**REENCONTRO EM PORTO DAS ILUSÕES** - Manoel Ferreira
Bocas
sem freios e os desatinos sem lei abismam-se no infortúnio, na desgraça,
conspurcando de intempéries as leis dogmáticas e preceituosas da verdade. A
vida serena e a sabedoria conservam-se ao abrigo dos desgastes e garantem a sua
duração, na eternidade consolidando a sublim-idade e a pureza da
trans-cendência. Por muito distante que os deuses celestes habitem no éter,
eles conhecem e vêem as obras e feitos dos mortais e simples mortais, dos
imortais e egrégios universais, obras cujos destinos são o enlevamento da
solidão diante da continuidade do tempo, frente à passagem dos séculos e
milênios, por todas as gerações a solidão peculiar do ser.
A
vida passa breve, e disto sou quem não tem qualquer dúvida. Só não consigo
compreender e entender o porquê o dia presente necessita ser vivido com grandes
ambições e voluptuosidades? Não sei e não conheço a razão de o instante-limite
ser a janela aberta para a liberdade inda mais ser o sêmen das esperanças. São
assim, no meu ponto de vista, e o ponto de vista é visto apenas de um ponto, os
insensatos e os homens de condutas duvidosas e mesquinhas.
No
céu, milhares de estrelas espalham sua luz. Não posso conciliar o sono, e
continuo a observar o céu que se abre sobre mim, transparente e puro. Como uma
franja que atravessasse o céu, a extensão da via - láctea. Passei por um sono breve, um momento, e foi
como se um véu diáfano viesse esconder-me por instantes o firmamento, pois tudo
reapareceu de novo, pois tudo re-começou, re-iniciou-se, re-fez-se,
re-novou-se, re-integrou-se na plen-itude do tempo e do vento, sentimentos,
sensações, emoções se aderem numa parafernália de imagens e paisagens. Os olhos
enchem-se de lágrimas, a fisionomia transfigura-se. Pego um lenço de seda,
cubro o rosto com ele e dentro em pouco o tecido delicado fica todo úmido.
Permaneço um longo tempo com os cotovelos no parapeito da janela, com a cabeça
jogada para frente, apertando com os dentes alvos o belo lábio inferior, como
se houvesse sentido de repente a picada de uma serpente venenosa, quiçá uma
cascavel, conservando sempre o lenço sobre os olhos para que não veja a imensa
dor, o in-inteligível sofrimento. Guardo
silêncio e permaneço imóvel, sempre com os olhos ocultos pelo lenço.
A
jovem, de cabelos louros, encaracolados, caindo-lhe ao ombro, rosto fino, olhos
azuis, põe-se a falar com uma voz tão doce e fraca como a aragem que se levanta
num entardecer maravilhoso e corre por entre os canaviais: esse ruído suave e
melancólico, brotando num murmúrio e voando para longe, esse barulhinho
insustentável e bucólico, des-abrochando num ritmo comedido e sumindo-se no
além fazem com que o viajante se detenha para escutá-los com incompreensível
desolação e tristeza, sem dar-se conta de como a tarde se apaga, de como a
noite presentifica-se com as estrelas e a lua encenando as magias de uma peça
romântica, sem final feliz, o amor eterno e místico, nem das alegres canções
dos camponeses que regressam do pastoreio de ovelhas, nem do rodar longínquo de
um carro de boi atravessando o chapadão de bugres.
Foi
preciso que, antes do meu fim, viesse a ouvir estas palavras nunca ouvidas
antes, e conhecer o amor que me era desconhecido, e saber a verdade que me era
in-audita, e con-templar o eterno que me era etéreo. Foi preciso que uma jovem
aparecesse em meu sonho, no breve instante de sono que tive, tornando meu
destino ainda mais prenhe de desejos e vontades, de sonhos e quimeras, fazendo
com que a vida, em plena juventude, se me afigure ainda mais linda e que, na
alegria, eu abençoe a minha sorte, na felicidade, eu proteja as dádivas
concedidas. nos fracassos e desgraças aprenda a refletir a nad-itude das coisas
do mundo.
Cada
traço de minha fisionomia, desde a fronte tristemente inclinada e dos olhos
baixos, até as faces pelas quais escorrem as lágrimas, tudo parece dizer:
“Nesta alma há mais felicidade e amor que se consegue imaginar!”, que parece
refletir: "Neste coração há mais alegria e sentimentos de esperanças que a
vã filosofia possa conceber".
Tomo
a jovem pela mão direita, descemos por fim pelo barranco, em cujo fundo corre
indolente um riacho por entre juncos e pequenos montículos de terra. Avisto uma
escarpa abrupta que excede a altura de
um homem, no cimo da qual ondula contra o firmamento enluarado a vegetação
viçosa e esverdejante. A brisa anuncia a chegada da aurora, o orvalho re-vela a
sensibilidade que se a-nunciará nos primeiros raios de sol e o des-abrochar das
flores de orquídea branca. Mas não ouço nenhum canto de galo nas vizinhanças,
já que nem na cidade, nos devastados arredores sobrara única destas aves. A
encosta íngreme encontra-se coberta de vegetação e, numa espécie de vale que
ali se formava, havia um juncal da altura de um homem. Divisaram-se no cimo os
restos de cerca, indício de que, em outros tempos, existira ali um canteiro,
uma horta para a alimentação dos habitantes e para o deleite das meninas dos
olhos.
Abrindo
caminho entre os juncos, detemo-nos em frente a um monte de sacos secos e paus
cruzados. Arredando estes, surge uma abertura em forma de abóbada parecida com
a boca de um forno. A jovem entra primeiro, abaixando a cabeça, seguida por
mim, que tenho de me curvar muito para poder passar. De repente, encontramo-nos
ambos na mais completa escuridão.
Ligado
a este sonho, acontece um pequeno fato que serve, como inúmeros outros servem,
para me persuadir de como um homem que nunca passou nenhuma desgraça, nenhuma
decepção, nenhuma desilusão, pode facilmente passar pela vida sem conhecer,
pelo menos em si próprio, qualquer coisa da possível misericórdia do coração
humano ou um suspiro da sua possível arbitrariedade, maldade. Uma densa cortina
de simplicismo cobre de tal forma as expressões e a fisionomia da natureza dos
homens, que para um observador comum os dois extremos e infinitas
possibilidades existentes entre eles se confundem – o enorme e múltiplo
compasso das diversas harmonias e sin-estesias estão reduzidas à sórdida linha
de diferenças expressas no alfabeto de sons comuns.
Manoel
Ferreira Neto.
(21
de abril de 2016)
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