FRIO NOS PÉS E A MORTE NA ALMA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA
Sinto cada vez mais frio nos pés e a morte na alma.
É o desvio que o pudor da verdade obriga a fazer à inteligência, e o pudor da
amizade, ao coração. É o desvio que salvaguarda a justiça, colocando a verdade
do lado daqueles que se interrogam. A verdade que nós, os homens, mais
interrogamos é o nosso sentido neste mundo, para que, enfim, estamos vivendo,
nem é preciso esta interrogação, há outras verdades muito mais importantes, o
por quê de amarmos tanto que nos falta a palavra, e temos sempre de mentir isto,
envelar de qualquer modo, ocultar, para brincar às ocultas. E não há dúvida de
que o pagamos bem caro.
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Só ao crescer entrei na classe ordinária; ao
nascer, saí dela. Hão de rir-se quem me estiver ouvindo pensar isso, por me
apresentar modestamente como um prodígio. Seja, mas depois de rirem bastante,
que encontrem um menino que aos oito anos de idade os romances prendam,
interessem, transportem a ponto de o fazerem chorar ardentes lágrimas. Então
considerarei ridícula minha vaidade, e concordarei em que não tenho razão.
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A fé dogmática é um produto da educação. Além desse
princípio comum que me prendia ao culto dos meus pais, eu tinha a aversão ao
catolicismo peculiar à nossa cidade que no-lo fazia considerar como uma
horrenda idolatria, e onde nos pintavam o clero com as mais negras cores. Esse
sentimento casava – e tão bem comigo que nunca entrevia o interior duma igreja,
ou encontrava um padre de sobrepeliz, ou ouvia as campainhas duma procissão sem
ter um estremecimento de susto ou de terror; é verdade que essa impressão era
singularmente contrastada pelos agrados que os padres dos arredores da cidade
proporcionam de bom grado aos meninos.
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A humanidade teve sempre tendência no seu conjunto
para organizar-se.
#riodejaneiro, 26 de dezembro de 2019#
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