**UM BRINDE À EFEMERIDADE** GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA
Ao rés-do-chão, negaram-me a postura de homem.
Neste túmulo, sou lagartixa que passeia, senta, dorme, faz suas necessidades
fisiológicas. Pele contra pele, carne contra carne, membro contra membro.
Acostumo-me à posição.
====
Construo-me ou destruo-me. Aos que estão ao
rés-do-chão, não lhes devo coisa alguma. Piso-lhes a cabeça. Desejo-lhes a
cabeça esmagada, o corpo na sarjeta.
====
Absorta em seus sentimentos e sensações, olhando o
casal de frente, a respiração ofegante, lembrou-se de haver encostado o cotovelo
esquerdo no caderno de Fomá Fomitch que estava sobre o braço da cadeira,
amparando o queixo com a mão, o rosto pouco inclinado – havia sonhado naquela
noite. Fechou os olhos. O peito encolheu-se. A respiração diminuiu. Algo
desconhecido tomou conta dela. Abriu os olhos.
====
Calafrio na espinha. Tentou articular algumas
palavras, dizendo, por exemplo, que era míope. Não enxergava a longa distância.
Estava sem óculos, podendo colocar-lhes, ver as montanhas, os edifícios. Não
conseguia articular palavra alguma. Sensação horrível. Há nó górdio na
garganta. A respiração estava dificultada. A cabeça vazia.
====
Cega na visão do vazio. O peito, antes de
insuflar-se, deslocava-se.
====
Ofício é tirar a carne de pescoço: a palavra.
Permissão de ser quem sou. Descarno-lhe com a intenção de ser possível sair,
estourar-me. Eis que, sendo passageiro deste ato, manifesto o vazio. A palavra
manifesta a existência? Aborto inútil. O que é abortado está morto. Estando,
aqui e agora, a pensar, não significa as palavras adquirirem sentimentos; antes
o contrário, não têm sentimento algum, pois que estou morto, apenas a cachola
instintiva continua ativa, creio que por toda a eternidade estará relinchando,
sem cessar. Sei não poder iludir-me. Far-me-ia mal... Todos os termos estouram,
exceto as palavras. Frases caem no esgoto. O que estou fazendo não constitui o
ato de relinchar, mas dar descarga. Dou descarga nas frases, a fim de cada uma
de suas palavras estourarem. Criei este destino. O que consigo? Vê-las
exteriorizar lamas e lodos. A estética? Ingenuidade. Pergunto-me a razão de
relinchar uma espécie de memorial após a minha morte, se não expresso a morte,
tendo de conformar-me com o morto que sou, o vivo que fui. Uma interpretação?
Uma análise? Nada disso, é que passar a eternidade aqui na sepultura, os ossos
se desfazendo, restando apenas pedaços aqui e ali, é extremamente monótono,
então os instintos frios disseram-me o melhor seria ocupar-me com um memorial.
Após haver abortado o vazio, tirando-lhe do rol dos instintos, intenciono fazer
com que as palavras revelem este vazio, que sou eu. Trago o fel até à última
gota.
====
Maçanetas driblam cinzas a erguerem caixões em
memórias transmudadas a nada. Chave ludibria corpo que some em gavetas a
encravarem testemunhos inconscientes. Trancas aglutinam ossos mutilados, nonada
a ermos paladares do eterno. Buraco destrinça carne tirada a lâmina afiada,
caindo de mares a hipotenusa da angústia, cateto da depressão.
====
Frestas limpam nervos que escavoucam a cal deitada
em pás medíocres. Bebida esmorecida no copo mítico de todos os nadas e mortes.
Pés já reconhecem a espessura e longitude das sepulturas amontoadas em calçadas
e passeios.
====
Vida. Reconheci nela natureza inalterável desde o
primeiro toque, com que podia afirmar, firmar pacto tão perigoso e tão seguro
que se faz com um elemento: pode-se confiar no fogo com a condição de saber que
sua lei é morrer ou queimar. Visões. Escolhas. Tudo constitui amadurecimento.
Passar a ter sentido, exótica perspectiva. Ter-me-ia rejeitado com horror, se
houvesse percebido nos seus olhos o brilho cuja ausência a faz morrer. As
qualidades de frieza, recusa, renúncia, fizeram-me. Mudança. Agora que morri,
afasta, despe-se de suas hesitações uma a uma, com a espontaneidade de um
viajante transido que se despoja ao sol, de suas roupas molhadas, e
apresenta-se diante de mim nua como mulher alguma jamais o fez. Estiolam
vestígios sem deixar portas semifechadas. Coisas não vistas antes são claras.
====
O que era emoção transformou-se. Não a possuo em
meu infortúnio. A desgraçada da morte adquire expressão de repouso que se tem
num leito. Aborta-me fria. Reclamo o sangue no interior das veias.
#riodejaneiro, 15 de dezembro de 2019
Comentários
Postar um comentário