#AFORISMO 1007/ LUZ LAMINADA NO BOSQUE# - Manoel Ferreira Neto: DESENHO/GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira: AFORISMO
Epígrafe:
Maria maria os verbos da vida,
Maria maria as sendas do ser
Maria maria as veredas do amor
Maria maria as trilhas do saber e conhecer...
Maria maria as dores e sofrimentos da condição humana...
Maria maria as utopias do vazio que re-colhe e a-colhe o múltiplo...
(Manoel Ferreira Neto)
Na floresta, no deserto, nos bosques, nas cavernas viveram sempre os
verdadeiros – o espírito é a vida que purifica a própria vida, a água, a luz
que ilumina a luz mesma -, os espíritos livres, como senhores onipresentes e
oniscientes do deserto; e a corrente de todo conhecimento profundo é fria, são
geladas as fontes interiores do espírito, o conhecimento dói, e como o faz!;
porém, nas cidades vivem os vis servidores e os seres subjugados, embora usem
arreios dourados, selas portentosas.
A face das rosas, lírios, samambaias, orquídeas, árvores, próximas ainda
de meu olhar, das árvores, ao longe, através das grimpas, pequenos espaços
entre as folhas e galhos, vê-se os campos, as montanhas, o bosque, à distância,
percebendo nitidamente as nuvens carregadas – talvez chova até ao resto do
milênio, -, voltadas para mim, iluminam-se agora todas, cinza ainda claro, não
de-monstrando bem que irá chover por dias inteiros, solenes.
Não é preciso dizer que não estou aludindo a qualquer ordem ou comando
externos, pois não os admitiria em hipótese alguma, não os admitira antes na
vida. Sou hoje mais individualista do que nunca, mais egocêntrico do que jamais
fui, mais narcisista do que não imaginava, devaneava sê-lo. Não sinto qualquer
vergonha nisto. Ao contrário, orgulho-me. Antigamente era sempre verão no meu
coração, aquilo de "Rio 40 graus", é muito calor, quase chegara a 50
algum tempo atrás. Meu temperamento era sinônimo de extremismo, de paradoxo.
Enchia minha vida de êxtases e euforias até a borda, como quem enche a taça de
vinho até a borda, bebe-o num só fôlego, nem degusta o sabor. Mas o que doía,
latejava no íntimo, gemia, ruminava. Hoje degusto uma cerveja gelada na praia,
em casa, vinho, sinto-lhes o sabor, hei-de sentir o sabor da existência,
sinto-o, o conhecimento traz os seus benefícios, há imensos outros à frente a
serem desvendados, compreendidos, entendidos.
Se a vida é para mim um problema – como certamente acontece – eu também
não deixo de ser um problema para ela. As pessoas são forçadas a adotar uma
atitude qualquer a meu respeito e, ao fazê-lo, estão julgando não apenas a mim,
mas a si próprias, aquele jogo de poker entre a fuga e o pelo sincero ao menos
do outro, que pedra seria o Rei a dar o xeque, no jogo de xadrez. Seria inútil
dizer que não me refiro aqui a qualquer pessoa em particular. As únicas pessoas
com as quais gostaria de conviver agora seriam os simples e com os que já
sofreram, com aqueles que conhecem a beleza e o sofrimento – ninguém mais me
interessa. Quanto mais com aqueles de família orgulhosa, são os reis do gado,
donos da cocada baiana, os supremos, como, por exemplo, Mürthi, anda com
melancia suspensa no pescoço e nada são senão vermes, vagabundos, não apenas
aqui em Serra das Pedras, no mundo inteiro, os que se sentem donos do pedaço.
Acredito que não sentir culpa ou vergonha de viver é uma das primeiras metas a
atingir, em benefício de meu próprio amadurecimento e também por eu ser tão
imperfeito. Carece de saber a razão de estar dizendo num nível, de repente,
interfiro, torno-me quem estivesse no divã de analista, e depois retorno ao
nível anterior... Por que isto? Para que isto? Perguntas que não querem se
calar.
Agora, encaro a vida sob um ponto de vista inteiramente novo e muitas
vezes torna-se extremamente complicado para mim até mesmo imaginar a felicidade
efêmera e passageira, a alegria breve e custosa de passar, a vida nítida e
nula. Vejo novos progressos, tanto na vida quanto na arte, constituindo-se cada
um deles numa nova forma de perfeição, de encontro, de realização. Desejo viver
ainda mais um pouco para poder explorar o que é para mim nada menos do que um
novo horizonte, uma nova montanha que terei o prazer em escalar, floresta onde
me felicitarei embrenhar, re-colhendo e a-colhendo dos nativos as culturas
ad-versas e di-versas, tristes trópicos, digamos assim. A mente humana, apesar
das diferenças culturais entre as diversas fracções da Humanidade, é em toda a
parte uma e a mesma coisa, com as mesmas capacidades. Deveria até narrar um
pouco sobre isto, mas aqui não é história, contudo, morrera amigo meu, homem de
dignidade, honra, carácter, personalidade, um intelectual, o saudoso muito
querido Toninho Fernandes, por quem tirar o chapéu em sinal de reverência, e
dissera eu: "Creio que ele realizou a sua existência na terra, o que
projectara tornou-se real e verdade." Como assimilar e compreender isto,
não é verdade? Nisso, acredito piamente, embora saiba que a grande maioria
morre muito cedo, em plena subida dos degraus da estrada. A nova montanha que
terei prazer em escalar é a contemplação e meditação acerca dos caminhos do
espírito e da alma, con-templar a plen-itude plenamente, as águas do rio que
vão sendo outras ao longo de seu trajeto para a vida.
Concentro a minha atenção enquanto escrevo e fumo um cigarro de palha,
para que a frescura da alegria inteira me trespasse, nítida e branca. Há a
intensidade essencial do horizonte nulo. É o que, sobretudo, me fascina,
extasia, essa verdade original das coisas, através da luz nítida, laminada nas
águas, no mar. A vida toda está aí, na linha in-existente da separação que une,
da comunhão que separa. Um projeto de vida isola-se-me nítido na memória, por
isso des-encadeei o meu combate, sereno e destemido, à dureza solar da verdade
nítida. Recupero a felicidade simples, fria de estar, alegria intensa e nula.
Agora que me sei desde uma distância infinita, reconheço-me não limitado por
coisa alguma, mas presente a mim próprio, como se fosse o mundo que sou eu,
agora nada entendo de meus acontecimentos.
Aos meus olhos, nada parece ter o menor valor, o ínfimo sentido e significado,
exceto aquilo que consigo obter com esforço e determinação próprios, sem rogar
e implorar a ninguém que me abra os caminhos, que escancare as janelas. Minha
índole procura uma nova forma de realização pessoal e particular. Esta é a
única preocupação que me ocupa hoje. A primeira coisa que terei de fazer será
libertar-me de qualquer jugo ou de qualquer opinião alheia, de qualquer
sentimento de culpa ou remorso por dizer o que penso e sinto. Aprendi que o
dito por mim continua sendo o dito por mim, e se houver intenção de um aplauso
ou elogio de quem quer que seja será uma in-autenticidade minha ou desejo
incólume de chorar mágoas que não são minhas de todo. Não chegarei a afirmar
que o exílio e a indiferença são as melhores coisas que poderia ter me
acontecido, pois tal frase teria um sabor de excessiva mágoa contra mim mesmo e
contra o mundo e as pessoas.
Longevos anos já passaram, o que fora e o que não fora realizado,
passaram, não há retorno, importa alguma coisa?, experiência, vivência, contam
sobremodo, não tanto para impedir que outras coisas tornem realidades.
Referindo-me ao que aprendi, não distante de angústias e tristezas,
fracassos e frustrações, lamentar as experiências vividas é uma forma de
impedir o próprio amadurecimento. Negá-las é colocar uma mentira deslavada nos
lábios da própria vida, obrigando-a a tornar verdade só minha. É nem mais nem
menos do que a negação da alma.
E nesta imóvel radiação do silêncio, a esperança de paz re-nasça
irmanada à de compaixão e solidariedade, dissolvendo-se num imenso
apaziguamento. Com o olhar gravado de mistérios e enigmas, as nuvens velam os
ossuários da terra, as penas do mundo, as das esferas da terra e infortúnios, a
profunda surdez que me submerge, o profundo deserto que me suspende – o mundo
das imagens altera-se a cada instante, o contínuo das águas gira depressa.
Desde que haja amor em meu coração, não me importo de dormir sobre a
relva fresca no verão, na praia de sunga numa tarde fria, e, quando o inverno
chegar, procurarei refúgio junto aos montes de feno ou sob o alpendre de um
grande celeiro. Coisas externas não têm qualquer valor para mim – ao menos hoje
que aprendi a conviver com o silêncio das coisas e do mundo, a integridade
entre a personalidade e o caráter, consciência e inteligência, conhecimento e
sabedoria de que doem bastante, pulsam dolorosamente no íntimo, contradições,
dialéticas, medos, hesitações, fugas, tudo isto é vida porque são sementes de
outras utopias e desejos.
Se as coisas fossem diferentes: se não me restasse um só amigo no mundo,
se nenhuma casa me abrisse as suas portas, se me visse forçado a vestir os
andrajos de um mendigo, enquanto estiver livre de toda a culpa, remorso de uma
atitude de não que ocasionou tais infortúnios, poderei enfrentar a vida com
muito mais calma e confiança do que o faria se o meu corpo vivesse coberto pelo
mais fino linho ou seda e a alma que ele abriga doente de angústia e tristeza.
É noite... como uma fonte o desejo de fulgor. Agora, eleva-se mais forte
e sonora - enquanto na linguagem se tem os
fonemas como material elementar, na música temos algo
que eu poderia chamar «sonemas» – em inglês, talvez
que a palavra mais adequada fosse «tonemas». Isto é uma
similaridade. A voz das fontes, a alma também é uma fonte. O silêncio na
boca dos indivíduos faz rolar pedras surdas, depois muda de imediato: sorri
como que para se desculpar, perdoar pecados e pecadilhos, justificar e explicar
os enganos e erros, e os lábios descobrem o esqueleto: esses dentes sem origens
e nem raças, conhecemos apenas as influências em que o osso substitui o batom.
Aquilo mesmo do símbolo 4, tese, antítese, síntese, a utopia, noutros prismas,
a inspiração, a intuição, a linguagem, o estilo, a Virgem Maria, as ondas do
mar, a maravilhosa música Maria Maria, de Nilton Nascimento, ouvindo-a numa
mesa, debaixo de uma árvore, na orla marítima, o silêncio e o mistério...
Nós outros, tantos caminhos já percorridos, palmilhados, veredas e
sendas percorridas, experiências, vivências, integração, aquele sabor delicioso
da goiaba no gim Seager´s, temos aversão pelas nuvens baixas, por esses seres
de meia-palavra e de recitações, declamações, oratórias, discursos, por esses
seres mistos que não sabem nem compreendem, nem entendem os fios de ouro em
seus corações, re-colhemos e a-colhemos os que consumam as eras, para o fim de
tudo que foi grande, aquilo mesmo de "Se você está, estiver preparada(o)
para amar, então sou mais forte do que nunca", se vamos fazer, então
façamos perfeito, a imperfeição perfeita, marcados pelos padrões eternos desde
a Grécia com o pincel, a pena, utensílios esculturais, o pensamento, idéias a
jornada trans-corre tão solene e serenamente, temos todo o tempo do mundo para
traçar os caminhos e realizá-los.
Balada do silêncio, do som, das cores, das imagens, das vozes,
contingências à busca de outros mares, florestas, bosques, desertos... Na orla
marítima, tarde de vozes monologando intimamente, sonemas, fonemas, ausência,
presença, sonhos, quimeras.
(#RIODEJANEIRO#, 15 DE AGOSTO DE 2018)
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