#LÚCIFER PERNÓSTICO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE
CAPÍTULO XV - PARTE II
Se ainda sentisse eu alguma necessidade de comer
esta cenoura!... Pensam todos os de nossa comunidade ser a razão de andar
desembestado pelas ruas. Sonho algum dia conseguir abocanhá-la. Ledo engano.
Jamais tive vontade de comê-la. Creio que o motivo de andar desembestado se
justifica pelo fato de meus pensamentos, as idéias que perpassam a minha cabeça
incomodarem bastante. A partir do instante que compreendi não me importar com o
que fizeram de mim, o que puxa carroças, e sim o que faço de mim, a
responsabilidade que me impus pela história real e não a que mostram os
interesses e ideologias, não mais andei desembestado pelas ruas. Ando devagar,
às vezes de cabeça baixa, às vezes não.
Observo que não são apenas aquelas pessoas que se
encontram à soleira de suas residências, sentadas na calçada, nas escadas,
conversando com todos os que passam, nas janelas de guilhotina, inteirando-se
das mazelas e achaques humanos, assuntos que encontram para as conversas, que,
ao passar eu, saem logo de perto. Odeiam-me. Quem sabe por ser eu o ser mais
comentado, mais conhecido da cidade? Não haver quem não conheça a
“carroça-dos-sem-nome”, o “asno-da-carroça”, e outros tantos modos de se
dirigirem a mim e ao meu dono? Sentem-se negligenciados, menosprezados,
inferiorizados. Donde já se viu asno ser mais importante que eles, os humanos?
Sentem inveja, ciúme. Se isto for mencionado: “Que negócio é este, fulano, você
sentir inveja, ciúme de asno?”, desconversam logo. A desconversa se justifica
por ser absurdo o que está sendo dito. O ser não é o que parece ser. Sou metido
a sábio, sabichão, acho-me no Olimpo, é o que parece ser, mas a questão são
outros quinhentos mil réis, se me faço cogitado.
Ouvira alguns homens dizerem que só me falta falar,
quanto a pensar já não têm mais dúvidas; outros, com propósitos de achincalhar
os que se ostentam com o título de escritores, acham-se os mais importantes de
toda a comunidade, mas, em verdade, a importância é só aparência, pois nada
neles denuncia dons e talentos artísticos, dizem que só me falta a pena. Ouvi
dizer que na academia de letras de Atenas Atéia existem quase cem membros; se
passar no funil estes acadêmicos, tomando em consideração dons, talentos, obras
publicadas, não resta um sequer para ocupar alguma cadeira. Há quem endosse
isto estou a dizer, e são pessoas incognoscível merecimento por suas virtudes e
valores culturais.
Não conheço a história como realmente acontecera. O
que me é dado saber é que Credólio Cruzilis assim dissera ao presidente da
academia: “Se houver alguém aqui que não tenha algo publicado, é chegada a hora
de participar do concurso”. O diretor olhou-o fixo, os olhos brilhavam, faltou
saírem das órbitas. “Isso é muito grave...”. Disse-lhe que a intenção do
concurso era de dar oportunidade aos inéditos. Era o que estava dizendo.
Tudo isto aumenta mais e mais o ódio, insatisfação,
ciúme e inveja das pessoas, quanto mais aquelas que se dizem importantes,
decidem a vida de outros, de modo e estilo responsável e sincero, são os
representantes dos bons princípios. A estas pessoas não apenas incomodo,
sou-lhes pedra no sapato.
Compreendo e entendo estas atitudes, fazem parte da
natureza humana. Naturalíssimo aos homens serem invejosos, ciumentos,
despeitados. Há-de se perguntar se haveria a raça humana se não houvesse ciúme,
despeito, inveja. Estranho, se asno fosse invejoso, ciumento, despeitado. Aí,
sim, poder-se-ia dizer que o mundo está de cabeça para baixo. Vindo o tempo das
uvas, quando elas maturam, pensam que as poderiam pegar para comer. E se
olhar as fontes que aos pés de deusa correm como um
arroio, acreditasse que os cachos que penduram das parras são verdadeiros, que
até não carecem de movimento dentro na água. Em meio destas árvores e flores
estava a imagem
in totum distorcida, como se estivesse olhando
Diana pelas costas, quando ela se lavava na fonte...
No Largo da Mandioca, onde se encontra o ponto de
carroças, há botequim muito frequentado por algumas personalidades de nossa
comunidade. Muito frequentado por senhor calvo, de cavanhaque, óculos pequenos,
estatura mediana. Certa vez, ouvi-lhe dizer a alguém não ser ele quem deve se
adaptar aos homens, mas os homens a si. Diria ponto de vista muitíssimo
interessante. Todos dizem que se alguém for dar atenção a tudo que se fala,
morre-se com certeza doido, varrido de pedra. Se se for ouvir o que se fala, a
sandice é inevitável. Então, são os outros que têm de se adaptar às mazelas da
pessoa, e não o contrário.
Parodiando a fala desse senhor, diria que não é o
asno que deve se adaptar aos homens, mas os homens que devem se adaptar ao
asno. Afinal de contas, necessitam da espécie para fazer trabalhos que não se
dignam a realizar, faltam-lhes força e coragem. O cúmulo da humilhação se se
põem a puxar carroça pelas ruas da cidade, a fim de poderem sobreviver, a fim
de ganharem dinheiro extra que aumenta o orçamento mensal, podem adquirir
outras futilidades e superficialidades com o dinheiro.
Por que, enfim, estou pensando tudo isso, enquanto
estou parado no ponto, meu dono estar fumando o seu cigarro de palha, olhando
as serras distantes, disperso? Também eu deveria estar fazendo o mesmo. Não
estar me preocupando com a diferença existente entre a natureza animal e a
humana. São coisas indiscutíveis, a menos que já não se seja capaz de
distinguir entre uma e outra, as duas se uniram, comungaram-se. Num asno, há
sempre virtudes e valores humanos. Num homem, há sempre valores e virtudes
ásnicas. Não se é possível mais saber se os homens são bípedes implumes, se os
asnos, quadrúpedes pensantes.
Só sei de mim, só sei de mim, só sei de mim...
Contudo, é muito interessante estas coisas do mundo dos humanos. Tanto que me
escondi com cautela ou arte de Panfilia, que antes eu mesmo me ofereci de
própria vontade em sua
disciplina e magistério, querendo em um salto
lançar-me no profundo daquela ciência. Assim com mais pressa que pude, alterado
pelo que conhecia e aquela efusão por envolver-me nela por inteiro, despedi-me
daquilo que dizem ser eu, puxador de cachorro, para me tornar um asno sábio,
soltando-me das mãos do destino pré-fabricado, inventaram para mim, pensando
chegaria a algum lugar, libertando-me de uma cadeia.
Agora mesmo, alguém entrou no botequim a fim de
comprar um maço de cigarros e, percebendo que um de seus maiores inimigos,
aquele por quem sente nojo, estava sentado ao banco próximo ao balcão, saíra
sem comprar os cigarros, os vinte companheiros com quem vai passar todo o dia.
E se não houvesse outro bar? O que faria? Pediria alguém para comprar. O outro
continuou sentado, tomando a branquinha acompanhada da cerveja. Fosse o
contrário, acredito que o outro não deixaria as bebidas pela metade, saindo do
botequim.
Há quem tenha brio na cara, portador de condutas
ilibadas; há os que não têm brio na cara, portadores de grande sem-vergonhice.
Manoel Ferreira Neto
(MARÇO DE 2005)
(#RIODEJANEIRO#, 31 DE AGOSTO DE 2018)
Comentários
Postar um comentário