#INFINITIVO DO VERBO# - ENSAIO CRÍTICO: Manoel Ferreira.
Em “Uma data como outra qualquer”, Capítulo 9, Sentimentos da esperança,
diz-nos Antônio Nilzo Duarte “... flamejando raios de luz e sentindo a
luminosidade do céu noturno...”. O espírito é a “fonte da vida”, segundo Jo 4,
134; Sl 36,10, e a vida brota e a água da vida “jorra” onde habita o Espírito
eterno. Com isto temos a outra imagem: o ser derramado e o fluir do Espírito da
Vida. Os frutos amadurecem nas árvores e a água jorra de sua fonte.
Onde o sol brilha, as coisas começam a luzir. O sol re-presenta por
excelência o Numinoso. O numinoso é a experiência que nos toma e nos envolve
totalmente.
A experiência de encontro profundo com alguém, que nos lançou uma luz no
meio de uma crise existencial, representa uma experiência do Numinoso.
Sentimentos da esperança, con-templado sob os “raios de luz” e a “luminosidade
do céu noturno”, re-vela-nos a experiência que o autor vive no íntimo de si,
re-vive nas páginas de suas memórias, re-pro-jetando a vida, buscando o
espírito dos horizontes e uni-versos do amor vivenciado pela esposa. O amor nos
foi dado para conjugar de sentimentos verdadeiros e reais o infinitivo do
verbo. No amor vivido, compreendeu Antônio Nilzo Duarte, conjugado com as
memórias por ele registradas e eternizadas, que punha em movimento imenso
processo de libertação de suas carências, de opressões e de limitações de toda
ordem. Resgatou o sistema da vida em suas inter-retro-relações. Recuperou os
sentidos, os ouvidos, a voz, as asas, os movimentos, os olhos e, por fim, a
capacidade de seguir as veredas de sua vida espiritualmente.
O amor, “... flamejando de raios de luz e sentindo a luminosidade do céu
noturno...”, amor libertador, fundou a espiritualidade que per-vade o íntimo do
autor, que per-vade as suas páginas, e todo o seu ser é iluminado. Por
intuição, vivida e sentida nesses “raios de luz”, “luminosidade do céu
noturno”, soube que no seu coração de homem que ama com toda a ardência de seu
ser que haveria sempre uma esperança a ser alimentada, uma palavra a ser
ouvida, um gesto a ser praticado, um sinal do eterno a ser interpretado ao
longo de sua vida, ao longo de sua caminhada, trazendo no peito o amor pela
saudosa esposa, pela família que juntos criaram, educaram, mostraram os
caminhos do campo a serem seguidos por todos. O entrelaçamento de todos,
esposa, filhos, filhas, netos, genros, noras, revela a insuspeitável riqueza
desta relação sensível de amor verdadeiro. Nos dizeres de Paulo Freire:
“Ninguém se liberta sozinho; libertamo-nos sempre juntos”. Antônio Nilzo Duarte
libertou-se de suas dores, angústias, sofrimentos com a memória de seu amor
pela família.
A espiritualidade, vista à luz de “... flamejando raios de luz e
sentindo a luminosidade do céu noturno...” é um dado antropológico de base. É a
dimensão profunda do ser humano. A terapia da mente, da alma, escrevendo as
memórias, constitui a meta da construção da Koinonia do ente querido só
espírito e do homem espírito e corpo, a busca da espiritualidade. Assim,
Sentimentos da esperança é rico, di-verso, paradoxal e harmonioso. Os raios de
luz re-presentam o arquétipo da síntese entre o humano e o divino, entre o ser
corporal, mental e espiritual. Sempre estarão aí como uma realidade imanente
das experiências de Antônio Nilzo Duarte. Eles constituem o fundamento da dimensão
espiritual de seu ser. É a base antropológica da espiritualidade que fora
construída com a escritura de sua memória.
Onde a natureza se torna fértil há vida. A relação do único Espírito com
os múltiplos dons do Espírito, e da única luz com os múltiplos esplendores, não
é a relação distante do Criador com as criaturas, mas uma relação muito mais
íntima.
A realidade do falecimento da amada e querida esposa do autor trouxe-lhe
uma surpresa: a sua “mente incorporou uma mística sobrenatural do grande amor àquela
que, materialmente desligou-se”.
Antônio Nilzo Duarte chama “mística” não as experiências sobrenaturais
específicas, mas sim a intensidade da experiência do amor vivido, que é a busca
da fé e esperança na espiritualidade. As experiências místicas não podem ser
transmitidas através de proposições. A própria vida é para os místicos, desde
Agostinho, o drama do amor a Deus, seja o amor infeliz, o amor desesperado, o
amor libertado, o amor que busca e anseia ou o amor bem-aventurado. Todos os
místicos partem de um mesmo pressuposto: o homem é ser erótico, é seu coração
sedento que o impele, e que só em Deus pode encontrar repouso. Pois o Deus
infinito desperta no homem, sua imagem, uma paixão infinita que destrói tudo
quanto é finito e terreno, se não chegar ao repouso no infinito de Deus. Por
isso a medida do amor místico é o amor sem medida.
A vida do autor, desde a perda da esposa querida, é o drama da
aceitação, da conformação, eivado de dores, sofrimentos, tédios, solidão, medo,
por na vida conjugal, em todos os instantes e situações contingenciais, haver
sido de uma comunhão espiritual, de um amor feliz; e, tomando da pena para
registrar a sua memória, narrar e descrever os quase cinqüenta anos de vida
juntos com a família, sua intenção sine qua non é a busca da liberdade, da
espiritualidade.
Ao longo da escrita de suas memórias, o autor vai com-preendendo que o
amor sentido e vivido nas profundezas de seu ser despertou nele a imagem da
espiritualidade, é através dessa imagem que superará o finito e terreno de suas
dores e sofrimentos, instituirá o descanso no infinito de seu espírito, em
comunhão com o eterno e o imortal, na síntese de sua vida terrena e da vida
transcendente de sua esposa querida. O que é descrito, narrado, em suas
memórias, é no fundo a história da libertação da dor e sofrimento das formas
infelizes e melancólicas, é a história da espiritualização do amor e do
infinitivo do verbo amar.
O amor ao próximo pressupõe o amor a si. Não podemos amar os outros se
não amarmos a nós mesmos. Nesta experiência de dor e sofrimento, de angústia e
tristeza, o autor não está perdendo o amor a si, como algumas vezes deixa
inscrito nas linhas de suas memórias, mas este amor por si mesmo está se
distanciando a passos rápidos, e ele necessita resgatá-lo em sua inteireza e
plenitude, ele precisa com este resgate dar continuidade à sua vida. Não
poderemos amar a nós mesmos, se não quisermos ser nós mesmos, mas sim outros.
No sentido literal, um amor “despojado de si” não é amor, porque falta-lhe o sujeito.
Através de seus sofrimentos e dores, o autor sente que lhe está faltando este
sujeito, é na tentativa, através das memórias, que ele buscara o resgate desse
sujeito, e resgatá-lo significara comungar o amor e o infinitivo do verbo amar,
nesta comunhão espiritualizar-se; “espiritualizar-se” significa, para ele, a
união de seu amor contingente com o amor transcendente, com a transcendência do
espírito.
A vida espiritual traduz um dado antropológico objetivo, pré-existente á
consciência e independente de nossa vontade. O ser humano possui naturalmente
interioridade. E essa interioridade, na obra Sentimentos da esperança, em
Antônio Nilzo Duarte, é habitada pelos raios de luz e luminosidade do céu
noturno.
(**RIO DE JANEIRO**, 14 DE SETEMBRO DE 2017)
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