**OUTROSSIM DE SENDAS E ILUSÕES** - Manoel Ferreira
Ser re-verso e in-verso de idéias e sentimentos
vislumbrados à luz de ilusões eleva os ideais de liberdade aos auspícios da
plen-itude, os verbos de amor e felicidade aos picos do sublime e eterno,
quando de estrelas e brilhos, de luas iluminadas e resplandecentes, de
arco-íris esplendentes de cores e luminâncias, sente-se o espírito vagar e
perambular nas belezas e esplendores da vida, emoções, sensações que habitam
nas dimensões sensíveis, que a habitam, que dela são essências, que nela são
sementes e raízes de outros horizontes e uni-versos à busca do verbo, à busca
de torná-lo carne, à busca do ser, à busca do pleno e eterno; eleva os anseios
dos verbos e sonhos, con-templados à luz dos raios de sol a incidirem em todas
as coisas, a criarem e re-criarem as sendas e ilusões do ser e do sublime,
fantasias do eu e do absoluto, quimeras dos desejos e vontades, quando a vida
se a-presenta em todos os prismas e perspectivas a verdade que habita os
interstícios, e que é o verbo da felicidade e alegria de buscar a carne de
todos as utopias e sonhos de conhecimento do que está dentro, muito dentro do
espírito, do que lhe transcende, e atinge o cume do divino e da divinidade, e é
o “deus” de todas as coisas outrossim às sendas e ilusões, às sendas e
fantasias, outrossim aos versos da “res” e do “in”, o que não pode ser sentido
nas suas profundidades, o que não pode ser vislumbrado nas suas
espiritualidades, o que não pode ser con-templado na essência, outrossim aos
ideais do pleno e do eterno que se a-nunciam na visão-de-mundo, na
visão-de-vida-e-plen-itude.
Re-traço o retrato, emolduro a imagem no espaço.
Evoco o abstrato, sonho o vago e etéreo. Faço da sombra minha raiz. Farto de
mim, afasto-me e constato em êxtases: na arte ou na vida, em carne, osso, lápis
ou giz, onde estou não é sempre e o que sou é por um triz. A lua desliza sob as
sombras do sol que não há.
Ser de re-versas e in-versas idéias, de avessos
sentimentos, e de razões vistas e pensadas à luz das verdades cristalizadas,
diamantizadas, ao diamante podia ser dado o talento de riscar o éter, mas ele
apenas quebra com todas as dignidades e honras do ser, ao menos em certos
buracos de mundo onde a hipocrisia se faz presente em todos os níveis e
dimensões, onde a farsa e a falsidade são as deusas supremas e todos se
ajoelham e dão graças a Hades por tamanha felicidade e prazeres, rendem
tributos a Mefistófeles por lhes mostrar caminhos mais fáceis de aquisição de
bens e matérias di-versas – tudo o que está à luz dos diamantes é símbolo e
signo do mal, ideologias, escravidões e alienações, eleva as cretinices e
simulações ao topo das naturezas sensíveis, quando todas as satisfações da raça
e da estirpe re-velam o nada e o obtuso do ser, não esquecendo as laias, que a
todos consagram e são o último elemento da tríade da malign-itude, são
perfeitamente sentidas como sendo a luz de todas as trevas dos sofrimentos e
dores, como sendo salvação dos pecados e pecadilhos, como sendo ressurreição e
redenção dos erros e enganos da vida, quando tudo se torna permissível, e todas
as libertinagens são lícitas à luz das idoneidades do cretinismo e da
imbecilidade, e todas as suciedades se ajoelham aos pés do consumismo e
desperdício.
Ser de sentimentos re-versos na in-versão do
caráter e da dis-posição do ser às ridículas condutas e posturas do que é
eternamente visto e sentido como a perfeição do mal e suas diretrizes e veredas
para o arbitrário, gratuito, sobretudo para os despautérios todos da viperinidade.
Sente-se a construção e estabelecimento das estratégias para a consumação do
que é plenamente o ilícito, do que são em absoluto o ordinário e imoral, ao
longo das décadas e séculos assiste-se ao desenvolvimento e progresso de todas
as características e essências das idoneidades caguinchas. Gotícula de veneno é
a divina real-ização da natureza, fortalece-se e cristaliza-se com pompas e
propriedades as mais di-versas.
Se é no meu corpo que sou presença a mim, estou
nele presente, com o absoluto que a determina, com a verdade suprema que a
solidifica e cristaliza, isto para amenizar a idéia, deveria ser “diamantiza”,
é nele também que sou presença ao mundo, no mundo estou presente até que a
morte registre o ponto final, o nada derradeiro, tudo deixando de ec-sistir, de
ser. Por presença a mim, entretanto, não entendo uma impossível coincidência de
mim comigo, do “eu” e do “mim”, mas a irredutível, categórica e absoluta
afirmação do “eu” que sou, a minha impossível separação dele em qualquer ato
que me afirme, em qualquer atitude que me endosse, em qualquer gesto que me
id-[ent]-“ifique” o bloqueio que o “eu” me instaura, estabelece a
impossibilidade de sair de mim, de me não ser, de não ser a mim, de outro ser
não ser senão o que sou de mim.
“(...)
Outro, sim, que não eu. – Bardo sem nome,
Com pouco vivo; - sobre a terra, à noite,
Meu corpo lanço, descansando a fronte
Num tronco ou pedra ou mal nascido arbusto.
(...)”
Seria que o mundo ec-sistisse ou não? Pergunto-me
suspenso no tempo, olhos perdidos no vão das nuvens brancas e azuis, no vácuo
do tempo, a respiração lenta e difícil, o coração amiúde batendo, a res-posta
tenho-a em mãos feitas concha, tenho-a na ponta da língua em riste, sinto-a
presente e forte, sinto-a percorrendo as veias, sinto-a alimentando-me, posso
expressá-la, não o sei se me persuade, se me satisfaço com ela, dou-lhe por
verdadeira e absoluta, não mais se faz mister tal pergunta, não mais há o que
questionar ou indagar a respeito, é seguir outras veredas e caminhos do campo.
O mundo ec-siste como pro-jeção de meu corpo, como o necessário termo de uma
apetência, como o objeto que a luz busca a fim de que essa mesma luz ec-sista,
a luz deste meu escritório, em que nele no presente instante estou a escrever,
a preencher as linhas todas de palavras, luzes e questionamentos da vida e
morte, não existiria se eu nele não estivesse, aliás estaria apagada, por que
gastar energia à toa? Se o penso fora dele, está na escuridão, e é com
dificuldades que elenco as coisas que nele estão, em seus respectivos lugares.
A consciência é pro-jeção de si e o corpo, a possibilidade dessa pro-jeção: um
corpo é a realização de um espírito, a carne é a possibilidade do verbo, o
verbo é a possibilidade do ser. Toda a dimensão espiritual se concretiza assim,
se efetiva assim como presença no mundo.
Não é a loucura que vejo e observo num quadro de
Van Gogh, ou a epilepsia num romance do mestre Dostoiévski, mas a expressão
livre de um homem, o dizer espontâneo de um indivíduo, a expressão livre de seu
ser – só assim numa obra de arte me re-conheço, só assim numa obra de arte sou
capaz de trans-cender e ver além de minha contingência, dores e sofrimentos,
alegrias e felicidades, de meu estar-no-mundo, só assim numa obra de arte posso
sentir que a criatividade me eleva e me real-iza, transforma-me, torna-me outro
na outridade de meu íntimo e de todas as suas dimensões de êxtases e prazeres,
desejos e vontades, querências outras. Além de que nem todo o louco ou
epiléptico é artista, a arte não é apenas para loucos, epilépticos, hipócritas
e imbecis; na arte, porque na escrita qualquer um deles pode fazê-lo, os
hipócritas e os imbecis são os que mais têm livros nas estantes das livrarias.
Toda a real-ização, por superior, implica o estar-no-mundo, ou seja a presença
de um corpo nele. Pobre bocado de carne tão perecível, tão degradado na miséria
que a cada instante o corrói ou ameaça.
O infinito ou o Absoluto espera-me ainda do mesmo
modo, a Arte realiza ainda a presença deles no particular que os exprime, mas o
Absoluto é meu e a Infinitude. No estrito domínio humano nada do que o excedia
se perdeu e a Arte foi ainda o substituto divino. Emoção única, tão indizível,
nós compreendemos bem que o seu excesso apelasse para um mais do que ela e
irresistivelmente se desse um nome a esse excesso. Frêmito estranho, ele revela
o seu indício quando a obra não está ainda aí a justificá-lo e uma vasta
extensão dele re-entra assim no domínio artístico. Porque a obra de arte é a
corporização desse abalo original, a encarnação dele em realidade sensível, é a
verbalização dele em ser. Quando a obra surge, o frêmito condensa-se nela
própria e ela funciona assim como o ponto de partida para a sua recuperação.
Mas a emoção que está nela e nela se concentrou é uma possibilidade realizada
para outro arranque possível, porque a emoção é o próprio apelo do homem,
porque o sentimento é a própria evocação do indivíduo, do calor do seu sangue.
Eis porque, tocados do sopro humano, mil realidades da vida podem reerguer-se
ou aprofundar-se no que as habita. Ao olhar divino do homem, uma simples pedra
fala a voz da divindade. A um olhar humilde e profundo, a vida inteira pode
aceder à transfiguração.
Recordo-me desde a infância longínqua, valerá a
pena lembrar, valerá a pena disto falar ou dizer? Desejava tudo na vida, na
plen-itude do meu ser, a alegria até à exaustão, a felicidade até ao êxtase e
volúpia, o prazer até onde o houvesse, a volúpia até onde se estendesse, e a
resistência até onde os outros resistiam, até onde lhes fosse possível e plausível.
Tinha um regulamento privado só para mim, com direitos limitados e uma
infindável lista de deveres que eu não sabia senão quando já tinha prevaricado.
Supunha que tudo estava já arrumado entre mim e o meu corpo, e a esperança
renascia, o desejo inteiro de ser, e eu acreditava que a vida era minha outra
vez, que a possuía, estava em minhas mãos, era eu o seu proprietário. Não tinha
eu outra vez no mundo senão nestas circunstâncias e situações?
Uma ilusão – quimera ou fantasia - só existe em
função do que o não é. Onde a verdade que me desminta a ilusão de dizer “eu”?
Onde a verdade que mostra a senda de meu “ser”? De que me serve saber uma
verdade que não sinta? De que serve saber que noutro comprimento de onda
poderia ver os objetos que não vejo, poderia vislumbrar as dimensões que a mim
não é dado sabê-las, trans-cendem as dimensões da razão e intelecto do ser de
meu saber – uma vez que os não vejo? De nada serve saber que a minha
sensibilidade seria outra e a minha justiça, nascida que fosse a outra hora da
História, se o não posso sentir na hora que me marcaram, no instante que me
cachapraram, no segundo e minuto que me id-ent-ificaram com todos os atributos
do bom senso e da sensibilidade verdadeira. Não se destrói a ilusão do que se
é, senão sendo outra coisa – ou seja, outra ilusão. Porque só é imutável
verdade a verdade de se estar morto, de nada mais ser, de apenas me tornar
cinzas, das cinzas vim, para as cinzas vou. A verdade da vida, absoluta,
irredutível, é a verdade que habito com as palavras que a dizem ou a são e as
dores que me doem e a alegria que me ilumina, a felicidade que me a-nuncia. Ao
“eu” que enfrento e reconheço e irrompe de mim, a angústia e a tristeza que me
tomaram em certos desertos e abismos que experimentei e con-vivi no quotidiano
de meus dias e esperanças de outras auroras e crepúsculos, não o destruo por
saber que é uma ilusão do tempo que me coube, como não destruo a amargura que
me visitou, com o saber que as minhas razões não foram razões para outros, não
os convenceram, não os persuadiram, eram simples criações de minha imaginação
fértil, eram simples justificativas para esconder o que me habita a natureza;
como não evito o prazer que me domina pelo saber que não é prazer para mais
ninguém – ninguém pode senti-lo por mim, ninguém pode sê-lo em mim.
Atento a essa vida, olho-a a acontecer sem que um
instante observo que olho. Puro espectador, o que me existe é o espetáculo e
não aquele de mim que ao espetáculo assiste. Preso à verdade que em mim se
re-vela, não penso no “eu” onde ela se re-vela, nem mesmo quando penso em como
é que se re-vela. Nem mesmo quando não atento na luz que atravessa a vidraça da
janela de meu escritório e penso como é que ela a atravessa, nem mesmo então
re-flito sobre o que é isso que é atravessado.
O homem que sou hoje escolhi-o em correlação com o
que hoje me põe um problema de escolha que ontem se não punha. O homem que hoje
escolho é o que ontem escolheria, se fosse caso de escolher na total correlação
que para a escolha de hoje se estabelece. O homem que hoje escolho é o que já
escolhi ontem na escolha que de mim fiz e de tal modo que o homem que vem desse
ontem, quando chegado ao de hoje, teria de escolher o que escolheu. O homem que
hoje escolho não é uma criação de ontem, mas de ontem. Assim, o que me criei
nesse ontem é o que hoje está em face de uma nova escolha para escolher como
quem sou. O homem que hoje escolho é o que ontem escolhi, de tal modo que hoje
escolho o que escolhi.
Vivo é só o homem porque se sabe vivo; e é porque
se sabe vivo e mortal, que ele é um Deus condenado à morte e sem ressurreição.
O que há de escárnio na sua sorte é que a sua parte animal é igual ao animal, o
que há de sarcástico na sua sina é que os seus instintos são iguais aos
instintos da serpente que convenceu Eva a comer do fruto proibido; e a sua
parte de grandeza é igual à dos deuses.
Não me digam que a morte é uma espécie de sono bom,
isto me faz rir, não estou em condições de fazê-lo neste instante. Quero morrer
dormindo, é a morte mais digna, não saberia que estaria morrendo. Porque no
sono o que importa não é dormir bem, mas sim o acordar depois de se ter dormido
bem. Na morte dormindo o que importa não é morrer, mas acordar depois de ter
morrido bem. Poder perguntar a minha mãe, que morreu dormindo, como é isto de
morrer dormindo, mas a questão é se ela vai me responder. Quê despautério! Sim,
mas é o que sinto forte e presente em mim. Tudo isto é fatigante quase até à
irritação – esta insistência no que é óbvio desde que um homem morreu. E, no
entanto, através de mil crenças ou subterfúgios, jamais o homem morreu, porque
só hoje ele morre.
A fama e a glória são efeitos sem causa, valores
anônimos, sem dono. Mas se a glória e fama são anônimas e sem dono, podem ainda
em ficção atribuir-se ao alguém abstrato que é o alguém que já não há e a quem
ainda se atribuem. Mas que pensarmos daqueles que realizaram a sua vida em
“dignidade”, em “honestidade”, para um tempo – o de hoje – que as ignora e
jamais saberá se foram “honestos” ou não? A sua memória perdurará nos breves
anos, rapidamente os cobrirá o nada do silêncio. Que significa o seu esforço, a
luta com que defenderam o seu “nome”? Que significa a sua persistência, as
palavras todas que serviram de elogio e incentivo aos seus desejos e vontades?
Quem foi digno há cem anos, há mil anos? Onde a verdade dessa preocupação
absurda? Onde é que se legitima? Há um equilíbrio difícil a estabelecer entre a
extensão de nós para quando já não há “nós”, e desse “quando” para o instante
em que nos projetamos. É nessa corda tensa, batida de uma luz cega, que uma
vida perfeita se pode equilibrar.
Inabitável esse meu lugar de origem, essa rarefação
de mim, é aí que se anuncia ou se gera quanto interminável problema que
interminavelmente resolvo, quanta verdade última deles, face primeira,
iluminado início, fulgor primordial. Eis pois que, nessa dimensão absoluta, me
é possível aflorar a eternidade para lá do tempo, a pura memória para lá da
recordação e até da evocação, a liberdade inteira para lá do que me determina,
o sagrado para lá da religião, a necessidade de estar vivo para lá da
contingência e da morte. Só então pois entenderei que a imortalidade se me
levante como exigência inexorável e que Deus se erga enfim como a final
justificação de tudo isso.
Manoel Ferreira Neto.
(22 de abril de 2016)
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