não terei tanta pré-ocupação de saber se, em verdade, estais entendendo
as trilhas por onde ando, passo a passo, em busca da vida. Aliás, isso é
importante, pois que posso des-envolver o que intenciono fazer com mais
espontaneidade – sabeis daquelas situações em que alguém gasta mais o tempo em
explicar do que consegue dizer realmente? Compreendestes com perfeição, cabe-me
ir além de vossa perfeição, preenchendo os desejos e vontades de expressão,
revelar-me, por que decido, noutras dimensões do espírito, escrever-vos essa
missiva?
Admito, então, que seja fácil escrever-vos, dirigir-vos a palavra. O
alguém seja eu próprio, que resolvera fazê-lo, embora a experiência de
conversarmos desde a infância. No fundo, reconheço os limites, e quero
transcendê-los, quero sentir-me-sendo as palavras. Desde a tenra infância, ouvi
de todos que o homem para ser homem tinha de plantar uma árvore, ter um filho,
escrever um livro, de preferência poesia. Se me perguntasse o que é preciso
para se tornar homem, diria com empáfia: transcender tudo isso. Não estais
errada nesse aspecto, e desde já vos parabenizo pela intuição e percepção de
meus desejos mais escondidos.
Imaginemos alguém, num sábado, à hora do crepúsculo, após o banho, no
seu quarto, sentindo-se sozinho, angustiado, triste, aborrecido, deprimido,
resolve escrever para alguém de suas relações, não residente em sua cidade – se
residisse na mesma, mais fácil seria ir à casa dele ou dela, abrindo-se,
confessando-se; ouviria alguns conselhos a serem colocados em prática,
caber-lhe-ia apenas selecionar os que dariam maiores e melhores resultados no
restabelecimento da angústia e depressão -, falando de sua vida, seus temores e
sonhos...
Pigarreia. Olha em volta de si, examina seu quarto onde não há livros
nem quadros. Levanta-se com um gemido, caminha até a cama, deita-se sob as
cobertas, que, apesar de muito velhas, estão limpinhas e cheiram bem. Uma paz
sem medidas. Laços frágeis que pareciam correntes eternas soltaram-se.
Há vinte anos ele havia escrito no alto daquela folha: O QUARTO e nunca
mais conseguira escrever uma só palavra. Ele olha pela janela, da cama mesmo,
deitado. Há neblina no céu, há neblina nos seus olhos. Duas escamas caem de
seus olhos, a neblina do céu se esgarça e ele vê a estrela. Ah, esperou por ela
tanto tempo!... Desejou-a com toda a força do espírito, determinação almática.
Ela aproxima-se cada vez mais. É linda, linda, com os seus olhos de fogo.
Deita-se ao seu lado, nua, quentinha, sorriso que só especialista pode ver.
Agora ele está nela e ela está nele e nenhum dos dois nunca mais vai morrer,
imortais de última instância.
Pura poesia. Estar deitado na cama, janela aberta, a lua se projetando
no peito, a claridade, a noite. E usei dessa/desta poesia – a poiésis me
habita, digo-vos desde já para que vos inteireis de mim por inteiro, e,
ademais, se não sabeis o que é isso “poiésis”, é tempo de vos inteirar,
pesquisando a arte grega, os filósofos gregos. Então, aquilo de se conselho
fosse bom não seria dado, e sim vendido, é real: aconselhar-vos a ler e
pesquisar a arte grega não é bom, só mesmo o pior inimigo pode fazer isso. Os
tempos mudaram e a noite custa a passar.
Sim... Mostrais com engenhosidade que estais atenta a todas as dimensões
da vida, estejam presentes e fortes na alma e no espírito, e desejais mesmo
saber o que nesses longos anos de nossas relações consegui acolher e recolher
no íntimo, abrindo-me à plenitude, à amplitude, se é que vós podeis traduzir
essas/estas palavras, pois que eu fui tomado por um alvoroço no íntimo que
precisava afastar-lhe para continuar a vos dirigir as palavras, devido a isso o
disse com tanta ansiedade, num fluxo de inconsciência e consciência exacerbado,
e no meio do pensamento senti que havia perdido o chão sob os pés, mergulhando,
saindo, ofegante, as palavras na ponta da língua, conseguindo segurar-lhes
pelas tangentes, eram-lhes os pontos frágeis. O que isso importa?!
Escrevendo-vos essa missiva sentir-me-ia estar em vós e vós estais em
mim, e nenhum de nós dois nunca mais vai ser esquecido na história, falar de vós
suscita a minha lembrança, falar de mim exige a vossa presença que é quem pode
com categoria apresentar-me como mereço. A sede e fome de eternidade poderiam
ser realizadas a partir do instante em que tomasse da pena e vos escrevêsseis
uma missiva; sirvo-me de vós para realizar os sonhos que acreditei não ser
possível caso assim não fosse? Por que não assumir isso?
Contudo, creio ser-vos imprescindível considerar que não pensara em nada
disso que estais a questionar-me; escrever-vos, desde que iniciei, não é outra
coisa senão registrar o que aprendi, des-aprendi, o que segui ou não com os
ensinamentos que recebi, e sobretudo ter o testemunho em termos de experiência
e vivência de haver mantido colóquios convosco desde a infância. O que estais
apresentando como questionamento e indagações, percucientes, não tenho dúvidas,
mas são considerações que pretendia ir trabalhando nessa missiva, mas vós já o
adiantais, deixando eu como um intróito à margem.
Quem sabe um artista quem sente o que é isto intróito à margem possa
revelar que nessa missiva que vos dirijo, neste início palavras que prometem, o
importante é o que transcendem a esse momento e instante, dão asas à emoção. O
artista seria se realmente reconhecesse os seus dons, talentos, privilégios a
si doados gratuitamente, e que ele tornou isso uma busca de entender e
compreender os caminhos do homem, do eu, da humanidade...
(#RIODEJANEIRO#, 08 DE AGOSTO DE 2018)
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